Dedico este singelo estudo ao jurista, professor e ex-ministro Dr. José Eduardo Cardoso, pelo que tem feito em prol da nossa pálida democracia.
Parece-nos que são três as causas que levam o Ministério Público a aditar a denúncia, segundo interpretação sistemática do nosso Código de Processo Penal. Na prática do foro, não se vem dando ao tema a devida atenção, daí os equívocos constantes, acarretando consequências danosas para a regularidade processual.
Vamos examinar tais hipóteses separadamente, até porque, uma delas nada tem a ver com o princípio da obrigatoriedade, sendo certo que, inversamente, as outras hipóteses só poderão ter um tratamento correto à luz deste princípio.
O art. 384 do Código de Processo Penal prevê um aditamento à denúncia já recebida pelo Juiz. Havendo possibilidade de nova definição jurídica do fato imputado ao réu, pelo surgimento de fato novo previsto no tipo fundamental ou derivado da norma penal incriminadora, o Ministério Público deverá aditar a denúncia.
Diante de uma interpretação isolada desta regra jurídica, pode surgir a falsa impressão de que se apresenta para o Ministério Público tão somente uma faculdade, a ser exercida segundo critérios de oportunidade ou conveniência. Na verdade, assim não se passa. Também aqui, a atividade do órgão estatal está vinculada ao princípio da obrigatoriedade. Assim como este novo fato já deveria ter sido imputado na denúncia, caso dele se tivesse alguma prova naquela oportunidade, agora à denúncia ele deve ser agregado, via aditamento, para completar a acusação, que é obrigatória, tendo em vista o surgimento da prova no curso do processo.
Por outro lado, o órgão do Ministério Público não deve pautar a sua conduta processual (aditar ou não a denúncia), segundo a formulação prematura de um juízo de mérito. A situação é a mesma daquela que se lhe apresenta quando do oferecimento da denúncia. Aqui, também pelo princípio da obrigatoriedade, havendo prova mínima deste novo fato, deve aditar a denúncia, descrevendo a conduta do réu tal como deveria ter feito originalmente se já dispusesse desta nova prova no momento de instaurar o processo.
Vista a questão por este ângulo, não encontraremos qualquer incoerência se o Ministério Público, depois do aditamento, vier a opinar pelo não acolhimento da forma qualificada, em alegações finais. Uma coisa é a formulação integral da imputação cabível, consequência do princípio da obrigatoriedade. Coisa diversa é a manifestação do Ministério Público sobre o mérito da imputação que fez, tanto na denúncia como no posterior aditamento. Neste momento, como fiscal da correta aplicação da lei aos fatos provados, o Ministério Público promove, pugna pela sentença justa, segundo a situação processual concreta. Note-se, ainda, que, após o aditamento, poderá surgir nova dilação probatória, consoante se vê do §2º do art. 384 do Código de Processo Penal.
De relevo acentuar, outrossim, que tal aditamento não importa em desistência na imputação primitiva, o que não se admite em se tratando de ação penal pública. Apenas abre-se uma nova possibilidade de julgamento, fiel ao princípio da correlação entre acusação e sentença. Diante da prova nova, o Ministério Público amplia o thema decidendum, criando uma outra opção para o julgador.
Em verdade, pode-se até criar uma forma superveniente de imputação alternativa, conforme já sustentamos em trabalho doutrinário, com lastro em aresto do Supremo Tribunal Federal e de autores renomados. Vale a pena lembrar que, no item anterior, mostramos como a imputação alternativa deve ser concebida como uma decorrência do princípio da obrigatoriedade. Entretanto, na hipótese de imputação alternativa superveniente, para quem a admite, não estaremos aplicando a regrado do citado art.384, pois aqui se imputa ao réu um outro fato principal, excludente do narrado primeiramente,
Relevante perceber que a parte final do novo §4º do art. 384 do Código de Processo Penal, quando dispõe que o Juiz deve ficar adstrito aos termos do aditamento, em nada modifica o que afirmado anteriormente. A imputação alternativa superveniente subsiste. A melhor interpretação para este dispositivo é no sentido de que houve um reforço no princípio da correlação entre acusação e sentença, ao se reafirmar que o Juiz somente pode levar em conta, para a sentença, os fatos imputados, seja na denúncia, seja no aditamento. Para melhor exemplificar: se o Juiz percebe que houve acréscimo de vários fatos que devam constar na acusação, abrindo vistas dos autos ao Ministério Público para aditamento e, sendo este ofertado de forma menos ampla que a percepção do Juiz, ficará adstrito ao que aditado, não podendo decidir sobre fatos outros que não constem no acréscimo realizado pela parte ou originalmente na denúncia. Enfim, tal dispositivo está em total consonância com o art. 42 do Código de Processo Penal, que deixa clara a indisponibilidade da ação penal pública.
