O Peter Pan consumista: breves notas sobre a infantilização a partir de Benjamin R Barber

10/01/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A abundante produção de bens propiciada pelo desenvolvimento da técnica ensejou a emergência do capitalismo de consumo, caracterizado pela aquisição de bens e serviços produzidos justamente para manter o próprio capitalismo em movimento. Daí a necessidade de fomentar o consumo incessante a partir da formação de um público consumidor ávido e compulsivo, sempre em busca do produto da moda, do último lançamento, da mais recente e inebriante promessa de felicidade.

Nesse contexto, fenômenos como (1) a obsolescência dos produtos, (2) a adultização das crianças e (3) a infantilização dos adultos despertam a atenção de observadores da sociedade contemporânea. Destaca-se, na coluna desta semana, a concepção de etos infantilista, formulada por Barber, e suas consequências para o exercício da cidadania.

De acordo com o teórico político, no capitalismo de consumo, a homogeneização relacionada ao consumismo global é caracterizada pelo etos infantilista, formatando – especialmente por meio da publicidade – consumidores infantis e impetuosos, motivados por pseudonecessidades. A ideia de infantilização aponta, assim, ao mesmo tempo, para a “estupidificação dos bens e dos compradores” e para a conquista das crianças como consumidores. O etos infantilista molda “a ideologia e o comportamento da nossa sociedade radicalmente consumista”, atendendo às demandas do capitalismo de consumo[1].

Uma vez que a desigualdade própria do capitalismo não permite que os pobres se tornem consumidores, os adultos – do primeiro mundo especialmente, mas não só – devem ser estimulados para o consumo desmedido. Logo, é necessário, para que a lógica de consumo se mantenha, que a infantilidade perdure e por isso o etos infantilista é fomentado por aqueles que se dedicam à produção e comercialização de bens. Induzir os adultos “a permanecer infantis e impetuosos em seus gostos ajuda a assegurar que eles comprem os bens do mercado global destinados a jovens indolentes e prósperos” [2].

Evidente neste ponto o papel da publicidade para criar necessidades e estimular as vontades de um público que não deve ser satisfeito jamais. Cabe recordar da febre do Pokenom Go em 2016, dos livros para adultos colorirem em 2017, dos games e das grandes produções cinematográficas sobre heróis na sequência[3]. Produtos que, pode-se supor, muito agradariam Peter Pan, o menino que não quer crescer e incansavelmente busca aventuras, imaginado por Barrie no limiar do século XX.

A concepção de etos infantilista permite compreender as cifras exorbitantes que movimentam alguns segmentos do mercado, especialmente o setor de entretenimento. Com efeito, o faturamento do mercado de games no Brasil chegou a 1,5 bilhão de dólares no ano de 2018. A previsão é de contínua ascensão, sendo o mercado de jogos o segmento que mais crescerá até 2022, ao lado da publicidade digital[4]. Por sua vez, os filmes de super heróis e filmes infantis compõem a lista das maiores bilheterias de 2019, no Brasil e no mundo[5].

Outro mercado que parece alheio à crise econômica brasileira é o segmento de estética que, prometendo enganar o tempo, cresceu aqui 567% nos últimos cinco anos e movimentou 47,5 bilhões de reais em 2018[6]. Ora, a ode à eterna juventude corresponde, segundo Barber, a uma “tática de infantilização de adultos para sua manutenção como consumidores”[7] e – os números parecem indicar – é deveras funcional para o sistema capitalista.

Note-se ainda o surgimento dos coaches, fenômeno destacado por Brum como resultado da emergência de uma sociedade composta por adultos que, em infância permanente, necessitam ser guiados nas mais diversas esferas da vida. Surge o mercado de treinadores – ou babás? – especialistas em ensinar o cliente consumidor a “se exercitar, comer, se vestir, namorar, conseguir amigos e emprego, lidar com conflitos matrimoniais e profissionais, arrumar as finanças e também organizar os armários e a mesa de trabalho”[8].

