O precedente qualificado no processo civil brasileiro: formação, efeito vinculante e impactos procedimentais (parte 1)

29/05/2018

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

1 – Considerações iniciais

O Direito Processual brasileiro, na busca por uma prestação jurisdicional mais justa, efetiva e em tempo razoável, vem passando por uma modificação de paradigma que, progressivamente, passa a valorizar a jurisprudência formada pelas cortes superiores ou mesmo órgãos de 2º grau de jurisdição.

Essa valorização é reflexo do reconhecimento da jurisprudência e do precedente judicial como fonte do direito[1] e da necessidade sistemática, imposta pelos princípios da isonomia e da segurança jurídica, de que o Poder Judiciário ofereça a mesma resposta a todos os jurisdicionados que se encontrem em situação jurídica idêntica no plano do direito material.

O processo, deve ser entendido como instrumento do direito material, sendo decorrência dessa instrumentalidade a necessidade de uma resposta jurisdicional uniforme para todos os casos que envolvam a mesma questão jurídica[2].

A valorização da jurisprudência e a busca pela uniformização de entendimentos jurisprudenciais já era sentida no sistema processual na vigência do Código de Processo Civil de 1973, onde destacava-se, por exemplo os arts. 476 a 479 do que, desde a redação original do Código estimulava e estabelecia o procedimento de uniformização da jurisprudência.

As reformas implementadas no sistema processual – não apenas codificado mas também constitucional – maximizaram este papel, sendo o constante aumento do protagonismo da jurisprudência e sua influência no processo um dos traços característicos das alterações pelas quais passou o CPC/73 e a própria Constituição Federal.

Exemplo desta clara e sempre crescente valorização da jurisprudência podem ser encontrados na Lei n. 9.756/1998 que, alterando o art. 557 do CPC/73, passou a autorizar o relator julgar monocraticamente o recurso com base em “súmula ou jurisprudência dominante” e na Lei n. 11.276/2006 que, ao inserir o §1º ao art. 518 do Código, passou a permitir ao juiz não “receber a apelação” quando a sentença estivesse em conformidade com súmula dos tribunais superiores[3].

Igualmente, reformas constitucionais, notadamente a implementada pela Emenda Constitucional 45/2004, passaram a estabelecer formalmente um efeito vinculante à jurisprudência sumulada pelo Supremo Tribunal Federal por meio do procedimento estabelecido no art. 103-A, acrescentado ao texto constitucional pela referida emenda.

Esta marcha rumo à redefinição do papel da jurisprudência e dos precedentes e sua crescente influência no sistema processual é ainda mais potencializada pelo Código de Processo Civil de 2015.

O novo Código parte da premissa que a uniformização jurisprudencial sobremaneira necessária, pois, ao mesmo tempo, prestigia o princípio da isonomia, gera segurança jurídica (no sentido de previsibilidade), e além disso, autoriza legitimamente a aceleração da prestação jurisdicional, em casos semelhantes, gerando maior efetividade processual.

Em última análise, a observância das súmulas e dos precedentes, sobretudo aqueles expressamente tipificados pelo legislador, por gerar maior segurança jurídica, evita a sensação de que a mesma situação jurídica é tutelada por mais de uma forma pelo ordenamento jurídico, em um mesmo momento, a par de combater frontalmente um mal que chegou a ser denominado de “jurisprudência de loteria”.

Ademais, a utilidade da jurisprudência formalmente uniformizada vai além do prestígio da igualdade, podendo gerar uma tutela jurisdicional mais efetiva ao legitimar a concessão de tutela de evidência, com base no art. 311, inc. II ou, dispensar o reexame necessário, nos termos do art. 496, §4º, ambos do Código de Processo Civil.

Além disso, a jurisprudência uniforme pode ser um bom parâmetro para a caracterização de condutas de má-fé, nos casos em que o incidente ou recurso tenha por base um entendimento já afastado pela jurisprudência formalmente uniformizada e consagrada em súmula ou precedente qualificado.

Portanto, valorizar os precedentes é viabilizar um processo mais ágil, justo e équo, possibilitando, naqueles processos que discutam causas idênticas já pacificadas pelos tribunais, cortes procedimentais e a repetição do entendimento consagrado.

