Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
Despertou cedo demais, permaneceu na cama, apertou as pálpebras na vã tentativa de voltar a dormir. Cambaleante, levantou-se de pijama, dirigiu-se à sala ao lado. A mesa do café bem-posta, os jornais ordenados milimetricamente, os comprimidos ao lado da xícara. O cão, seu parceiro, o aguardava a rosnar.
Com o passar dos anos, a memória falha, o tempo apaga, tudo se esquece. Ele bem gostaria disso. Que o removessem do pensamento, o dissipassem da memória. Afinal, passaram-se cinco anos desde que foi presidente. Acreditava no direito ao esquecimento. Por isso ansiava, mas seu nome continuava sendo mencionado, tripudiado, esculhambado. A mídia não parava de açoitá-lo.
Ao candidatar-se à presidência, as chances eram mínimas. Seus desejos, tornar o país uma potência, proteger a família, e claro a balela de sempre, combater a corrupção. Para tanto, conseguiu o apoio dos pastores, dos bancos e dos crédulos. Alardeava que a melhor fase do país foi o tempo em que a farda verde-oliva comandara a nação.
Ensinou os filhos a serem “cidadãos de bem”. Pergunta-se até hoje onde errou.
Ao chegar ao poder elevaria o país ao primeiro mundo. Era bom de promessas. Admirava com fervor o Tio Sam. Sua política contemplaria a maioria, por maioria entendia os que incentivavam a economia ou apoiavam suas sandices. Quanto às minorias, ruminava, teriam de se adaptar ou sumir.
O projeto de segurança: combater os criminosos, principalmente os pés de chinelos. Armaria “os cidadãos de bem”, assim eles mesmos se encarregariam da própria proteção. Contariam, obviamente, com o seu apoio moral.
No início, a oposição pouco se importou, não acreditou que ele tivesse a mínima chance. Eleitores desiludidos são capazes de imensas asneiras. Acreditaram nas lorotas mais estapafúrdias. A mentira, irmã da ignorância, prevaleceu, e o sujeito se elegeu.
Chegou ao topo da carreira política. O messias. Ao subir a esplanada, o ego resplandecia.
...
Serviu-se do suco de maracujá. Ultimamente bebia aos litros. Colocou os óculos, folheou o primeiro jornal, concentrou-se numa página, franziu a sobrancelha, arregalou os olhos, as mãos tremeram, atirou o jornal ao chão e assim sucessivamente até o último. Arrancou os óculos, bateu na mesa.
Cretinos! Continuam me perseguindo! Devia ter feito uma limpa, ordenado o cala boca, fuzilado todos enquanto podia.
A governanta bate à porta.
— Precisa de algo, Excelência?
— Me esqueça!
Pois não, Excelência. — fecha a porta suavemente.
Dirige-se ao cão.
Foi difícil exercer o comando. No primeiro ano de mandato, percebi, o país era um abacaxi. Os ministros que escolhia, um bando de Busquei os melhores, alías os menos piores. Fazer o que? Tudo piorou por conta da praga vinda da “ditadura comunista”. Fez a economia parar, matou meio mundo de gente. A nação virou o muro das lamentações. Queriam que eu desse conta! Jornalistas martelavam a mesma pergunta: “O que irá fazer? O que irá fazer?”Acaso eu tinha cara de coveiro? Indiquei um tratamento eficaz, um bom vermífugo e outro remédio lá, capaz de matar tudo. Uns velhinhos não resistiram, mas estavam mesmo com o pé na cova. A oposição insistia na compra de vacinas. Porcaria de vacinas! A imunidade de rebanho dava conta.
O cão voltou a rosnar. O ex-presidente levantou-se e prosseguiu o discurso ao vento.
— Até ao tribunal internacional me denunciaram por crime contra a humanidade. Veja só?
Batem à porta novamente. O cão late.
— O que é agora?
— Seus remédios, Excelência.
— Deixa aí. Alguém me ligou?
— Não, Excelência. Licença.
Engole os comprimidos, observa o céu nebuloso. Tenta abrir a janela, empurra. Um trovão o assusta, o cão late.
— Ai, meu dedo! Dia infeliz. Todos me abandonaram, menos você.
Olha para o cachorro com languidez, tenta alisá-lo. O cão abocanha o dedo ferido.
— Desgraçado! Vou te dar um tiro!
O american bully escancara a boca mostrando as presas. Ele sobe na cadeira, grita. Um segurança armado empurra a porta. O cão abaixa o rabo e se dirige lentamente ao funcionário, que o prende e coloca a focinheira.
A empregada entra correndo com a caixa de primeiros socorros.
— Excelência, está bem? Ligo para o médico?
— Some com esse bicho! Estraçalhou meu dedo. A quarta vez que tenta me matar.
— Talvez fosse melhor não mantê-lo tão próximo, Excelência.
A moça faz o curativo no pequeno ferimento.
— Nem no cão posso confiar. — Geme.
A governanta suspira e olha para o teto.
— Mais alguma coisa, Excelência?
— Me deixem só.
Volta ao quarto. Lembra-se do revólver guardado na gaveta, presente de uma grande empresa de armas da qual fez propaganda.
“Um dia acabo com tudo”, pensa consigo mesmo.
Se ao menos alguém fizesse isso por mim...
...
O desgoverno. Inflação nas alturas, o povo alimentando-se de ossos. Do mesmo modo que ele alcançou o poder, caiu de forma fulminante. As atrocidades que dizia, uma metralhadora desgovernada.
De fato ele levou a nação a alcançar o primeiro lugar no mundo. Primeiro em miséria. Terminou impichado. A primeira dama o trocou por um pastor “amigo do casal”.
Dois dos filhos estão presos, condenados por desvio de dinheiro. Os restantes retiraram o nome da família na tentativa de não serem reconhecidos. Comentam que um deles mudou de sexo e vive no exterior.
O ex-presidente tentou esconder-se em país diminuto, no oceano pacífico. Acreditou que lá não seria identificado. Mal aterrissou e foi recebido com vaias e tomates. A severa dificuldade de adaptação à outra cultura tornou impossível o plano. Mesmo em um país diminuto viu seu rosto refletido nos programas de comédia. Voltou à pátria tentando passar despercebido.
Grande parte da fortuna que afirma ter adquirido com suor do trabalho foi obrigado a devolver aos cofres públicos. O restante torra com inúmeros processos que responde. Hoje, o cão é sua única companhia.
Uma coisa é certa, se sonhou em entrar para a história, isso ele conseguiu. Para sempre seria lembrado como o pior dos piores.
Imagem Ilustrativa do Post: person with hand above water // Foto de: Mishal Ibrahim // Sem alterações
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