Por Gisela Aguiar Wanderley - 09/09/2015
Quase quatro anos após o reconhecimento da repercussão geral do tema, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 635.659/SP, relativo à constitucionalidade do artigo 28 da Lei n. 11.343/06, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal como infração penal. Após as sustentações orais dos representantes das partes, do Ministério Público Federal e dos dez amici curiae admitidos, o Ministro Relator, Gilmar Mendes, proferiu voto [1] no qual dá provimento ao recurso extraordinário para declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, desse dispositivo legal. Após, interrompeu-se o julgamento em função do pedido de vista do Ministro Luiz Edson Fachin.
O julgamento tem causado rebuliço. Suscita indagações, dúvidas e esperanças. Com efeito, sabe-se do potencial que apresenta para alterar a prática de polícias e tribunais brasileiros no tocante ao tratamento penal do usuário de entorpecentes e, quiçá, representar um pontapé inicial para a modificação da política de drogas adotada no país.
Esse cenário é viabilizado, observe-se, pela gritante distância assumida entre o entendimento esposado pelo Ministro Relator Gilmar Mendes em seu voto inaugural – em que se manifesta pela inconstitucionalidade do dispositivo – e as orientações que, desde a edição da Lei n. 11.343/06, têm sido adotadas na prática cotidiana de juízes e demais tribunais do país e utilizadas para amparar o tratamento repressivo do usuário de drogas.
Ao exercer ao controle de constitucionalidade da norma, o Ministro Gilmar Mendes observou, em síntese, que o tipo penal previsto no artigo 28 da Lei n. 11.343/06 viola o direito à privacidade e à intimidade, bem como os princípios da proporcionalidade, da ofensividade e da lesividade, haja vista que não ostenta aptidão para proteger os bens jurídicos declarados como tutelados, quais sejam, a saúde e a segurança públicas.
É curioso notar que essa orientação, apoiada em uma análise da norma em abstrato – vale dizer, dissociada dos elementos fáticos de um caso concreto –, contrasta com o entendimento até então pacífico do Superior Tribunal de Justiça – e recorrentemente seguido pelas instâncias ordinárias –, no sentido de que é inviável aplicar o princípio da insignificância nos casos da prática da infração tipificada no artigo 28 da Lei n. 11.343/06. Isso porque, para sustentar essa conclusão, aduz o STJ que se trata de crime de perigo abstrato, para cuja configuração é dispensável a comprovação da lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico, o que assim tornaria irrelevante a análise dos vetores para a aplicação do princípio da insignificância [2] a esse tipo de crime, em um raciocínio que acaba por dispensar, em tais casos, a aferição da lesividade/ofensividade da conduta para a análise de sua tipicidade material [3].
Delineia-se, assim, uma nítida divergência: para o Ministro Gilmar Mendes, as normas que tipificam crimes de perigo abstrato não podem escapar ao controle de constitucionalidade, por meio do qual se analisa, ainda que sob contornos abstratos, a lesividade/ofensividade da conduta descrita na norma e a proporcionalidade da tipificação penal, com base na aptidão de afetação do bem jurídico tutelado e de efetiva proteção pela criminalização da conduta. Nesse sentido, destaca o Ministro que essa análise é imprescindível nos casos de crimes de perigo abstrato, a fim de evitar a concessão de poderes irrestritos ao legislador para tipificar como crimes condutas desprovidas de periculosidade, em desatenção ao papel subsidiário do direito penal no ordenamento pátrio. Em contrapartida, de acordo com a jurisprudência dominante capitaneada pelo Superior Tribunal de Justiça, não cabe indagar sobre a lesividade/ofensividade desse tipo de delito em função de se tratar de crime de perigo abstrato: assim, aduz-se que nem mesmo a insignificância da conduta poderia ser reconhecida em cada caso concreto pelo órgão julgador, de modo que a análise da tipicidade reduz-se ao mero enquadramento formal da conduta à descrição da norma incriminadora.
Assim, o cenário em que o julgamento do n. RE 635.659/SP se insere é marcado pela disseminada aplicação irrefletida da legislação penal pelo Judiciário a partir de uma equiparação rasa entre tipicidade penal e tipicidade legal (formal ou aparente) e por uma incompreensão de conceitos e categorias dogmáticas básicas do direito penal – a exemplo dos princípios supracitados, da definição de bem jurídico e do próprio conceito de crime de perigo abstrato. Essa conjuntura, note-se, é viabilizada pelo acúmulo de acórdãos frágil e superficialmente fundamentados, que são repetidos e reiterados a despeito da carência de sustentação teórica e da desarmonia com o texto constitucional.
Nesse passo, a relevância assumida por esse julgamento escancara o caráter ainda vacilante da compreensão e da aplicação de princípios e categorias basilares do direito penal por juízes e tribunais brasileiros. Em tal contexto, depositam-se as já escassas esperanças na atuação do STF como última barreira em face da cotidiana utilização do direito penal como prima ratio. Não obstante, é de se ressaltar que, houvesse análise cautelosa do preenchimento dos requisitos para a aferição da tipicidade material e para a aplicação do princípio da insignificância em cada caso concreto, com a necessária avaliação da lesividade e da ofensividade da conduta praticada pelo agente em face do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, não causaria tanta expectativa e tanto impacto o julgamento do RE n. 635.659/SP pelo Supremo Tribunal Federal.
Notas e Referências:
[1] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE635659.pdf>
[2] Os quatro vetores para a aplicação do princípio da insignificância foram fixados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n. 84.412/SP, de relatoria do Ministro Celso de Mello, em 2004. São eles: mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente; e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
[3] Nesse sentido, confira-se, por todos: RHC 35.072/DF, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 18/11/2014. Esse entendimento é aplicado também em outros casos envolvendo crimes de perigo abstrato, como de posse/porte irregular de arma (Lei n. 10.826/03, artigos 12, 14 e 16) ou de desenvolvimento de serviços de telecomunicação em caráter clandestino (Lei n. 9.472/97, artigo 183). Confiram-se: AgRg no AREsp 659.737/PA, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 06/08/2015; HC 317.768/SP, Rel. Ministro Leopoldo de Arruda Raposo, Quinta Turma, julgado em 23/06/2015; AgRg no RHC 54.094/RO, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 30/06/2015, DJe 03/08/2015.

Gisela Aguiar Wanderley é Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB); Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); Advogada.
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