Pelo exposto, tendo surgido a prova de fato não contido na denúncia, o aditamento se impõe ao Ministério Público, vez que o princípio da obrigatoriedade não se refere apenas à propositura da ação penal pública, mas à formulação integral da imputação cabível e, por conseguinte, devida.
Caso o órgão do Ministério Público não adite a denúncia, caberá ao Juiz aplicar a regra do art. 28 do Código de Processo Penal, conforme previsão agora expressa no art. 384, §1º, do Código de Processo Penal. Tal providência deverá ser efetivada pelo juiz apenas no momento processual de proferir a sua sentença de mérito. Diante desta fiscalização do princípio da obrigatoriedade, feita pelo Juiz, o Procurador-Geral dará a última palavra, o que é próprio do sistema acusatório.
Outro aditamento que pode ocorrer no curso do processo, também decorrente do princípio da obrigatoriedade, será para fazer nova imputação, seja de outro fato delituoso, seja de conduta praticada por algum coautor ou partícipe não denunciado.
Esta segunda hipótese não deve ser confundida com a primeira. No aditamento do art. 384, o "fato principal" permanece o mesmo, motivo pelo que não se acrescenta cumulativamente nova imputação, tomando-se desnecessária outra citação. O réu estava sendo acusado de subtrair determinada coisa móvel, passando a ser acusado, pelo aditamento, de ter efetuado esta subtração mediante violência. Já nesta segunda hipótese de que estamos cuidando, far-se-á uma outra imputação a ser acrescida à imputação já constante da denúncia, tendo em vista a prova que surgiu no processo. Neste caso, uma nova citação é de rigor, vez que surgirá uma cumulação, objetiva ou subjetiva, de imputações em um mesmo processo.
A toda evidência, esta nova acusação também está vinculada ao princípio da obrigatoriedade, mas só deverá vir em forma de aditamento se houver conexão de infrações ou continência (arts. 76 e 77), para que haja a desejada unidade de processo e julgamento, nos termos do art. 79 do Código de Processo Penal. Em determinadas circunstâncias, o aditamento poderá tumultuar o processo já em via de conclusão motivo pelo qual a regra do art. 80 pode autorizar que a nova acusação não se faça por aditamento, mas através de outra denúncia, instaurando-se outro processo.
Finalmente, um terceiro aditamento é permitido pelo disposto no art. 569 do Código de Processo Penal. Este aditamento é bastante diferente dos dois outros já estudados, pois se destina a suprir omissões da denúncia relativamente a elementos circunstanciais (circunstâncias) da infração penal. Aqui, nenhuma "circunstância elementar", para usar a antiga expressão legal, é acrescida à imputação feita na denúncia. Apenas acrescenta-se, ou até mesmo retifica-se, um fato circundante ao fato principal. Daí não surgirá nova valoração jurídica do fato já imputado ao réu, motivo pelo qual este aditamento não tem qualquer vinculação com o princípio da obrigatoriedade, mas visa a tornar apta a peça vestibular ou adequá-la ao Processo Penal.
Urge salientar, ainda, que os aditamentos não podem importar em retirar ou desfazer a imputação originalmente feita na denúncia, ainda que indiretamente, o que violaria o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, consectário lógico da obrigatoriedade do seu exercício. Não é incomum encontrarem-se aditamentos que importam rerratificação de denúncias, em que a parte retificada tem como escopo alterar o "fato principal" já imputado ou imputá-lo a outrem que não o primitivo réu. Tal não deve ser admitido. Posta a imputação, ela não pode ser subtraída da apreciação do juiz sem julgamento de mérito. Cabe um esclarecimento: quando falamos em "fato principal", estamos usando a expressão no sentido utilizado pela norma do art. 110, § 2°, do Código de Processo Penal.
Tudo isto vale também para o disposto no art.417 do citado diploma legal, como me advertiu o amigo Rômulo de Andrade Moreira. Aqui teremos uma nova imputação. Caso haja conexão ou continência, esta outra acusação poderá ser efetivada em outra denúncia ou através da ampliação da denúncia originária, (aditamento).
Imagem Ilustrativa do Post: Boat Promenade (1992) - Bertina Lopes (1924 - 2012) // Foto de: Pedro Ribeiro Simões // Sem alterações
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