O Peixe Caiu na Rede: (ou) é Defeso o Desvio de Finalidade na Administração Pública? – Por Leonel Pires Ohlweiler

24/03/2016

Na última coluna iniciei a discussão sobre as complexidades do atual momento pelo qual passamos, concordando com a circunstância de vivermos Tempos Difíceis. O Direito Administrativo está em alta, ou seja, os acontecimentos jurídicos, políticos e econômicos têm exercido considerável influência sobre temas antes restritos aos escaninhos dogmáticos ou aos conflitos judiciais entre cidadãos e Administração Pública, como o debate atual sobre o desvio de finalidade ou desvio de poder.

O Caso da Suspensão do Período de Defeso da Pesca.

No mês de março de 2016, o Ministro Luís Roberto Barroso, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.447-DF, não considerou inconstitucional o Decreto Legislativo nº 293/2015, que sustou os efeitos da Portaria Interministerial nº 192/2015. A referida portaria, com a justificativa de definir os períodos de defeso – proibição temporária à atividade pesqueira para a preservação das espécies – suspendeu tais períodos por 120 dias, prorrogáveis por mais 120 dias. O principal argumento utilizado pela Administração Pública para a suspensão do período de defeso foi que a manutenção ensejaria o pagamento do seguro defeso, cujo gasto estimava-se em R$ 1.615.119.288,09 (um bilhão seiscentos e quinze milhões, dezenove mil, duzentos e oitenta e oito reais e nove centavos), além do custo operacional de R$ 3.000.000,00 (três milhões) para a implementação do benefício.

A decisão é muito interessante e considerou que a portaria editada pela Administração Pública Federal incorreu em desvio de finalidade, pois utilizada para fins fiscais. Conforme mencionado, a Nota Técnica DESP/SBFIMMA 074/2015 do Ministério do Meio Ambiente, serviu de base para a edição da portaria e sustação de 5 (cinco) períodos de defeso sem qualquer fundamentação de ordem ambiental, pois tal documento tece considerações estritamente fiscais sobre o número de beneficiários do seguro defeso no ano de 2014.

Aqui residem os motivos pelos quais o Ministro Roberto Barroso entendeu configurado o desvio de finalidade: há indícios robustos de que as razões ambientais não foram aquelas que predominaram na decisão de suspender o período de defeso, violando o princípio constitucional da precaução que a Constituição Federal impôs ao Poder Público ao fixar o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (artigo 225, CF).

Muito embora o artigo 3º da Lei nº 959/2009 atribui ao Poder Executivo a regulamentação do período de defeso, o propósito de tal prerrogativa consiste na conciliação entre o princípio da sustentabilidade dos recursos ambientais e os melhores resultados econômicos e sociais. Além da ausência de estudos técnicos e dados objetivos sobre a situação das espécies cujo período de defeso foi suspenso, associada aos argumentos de índole fiscal, segundo o Ministro do STF, indicam que as consequências ambientais decorrentes da suspensão da vedação à pesca no caso sequer foram considerados.

Resultado: a Administração Pública deixou de observar a própria finalidade para a qual sua competência de editar a portaria foi instituída, ou seja, a preservação ambiental.

O que é isto, o desvio de finalidade?

Sob o ponto de vista jurídico, efetivamente, o artigo 2º, e, parágrafo único, letra e, da Lei nº 4717/65, Regula a Ação Popular, estabelece que são nulos os atos administrativos nos casos de desvio de finalidade e o próprio texto normativo refere as seguintes indicações: o desvio de finalidade se verifica quando agente pratica ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.  O tema admite diversas abordagens, cujo breve espaço desta coluna não comporta. No entanto, refiro (a)os problemas hermenêuticos de o órgão de controle alcançar a subjetividade da autoridade administrativa que praticou o ato, bem como (b)as relevantes questões sobre a objetividade da comprovação do desvio de finalidade.

O resgate da intenção do autor do ato administrativo é tarefa assaz difícil, quando não impossível, sob pena de retornarmos para a vetusta discussão entre subjetivistas e objetivistas, como alude Lenio Luiz Streck[1] em outro contexto, correndo-se o risco de introduzir mais uma vez no Direito Administrativo os traços fortes de voluntarismo. Em contrapartida, não há um sentido em si dentro do ato administrativo praticado, cujo intérprete fundado no paradigma da filosofia da consciência tenha a chave-mestra para resgatar os profundos significados objetivos do texto editado pela Administração Pública.

Na obra clássica de Direito Administrativo, Précis de droit administratif et de droit public, Maurice Hauriou sustenta que o desvio de poder ocorre quando uma autoridade administrativa que tem a competência para a prática do ato, ainda que observe a forma prescrita em lei ou não pratique alguma violação formal da lei, usa do seu poder por motivos outros do que aqueles para os quais o poder lhe foi conferido, isto é, diversos da proteção do interesse geral e do bem do serviço[2].

Ainda que sujeita a críticas, a construção teórica do desvio de poder ou finalidade realizada por Hauriou foi importante tentativa de criar condições para o controle mais efetivo das práticas administrativas formalmente corretas, mas divorciadas do interesse público. Em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo, urge recolocar o tema do desvio de finalidade no âmbito do horizonte de sentido da Constituição, como sugere Lenio Luiz Streck, pois qualquer competência administrativa apenas legitima-se democraticamente quando mantém integridade e coerência com os sentidos constitucionais intersubjetivamente construídos pela comunidade e institucionalizados.