Teresa Arruda Alvim[4], relatora final do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, elenca três vantagens advindas desse sistema de valorização de precedentes, a saber: a) mais efetividade do processo, na medida em que, uma vez decidida a questão de maneira reiterada, o gasto de atividade jurisdicional e das partes tende a ser menor na solução da mesma questão em casos futuros; b) maior respeito ao princípio da isonomia, por estar dando-se tratamento igual, ou seja, a mesma resposta jurisdicional a casos idênticos; e c) maior previsibilidade e tranquilidade para o jurisdicionado, representações do princípio da segurança jurídica que estaria sendo prestigiado a partir do momento em que há um sistema voltado a garantir que a resposta do Poder Judiciário, órgão constitucionalmente competente para dar a última palavra sobre a interpretação e aplicação da lei, é respeitada nos casos pendentes e terá respaldo pela aplicação futura.

Nesse sentido, especialmente deve ser destacado o art. 926 do CPC, que obriga os tribunais a uniformizarem sua jurisprudência e determina que estes a mantenham estável, íntegra e coerente.

Ademais, o art. 927 do CPC arrola uma série de pronunciamentos que devem ser obrigatoriamente observados pelos juízes e tribunais, quais sejam: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

O dispositivo nos permite concluir que a existência de um dos pronunciamentos nele arrolados influenciam diretamente no conteúdo da decisão judicial dos demais processos que versem sobre o tema já sumulado ou consagrado em um dos precedentes ali identificados.

De uma certa maneira, a expressa referência àqueles pronunciamentos sugerem que estes precedentes e os enunciados de súmulas sejam a forma sugerida pelo Código pela qual os tribunais cumpram o dever estabelecido no art. 926, qual seja, o dever de uniformizar a jurisprudência.

De outro lado, o sistema do Código de Processo Civil estabelece que, uma vez existentes estes precedentes, restam legitimados cortes procedimentais que aceleram o procedimento como é o caso, por exemplo, da dispensa do reexame necessário prevista no art. 496, §4º - que acelera o trânsito em julgado -, do julgamento monocrático do relator a teor do art. 932, incs. IV e V  - que dispensa a sessão de julgamento e os atos nela praticados, como a sustentação oral e o voto dos demais magistrados - e o julgamento liminar de total improcedência nos termos do art. 332 que autoriza a prolação da sentença de mérito logo quando da análise da petição inicial. 

2 – Jurisprudência constatada versus jurisprudência formalizada

É de se destacar que tanto a eficácia vinculante quanto a potencialidade de impactar no procedimento e permitir a “aceleração” procedimental fulcrada na prévia uniformização só é autorizada pelo Código quando o entendimento estiver consagrado em “súmula” e em alguns precedentes que, por esta razão, devem ser tidos como “precedentes qualificados”[5].

Neste aspecto destaca-se uma sensível diferença em comparação ao sistema do CPC de 1973 que autorizava a aceleração do procedimento com base em “jurisprudência dominante” - não formalmente enunciada portanto - (art. 557 CPC/73) e em “precedentes do próprio juízo” (art. 285-A) que não possuíam qualquer qualidade ou peculiaridade digna de destaque no que tange ao procedimento de sua formação.

Portanto, um dos traços mais marcantes do sistema de valorização da jurisprudência do Código de Processo Civil brasileiro, que inclusive o distingue da maioria dos sistemas do mundo é a (hiper) valorização de alguns (poucos) pronunciamentos tipificados em lei, tidos pelo sistema como aptos a retratar a jurisprudência do tribunal sobre determinada questio juris e a vincular os demais juízes e tribunais.

Esta tipologia própria do sistema brasileiro distingue, claramente, a jurisprudência constatada da jurisprudência formalizada.

Por “jurisprudência constatada” deve ser entendida a conclusão que se extrai a partir da análise do conjunto de julgados proferidos por tribunais sobre a mesma matéria, podendo esta, a depender do grau de pacificação, ser considerada divergente, pacífica ou dominante. Nesse sentido, a jurisprudência é, sobretudo, uma constatação fática acerca da existência de um conjunto de julgados sobre determinada matéria

Já a jurisprudência formalizada deve ser compreendida como aquela formalmente enunciada em súmula ou consagrada em um precedente qualificado, ambos produzidos em procedimentos especificamente voltados à consagração de uma tese, ainda que a partir de um caso concreto ou de um conjunto de julgados.