Ocorre que a infantilização não rege somente a vida pessoal do consumidor, do Peter Pan contemporâneo capturado pela lógica mercantil. A infantilização importa em déficit de cidadania e, consequentemente, em fragilização da democracia.

Cidadania e identidade são há muito associadas a capacidade de obtenção de bens e modo de utilizá-los, bem como aos meios de comunicação em massa, mas estes modos se intensificam ao passo em que se verifica uma degradação da política e descrença nas instituições[9]. A identidade política é, quiçá, mais marcada pelo consumo de marcas, de entretenimentos e de ideologias simplistas do que pelo desenvolvimento do pensamento cívico e crítico e pelo exercício da cidadania[10].

A dinâmica do consumo torna o indivíduo mais vulnerável ao controle, posto que “está radicalmente individualizado, e não socialmente inserido e, como consequência, menos livre, em vez de mais livre”. O consumidor infantilizado não é um cidadão. Não é uma pessoa pública que faz escolhas capazes de influenciar a agenda pública e modificar o ambiente social. É, ao revés, uma pessoa privada cuja capacidade de julgamento é reduzida e cujo poder de engendrar mudanças é diminuído. Logo, a ilusão de liberdade privada, forjada pela pseudo liberdade de escolha, dificulta o exercício da liberdade pública[11].

A influência do etos infantilista no cenário político brasileiro pode ser observada na instalação de um debate polarizado, marcado por visões maniqueístas e simplistas. Sobressaem nessa conjuntura casos esdrúxulos, como a incitação ao uso de vestes das personagens heroicas Power Rangers e a contratação da Carreta Furacão para animação de manifestações públicas pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef[12]. Tratam-se, prezado leitor, de exemplos agudos, mas que permitem vislumbrar que, sob o domínio do etos infantilista, “o destino do capitalismo e o destino dos cidadãos já não convergem”[13]

 

Notas e Referências 

[1] BARBER, Benjamim R. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 13-17.

[2] BARBER, op. cit., p. 17-21

[3] ESTAMOS vivendo a época da infantilização? In: Exame. 11 out. 2016. Disponível em https://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/haja-criancice-afinal-o-mundo-esta-infantilizado/. Acesso em 04 jan. 2020.

[4] MERCADO de games no Brasil deve crescer 5,3% até 2022, diz estudo. In: Exame. 3 ago. 2019. Disponível em https://exame.abril.com.br/negocios/mercado-de-games-no-brasil-deve-crescer-53-ate-2022-diz-estudo/. Acesso em 04 de jan. 2020.

[5] ROSA, Natalie. Os dez filmes mais lucrativos de 2019. In: Canaltech. 16 dez. 2019. Disponível em https://canaltech.com.br/cinema/filmes-mais-lucrativos-2019-157021/. Acesso em 04 jan.2020.

[6] Mercado de beleza e estética no Brasil segue em crescimento. 3 abr. 2019. Disponível em https://exame.abril.com.br/negocios/dino/mercado-de-estetica-e-beleza-no-brasil-segue-em-crescimento/. Acesso em 04 jan. 2020.

[7] BARBER, op. cit., p. 27.

[8] BRUM, Eliane. A era dos adultos infantilizados. In: Época. 16 nov. 2009. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI104810-15230,00-A+ERA+DOS+ADULTOS+INFANTILIZADOS.html. Acesso em 04 jan. 2020.

[9] CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. p. 29.

[10] BARBER, op. cit., p. 23-27.

[11] BARBER, op. cit., p. 48 e 68.

[12] ESTAMOS vivendo a época da infantilização? In: Exame. 11 out. 2016. Disponível em https://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/haja-criancice-afinal-o-mundo-esta-infantilizado/. Acesso em 04 jan. 2020.

[13] BARBER, op. cit., p. 30.

 

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