O PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE E A AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA  

29/09/2020

Chamou-nos especial atenção decisão do antigo Tribunal de Alçada Criminal do Estado do Rio de Janeiro. Aliás, tal decisão foi impugnada pelo Ministério Público através de recurso extraordinário.

Embora conste da primeira parte da ementa do acórdão que o princípio da indivisibilidade se aplica tanto à ação penal privada quanto à pública, posteriormente se afirma não ser ele extensivo à ação penal pública incondicionada.

Por outro lado, a Colenda 2ª Câmara do citado Tribunal extrai dessa premissa conclusões surpreendentes, pois anula integralmente o processo regularmente instaurado por denúncia do Ministério Público, sob a alegação de que teria ocorrido decadência em face do coautor da infração, não incluído no processo, à míngua de representação do ofendido contra ele.

Vejamos esta parte da ementa do aresto em exame:

“Assim, o princípio da indivisibilidade que está escrito no art. 48 do CPP, em relação à ação penal de iniciativa privada não se aplica às ações penais públicas incondicionadas, mas se estende, por exceção, às ações penais condicionadas à representação do ofendido observado sempre decurso do prazo decadencial, que é improrrogável, não se suspendendo ou interrompendo.

Pelo exposto, tratando-se de ação penal pública condicionada à representação dos ofendidos, já decorrido o prazo decadencial de seis meses da data da ciência, por via de consequência, não poderá o Ministério Público ‘promover nova actio poenalis contra o autor intelectual do manuscrito, em virtude da decadência do direito de representação, pois está extinta a punibilidade ex vi dos arts. 103,107, IV, do CP e 38 do CPP, anulando-se, ab initio, a presente ação em relação ao coautor, subscritor da súplica’”. (Ap. Crim. nº 33.486/88, por maioria, publicado no DO de 21.09.88, parte III, p. 136, relator Álvaro Mayrink da Costa).

Discordando do que está asseverado acima, desde logo, queremos adiantar nosso entendimento doutrinário sobre a matéria. Sustentamos que o princípio da indivisibilidade rege toda e qualquer ação penal, seja pública ou privada, não cabendo fazer aqui qualquer distinção entre pública condicionada e incondicionada.

Sucede, entretanto, que, em se tratando de ação pública, a indivisibilidade está abrangida pelo princípio da obrigatoriedade, motivo pelo que o seu descumprimento faz detonar os mecanismos de fiscalização previstos no Código de Processo Penal. Se o Juiz não os utiliza, teremos arquivamento expresso ou implícito em face do coautor não denunciado, passando a hipótese a ser regida pelo sistema do desarquivamento do inquérito ou peças de informação.

Desta forma, o descumprimento da indivisibilidade da ação penal pública é antes de tudo uma violação ao dever de agir do Ministério Público, jamais podendo acarretar decadência ou nulidade do processo instaurado contra um dos autores do crime.

É até intuitivo que a impunidade de um não pode levar à impunidade de todos os outros autores da infração penal.

Estas questões vão ser desenvolvidas abaixo.

Antes, porém, vamos fazer um breve relato da situação concreta enfrentada pelo aresto ora examinado.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra o autor de uma calúnia. A ação era pública condicionada, tendo em vista que o ofendido fora atacado em sua honra, em razão do exercício de suas funções públicas.

No curso do processo, terceira pessoa, depondo como testemunha, confessa que também teria colaborado para a consumação da ofensa, sendo o autor intelectual do escrito. Nada obstante, o processo seguiu adiante, sendo o réu condenado.

A decisão supratranscrita deu provimento à sua apelação, entendendo que o ofendido teria que fazer nova representação, agora contra aquele que confessara a participação no crime, possibilitando ao Ministério Público aditar a denúncia.

Passemos a detalhar o nosso entendimento, tendo em linha de conta a hipótese concreta.

Data venia, a equivocada decisão aqui noticiada decorre do estabelecimento de algumas premissas falsas.