A opção do Código pela jurisprudência formalizada é absolutamente compreensível uma vez que, a conclusão acerca da existência da jurisprudência pacífica ou dominante, de rigor implica a utilização de métodos e critérios estatísticos quando da análise dos dados integrantes do conjunto de julgados, que variam não apenas no sentido das conclusões, como também no tempo. Por isso, um entendimento quantitativamente expressivo pode se revelar superado pela jurisprudência mais recente, assim como a consideração do universo de julgados pode ser selecionado de acordo com o interesse daquele que busca identificar a “jurisprudência pacífica”.

A prática forense, quer quando da referência à “jurisprudência constatada” em petições e recursos, quer quando da utilização desta na fundamentação das decisões, via de regra, não se arvora nessa metodologia estatística adequada e se limita a colacionar julgados que consagram o interesse do demandante ou o entendimento do julgador. Nestes casos, não raro, há uma pesquisa prévia e exposição seletiva de julgados, muitas vezes não representativos da jurisprudência, quando não superados ou claramente minoritários.

Toda a análise estatística e eventuais risco de manipulação de dados e exposição seletiva de julgados como representativos da jurisprudência tornam-se desnecessários na hipótese da formalização da jurisprudência por parte do tribunal via edição de súmula ou de precedente qualificado uma vez que o papel sistemático destes pronunciamentos judiciais é exatamente retratar formalmente a jurisprudência pacífica ou dominante do tribunal sobre uma dada matéria

De rigor, esta análise estatística de julgados e posicionamentos da corte deve ser realizada no procedimento de formação destes pronunciamentos, vez que estes são especificamente vocacionados a esta discussão.

Nessa linha, percebe-se que a vantagem da formalização do entendimento é dupla pois a um só tempo: a) permite que a discussão acerca do domínio ou pacificação da tese se dê em um ambiente procedimental adequado e, especialmente vocacionado à discussão da tese em si, assim como da própria análise da jurisprudência existente, e; b) uma vez concluído, evita a necessidade de análise estatística do conjunto de julgados e possíveis distorções decorrentes desta análise muitas vezes enviesada e influenciada por interesses.

Por súmulas, devem ser entendidas a representação formal da jurisprudência pacífica, ou dominante, que emerge de um procedimento especificamente voltado ao reconhecimento da pacificação ou domínio do entendimento jurisprudencial.

Já os precedentes qualificados devem ser entendidos como julgamentos proferidos em procedimentos previstos em lei voltados a formação de uma precedente, apto à expressar o entendimento do Tribunal sobre uma questão de direito e a ser aplicado nos demais casos que envolverem a mesma matéria.

Estes precedentes são qualificados, não apenas pelo fato de serem vinculantes e por legitimarem cortes procedimentais, mas também porque os procedimentos previstos para sua formação são dotados de uma maior influência dos princípios do contraditório, motivação e publicidade.

Nesse sentido, é nítido da análise do sistema do Código a preocupação em maximizar a publicidade, o contraditório e a motivação nos procedimentos voltados à formação do precedente qualificado, o que pode se depreender da leitura dos arts. 979, 983, 1.038, 1.040, por exemplo.

Desta feita, tais precedentes podem ser tidos por qualificados: a) pela sua autoridade (força) e capacidade de influenciar nos demais processos que versem sobre a mesma questão jurídica, e; b) pela maior qualidade do procedimento de sua produção.

Os procedimentos de formação de precedentes qualificados são regulamentados pelo próprio Código de Processo Civil, notadamente nos arts. 947; 976 à 986 e arts. 1.036 à 1.040.

Já em relação às súmulas, o Código se limita a determinar que os tribunais a editem mas não se preocupa em estabelecer o procedimento de edição, apenas dispondo que as mesmas serão editadas “na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno (art. 926, §1º).

A par de propor genericamente a valorização da jurisprudência e incentivar a adoção de súmulas de jurisprudência dominante no já comentado art. 926, o CPC 2015 instituiu incidentes voltados a formar precedentes qualificados.

O primeiro deles é disciplinado no art. 947, que substitui e faz as vezes de dois incidentes previstos no CPC/1973: o disciplinado no art. 476 e seguintes; e outro, com sutis modificações, previsto no art. 555, §1º, do CPC, introduzido pela Lei 10.352/2001.

No CPC/2015, o incidente de uniformização de jurisprudência, até então duplamente tratado, restou unificado.