Na linha do entendimento de Ronald Dworkin, a integridade configura-se como ideal político para o Direito (Administrativo), pois para ultrapassar os debates intermináveis entre subjetivistas e objetivistas, impõe-se o ideal da integridade como exigência de o Estado agir segundo o conjunto coerente de princípios[3], no caso, constitucionais. A integridade funciona como elemento relevante para a própria comunidade. Aceitá-la como virtude é determinante para se transformar em comunidade especial, além de protegida contra decisões parciais, fraudes e outras formas de corrupção, eis que há mais espaço para favoritismos quando a vivência não é pautada por princípios coerentes[4].

O caso acima citado é indicativo da importância de contrastar o exercício das competências administrativas a partir das indicações da unidade de princípios constitucionais que orientam determinadas práticas jurídicas, como o instituto do defeso, ou seja, o propósito resulta da construção intersubjetiva segundo a qual a Administração deve utilizá-lo para a efetiva proteção do meio ambiente, materializando-se assim o artigo 225 da Constituição Federal e não garantir maior economia para o Estado, considerando os gastos como o seguro defeso.

O julgamento da ADI 5.447-DF não ofereceu maiores dificuldades para o controle jurisdicional, em virtude de a própria Administração Pública apresentar documento administrativo – Nota Técnica – explicitando os motivos desviantes pelos quais suspendeu o defeso por meio da Portaria interministerial 192/2015, fornecendo amplos subsídios para a conclusão de distanciar-se muito da integridade constitucional dos princípios em matéria ambiental.

Grandes problemas surgem em outros contextos, nos quais não há motivações explicitadas em atos administrativos e capazes de indicar as circunstâncias fáticas do exercício das competências administrativas.

Em tais casos a cautela probatória deve ser redobrada!

As Patologias Administrativas como Indicações de Desvio de Finalidade. 

As dificuldades de comprovação do desvio de finalidade são retratadas por diversos autores e também pela jurisprudência, sendo oportuna a observação de José Cretella Júnior sobre o tema: “Ora, a prova do desvio de poder deve consistir em algo palpável que se projete no mundo jurídico, criando a evidência e fornecendo base para o julgador formar convicção sobre a patologia do ato e proferir a sentença, verberando o vício de vontade do administrador.[5] Laborando com a concepção de patologia, ainda refere o autor que existem sintomas denunciadores  da moléstia que acomete o exercício da competência administrativa quando o ato é praticado com desvio de finalidade, cuja elaboração do diagnóstico desafia a argúcia[6].

Portanto, assim como o ato administrativo praticado com desvio de finalidade configura-se arbitrário, não se pode, apenas em nome de fatores externos ao Direito Administrativo, substituir o arbítrio administrativo pelo judicial, exigindo-se a justificação constitucionalmente adequada, especialmente considerando as indicações fáticas que autorizam a conclusão sobre a presença do vício no ato administrativo.

Na certeza de que o agente público, por razões óbvias, quando pratica o ato administrativo com desvio de finalidade não pretende ingenuamente confessar, José Cretella Júnior aponta algumas indicações: pressa com que o ato foi praticado, inexistência dos motivos apresentados pelo administrador para justificar a decisão tomada, contradição do ato com atos ou medidas, motivação excessiva, alteração dos fatos, precipitação na edição do ato, etc.[7]

De qualquer modo, os debates não terminam por aqui e quando o exercício das competências administrativas entrecruza-se com finalidades econômicas, como no Caso da Suspensão do Defeso, ou político-partidárias, os problemas são mais acirrados, pois como aduz Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero[8], o desvio de poder assemelha-se com a hipótese da fraude, sendo que no âmbito da Administração Pública os seus agentes precisam acostumar-se com algo simples: não há autonomia para o exercício das competências administrativas, isto é, os agentes públicos devem pautar suas decisões a partir da integridade dos princípios constitucionais. Tais indicações foram democraticamente construídas para extirpar patologias administrativas e possibilitar uma boa administração para os cidadãos. Aliás, Ruy Cirne Lima há muito defendeu que a relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente, chama-se relação de administração e “a relação de administração somente se nos depara, no plano das relações jurídicas, quando a finalidade, que a atividade de administração se propõe, nos parece defendida e protegida, pela ordem jurídica, contra o próprio agente e contra terceiros.”[9]

Aqui me parece o ponto fulcral da discussão: o controle sobre o desvio de poder ou finalidade existe para proteção, no caso do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, CF), e guardar o sentido da Constituição, o resto, com todo o respeito, é indevida intromissão de fatores externos no Direito Administrativo.


Notas e Referências:

[1] Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 11edª. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 140.

[2] Précis de Droit Administratif et de Droit Public,Paris: Dalloz, 2002, p. 442.

[3] O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 202.

[4] O Império do Direito, p. 228.

[5] O Desvio de Poder na Administração Pública, 5ªed. Rio de Janeiro, 2002, p. 85-86.

[6] Também se destaca a expressão patologias corruptivas utilizada por Rogério Gesta Leal, Patologias Corruptivas nas Relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013, p. 13.

[7] Do Desvio de Poder, p. 101 e 104.

[8] Ilícitos Atípicos. Madrid: Trotta, 2000,  p. 94.

[9] Princípios de Direito Administrativo. 7ªed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 106.

ATIENZA, Manuel y RUIZ MANERO, Juan. Ilícitos Atípicos. Madrid: Trotta, 2000.

CRETELLA JÚNIOR, José. O Desvio de Poder na Administração Pública, 5ªed. Rio de Janeiro, 2002.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

HAURIOU, Maurice. Précis de Droit Administratif et de Droit Public,Paris: Dalloz, 2002.

LIMA, Rui Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ªed. São Paulo: Malheiros, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 11edª. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.


 

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