Não é verdade que o princípio da indivisibilidade não se aplica à ação penal pública incondicionada. Não fosse assim, seria ela divisível, o que entraria em choque com o seu princípio maior, o da obrigatoriedade.

Conforme demonstramos em trabalho doutrinário intitulado “A ação penal pública e o princípio da indivisibilidade”, publicado em nosso livro Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres, Rio, Forense, 1987, 2ª edição, pp. 251-254,1 o princípio da indivisibilidade está abrangido pelo princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública, devendo a denúncia imputar todas as infrações apuradas contra todos os seus autores e partícipes, desde que tenha, é lógico, prova mínima para dar justa causa à demanda. (a citada obra está em 15ª edição, agora em parceria com o magistrado e professor Pierre Souto Maior Amorim, editora JusPodium)

Naquela oportunidade, invocando as lições dos renomados professores Hélio Tornaghi e Tourinho Filho, escrevemos:

“Na verdade, somos que a ação pública é tão indivisível quanto a ação privada, apenas a forma de explicitar o princípio e fiscalizá-lo tem uma sistemática diferente no Cód. Proc. Penal”.

Tendo em vista o princípio da oportunidade da ação penal privada, tornou-se imperativo ao legislador regular a matéria de forma expressa no art. 48 do Cód. Proc. Penal, impedindo que o querelante utilize-se do direito de ação de forma discriminatória, em contraste com os fins colimados pela lei ao outorgar-lhe tal legitimação extraordinária.

Assim, em sendo facultativa a ação privada, correto andou o legislador ao tornar claro e límpido o princípio da indivisibilidade, criando mecanismos para o seu controle (arts. 45 e 48 do Cód. Proc. Penal).

Entretanto, a ausência de dispositivo idêntico em relação à ação pública não pode levar jamais à conclusão de que ela seja divisível, mormente em face da combinação dos arts. 77, inc. II, e 79 do Cód. Proc. Penal. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que também a ação penal pública é indivisível.

Neste particular, o sistema do código se apresenta bastante lógico. Na realidade, vigorando o princípio da obrigatoriedade da ação pública, desnecessário seria dizer que ela deve ser proposta em face de todos os autores e partícipes da infração penal.

Em outras palavras, o princípio da indivisibilidade está abrangido ou compreendido no princípio da obrigatoriedade.

 A indivisibilidade, destarte, é um consectário lógico da obrigatoriedade de agir. É intuitivo” (ob. cit., p. 252).

Note-se que no texto citado não fizemos qualquer distinção entre ação pública incondicionada e condicionada. Tal raciocínio vale também para ação condicionada, vez que, sendo espécie do mesmo gênero, é informada pelos mesmos princípios.

Vale dizer, toda e qualquer ação penal pública é indivisível, apenas a violação a este princípio não tem as mesmas consequências da ação privada, que é facultativa e disponível.

Assim, não faz nenhum sentido “estender o princípio da indivisibilidade de ação privada para a ação penal pública condicionada”.

Antes de ser indivisível, a ação pública condicionada é obrigatória, presente a condição especial exigida pela lei para o seu regular exercício, devendo o Ministério Público denunciar todos contra quem tiver alguma prova no inquérito que o habilite a fazer a imputação de um fato criminoso. Se, nada obstante a presença desta prova, o Promotor de Justiça não acusa, estaremos diante de um arquivamento em face do indiciado não incluído na denúncia, seja arquivamento expresso, seja arquivamento implícito.

Surgindo tal prova nova, no curso da instrução criminal, a hipótese deve ser tratada segundo a sistemática do aditamento à denúncia e do controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, consoante esclarecemos em nossa monografia denominada Ação Penal Pública – Princípio da obrigatoriedade, Rio, Forense, 1988, pp. 109-111.