Prevaleceu a sistemática do art. 555, §1º, do CPC/1973, pois o art. 947, §4º do CPC/2015 admite que o incidente seja suscitado não apenas quando já caracterizada a divergência, voltando-se a compô-la, como também para prevenir a possível divergência capaz de surgir a partir da multiplicidade de demandas com fundamento em idêntica controvérsia.

O verdadeiro pressuposto de cabimento, portanto é o fato de a causa versar sobre uma a) relevante questão de direito, b) com grande repercussão social, c) sem repetição de processos.

Diferentemente da letra do art. 476, e nos termos do 555, §1º, do CPC/1973, uma vez verificado o cabimento do incidente, o colegiado maior competente para julgá-lo não apenas se pronuncia sobre o ponto polêmico como também perfaz o julgamento do recurso que veiculou a tese, em uma verdadeira assunção de competência, para usarmos a expressão consagrada na doutrina[6] e na própria lei.

O artigo em comento não estabelece expressamente qual órgão colegiado do tribunal possui competência para o julgamento do incidente de uniformização, deixando isso a cargo do regimento interno de cada tribunal.   Tal norma regimental, por sua vez, deve atribuir a competência ao órgão necessariamente representativo de todo tribunal ou de todos órgãos fracionários competentes para a análise da matéria, notadamente o plenário, a corte especial, ou mesmo seções especializadas que abarquem todas as câmaras ou turmas competentes em relação à matéria.

Vale destacar a previsão do §3º do art. 947 que estabelece que “O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários”.

Desta feita, o acórdão proferido na assunção de competência possui efeito vinculante e nessa medida pode ser perfeitamente categorizado como um precedente qualificado.

Tal vinculação é coerente com o sistema de valorização dos precedentes, e zelo pela estabilidade da jurisprudência, até porque, por se tratar de frações, tais órgãos são parte de um todo, o tribunal, que, através de sua composição máxima com competência para a matéria, firmou o entendimento em determinado sentido.

A tese contrária, ou seja, aquela que admite a possibilidade de órgãos fracionários aplicarem entendimentos diferentes do decidido em sede de incidente de assunção de competência, esvazia o sentido do mesmo, e ofende a isonomia, permitindo o tratamento diferente de dois sujeitos em uma mesma situação no plano do direito material, além de atentar contra a segurança jurídica e a própria legalidade.

Ademais, o inconformismo da parte derrotada com fulcro em uma tese rechaçada em sede de incidente de assunção de competência, certamente, gerará a interposição de outros recursos ou mesmo ação rescisória, ferindo os princípios da celeridade, eficiência e economia processual.

Por estas razões, o precedente formado quando do julgamento da assunção de competência é vinculante e caso desobedecido por decisão de juiz, relator ou qualquer órgão fracionário do tribunal pode ser impugnado por reclamação, conforme dispõe o  art. 988, inc. IV, do Código.

Vale destacar que, a técnica prevista no art. 947 tem lugar quando a questão de direito, não obstante possuir relevância social, não for caracterizada como repetitivo, ou seja, contida em um significativo número de processos.

Isso porque para o trato das questões repetitivas, o CPC 2015 institui e regulamenta outros mecanismos de formação de precedentes qualificados, previstos no art. 928, classificados como “julgamento de casos repetitivos” cujas espécies são: a) incidente de resolução de demandas repetitivas; b) recursos especial e extraordinário repetitivos.

A formação de precedentes qualificados por meio de julgamento de casos repetitivos será objeto da 2ª parte do presente trabalho.

Notas e Referências

[1] José Rogério Cruz e Tucci, Precedente judicial como fonte do direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 18.

[2] Em nosso Introdução ao Estudo do Direito Processual Civil (MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. São Paulo: Saraiva, 2015, p. XX) destacamos a dupla perspectiva do princípio da igualdade no processo civil que, a par de garantir “paridade de armas” às partes litigantes, exige que “o processo deve ser um instrumento capaz de produzir respostas jurisdicionais uniformes a todos que se encontram na mesma situação jurídica no plano do direito material”.

[3] Sobre as técnicas processuais previstas no CPC de 1973 fulcradas na prévia uniformização da jurisprudência, nosso: MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. A Jurisprudência uniformizada como estratégia de aceleração do procedimento, in Direito  Jurisprudencial, WAMBIER. Teresa arruda Alvim (coord.)

[4] Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória, 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 210.

[6] Sidnei Agostinho Beneti, Assunção de competência e fast-track recursal, Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 171, maio 2009, p. 9.

 

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