Dentro desta sistemática é preciso distinguir:

a) se a prova já existia no inquérito quando foi oferecida a denúncia, a não inclusão de um coautor na peça acusatória importa em arquivamento, expresso ou implícito; para tanto existe o controle judicial do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesta hipótese, o aditamento para inclusão do coautor não denunciado exige prova nova, nos termos da Súmula nº 524 do STF;

b) se a prova de participação de outra pessoa não denunciada surgir durante o processo, abre-se a hipótese deaditamento, que se apresenta obrigatório, nos termos do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, podendo o Juiz exercer o controle sobre o não aditamento na forma do art. 28 do Código de Processo Penal. (estamos nos referindo à redação primitiva deste dispositivo legal, ainda em vigor em face de decisão liminar do S.T.F.). Nada mais além disso.

Em resumo, vale repetir: tratando-se de ação penal pública, condicionada ou incondicionada, a não inclusão de um autor ou partícipe de crime na denúncia jamais pode anular o processo já instaurado, cabendo ao Juiz fiscalizar o cumprimento do princípio da obrigatoriedade nos termos do art. 28, ainda que no curso do processo, em face de negativa do promotor em aditar a denúncia, em que pese a nova prova surgida.

Não restando aditada a denúncia, válido continua o processo, regularmente instaurado contra o autor da infração penal, cabendo extrair peças dos autos para processar o partícipe, tão logo surja outra prova e desde que não ocorra a prescrição. O que não faz sentido é a impunidade de um ser estendida ao outro, sendo ação pública, obrigatória e indisponível.

A prevalecer o entendimento do Tribunal, o não aditamento seria uma forma indireta para dispor da ação já proposta pelo Ministério Público (sic).

Por outro lado, mais um grave equívoco deve ser apontado no aresto ora comentado.

Não havia como se exigir nova representação contra o coautor do crime narrado na denúncia, motivo pelo qual não se consumou a decadência decretada.

Em verdade, feita a representação por parte do ofendido, narrando o fato contra si perpetrado, desnecessário fazer outras representações se surgir prova de que outras pessoas também participaram da conduta delituosa.

Assim, laborou em erro, concessa venia, o acórdão quando declara ter havido decadência em razão de o ofendido não ter oferecido outra representação para que o Ministério Público pudesse aditar a denúncia. O aditamento poderia ter sido feito, sendo que a sua não realização incorre nos efeitos supraestudados.

Partiu-se de uma premissa falsa, qual seja, de que a representação criminal refere-se ao sujeito ativo da infração penal, motivo pelo que, para cada coautor ou partícipe do delito, teria que ser apresentada nova representação.

Ora, como se sabe, a representação tem caráter objetivo, autorizando o Ministério Público a instaurar a persecução penal contra todos, sejam já conhecidos, sejam os autores ou partícipes que venham a ser descobertos posteriormente. Esta é a correta lição do Prof. Fenando da Costa Tourinho Filho, in verbis:

Feita a representação apenas contra um, poderá ser oferecida denúncia contra os demais partícipes do mesmo fato? Claro que pode, e isto em decorrência do princípio da indivisibilidade da ação penal. No Código italiano há até preceito expresso. É o art. 123: La querela si estende didiritto a tutti coloro che hanno commesso il reato. Assim, se M foi estuprada por A e B e a representação feita apenas contra A, a denúncia deve abranger a ambos”. (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1986, 8ª edição, 1º vol., p. 317).

Cabe salientar que, condicionada ou não, a ação é pública. Apenas o legislador condicionou o seu exercício à manifestação de vontade do ofendido, que poderia restar mais prejudicado ainda com a instauração da persecutio. Agora, a representação não outorga ao ofendido o poder de escolher quem vai ser denunciado pelo Ministério Público, que deve acusar todos contra quem existir prova mínima que forneça justa causa à ação penal.

Por tudo que ficou exposto, não era de se exigir nova representação, motivo pelo qual não ocorreu decadência e nem deveria ela acarretar a nulidade do processo instaurado contra o autor da infração primitivamente descoberto.

De qualquer sorte, o aresto suscita questões absolutamente relevantes e sedutoras, não podendo deixar de merecer maior e profunda reflexão por parte dos estudiosos.

Este é o motivo que nos move, procurando fomentar salutar debate, sempre numa perspectiva de aperfeiçoar o sistema processual penal.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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