O paradoxo da relativização da presunção de inocência: Como punir sem considerar culpado?

25/08/2018

Após quase uma década de firme jurisprudência de vedação à execução provisória da pena, o Supremo Tribunal Federal, em uma guinada de 180 graus, alterou o entendimento no julgamento no Habeas Corpus n.º 126.292/SP. Restou assentado, no referido precedente, que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.

Nada obstante ser possível identificar diversos argumentos que subsidiaram a conclusão do julgamento, dois deles foram exaustivamente explorados por todos os Ministros que proferiram os votos vencedores, constituindo, portanto, a ratio decidendi do precedente[2], o qual, conforme ensina Fredie Didier Jr., em sentido lato, é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”. Em sentido estrito, por sua vez, o precedente “pode ser definido como sendo a própria ratio decidendi[3].

O primeiro argumento que constitui a ratio decidendi do precedente foi o de que a condicionante temporal “trânsito em julgado”, constante na norma constitucional (art. 5º, inciso LVII, da CR/88), circunscreve-se às circunstâncias fáticas do caso, e, já que estas são resolvidas definitivamente no julgamento da apelação em segunda instância, a presunção de inocência somente incidiria até este momento processual, permitindo-se, já partir daí, o cumprimento provisório da pena. Já o segundo argumento seria o de que a presunção de inocência é uma norma-princípio, não absoluta, que em um juízo de ponderação cede à incidência de outros postulados de igual status constitucional.

É preciso alertar que o primeiro argumento, apesar de sofisticado, está fundamentado em um sofisma hermenêutico que não se sustenta, qual seja, o de que a culpa exigida pelo inciso LVII – “ninguém será considerado culpado” – decorre exclusivamente da análise dos fatos. Ora, é evidente que o culpado não é apenas quem pratica um fato, mas sim quem pratica um fato contrário ao direito penal, sendo que para atestar que o fato é contrário à norma é imprescindível proceder a análise das questões de direito. Ou seja, o fenômeno fato penal é um acontecimento empírico que sofre, necessariamente, os influxos da normativa penal incriminadora, pressupondo, invariavelmente, com o perdão da repetição, a análise do direito incidente na espécie.

Sobre o tema, ainda, leciona Castanheira Neves, citado por Lênio Streck, que “toda questão de fato é sempre uma questão de direito e vice-versa, pois o direito é parte integrante do próprio caso; quando o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao fato”. No mesmo sentido, Sergi Guasch diz que “o problema dos fatos e o problema do direito é o resultado de um verdadeiro paralogismo processual que tem ocasionado desvios patológicos de ordem teórica” [4].

Considerando a problemática por este ângulo percebe-se que o quanto o primeiro argumento é destruído da solidez necessária e exigida em casos dotados de tamanha magnitude, como se alguém pudesse ser considerado culpado apenas por ter praticado um fato qualquer e não um fato obrigatoriamente definido como crime, ignorando a evidente relação simbiótica entre fato e norma.

A rigor, quando o enunciado constitucional diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da condenação, interpretação apurada dá conta de que no conceito de culpa está inserido tanto a análise dos fatos como também do elemento normativo, e como este último pode ter o acerto de sua interpretação discutido nas estâncias superiores fica obstada a execução provisória da pena, já que esta denota punição e punição pressupõe culpa.

Vê-se, com isso, que para a adequada compreensão do imbróglio que envolve a discussão do cumprimento da pena já depois da condenação em segunda instância é imprescindível está atento à relação entre os elementos culpa, trânsito em julgado, pena e punição, presente, explicita e implicitamente, no inciso LVII do artigo 5º da Constituição de 1988, caso contrário, a racionalidade do intérprete é levada em roda por vento de doutrina leviana.

O segundo argumento exaustivamente utilizado por todos os votos vencedores foi o de que a presunção de inocência não detém caráter absoluto, razão pela qual, em juízo de ponderação – máxima da proporcionalidade –, deve ceder a outros princípios de igual envergadura constitucional. Entre os princípios mais citados – alguns de duvidosa classificação como princípio – que contrapõem ao da não culpabilidade, segundo os Ministros, são o da efetividade da função jurisdicional do Estado, duração razoável do processo, efetividade da lei penal, credibilidade do Poder Judiciário e do sistema penal.

A questão prejudicial que deve ser enfrentada diante desse segundo argumento é como se classifica a norma constitucional constante no inciso LVII do artigo 5º da Constituição de 1988. Trata-se de norma-regra ou norma-princípio? Isso porque a depender de sua natureza a norma poderá ser relativizada ou deverá ser aplicada no esquema tudo-ou-nada, para valer-se da doutrina dworkiniana[5]. Dá análise dos votos verifica-se certo consenso no sentido de tratar-se de norma-princípio, o que impressiona, todavia, é o fato de não se relacionar o texto constitucional com os elementos que caracterizam cada uma das referidas categorias.

Vale dizer, quais os elementos constantes no enunciado do inciso LVII os caracterizam como intrínsecos à norma-princípio e não a norma-regra? O silêncio argumentativo estabelecido no acórdão do Habeas Corpus n.º 126.292/SP é constrangedor, notadamente porque a conclusão de tratar-se de norma-princípio foi uma das bases comum e estruturante de todo o precedente firmado.

Bom que se diga que chegou-se a afirmar que “não há dúvida de que a presunção de inocência ou de não-culpabilidade é um princípio, e não uma regra. Tanto é assim que se admite a prisão cautelar (CPP, art. 312) e outras formas de prisão antes do trânsito em julgado”[6]. Com a devida vênia, a presunção de inocência pode até ser, de fato, um princípio, mas, indubitavelmente, não é por conta da justificativa apresentada, constituindo um outro sofisma rebuscado que não se mantém. Uma coisa não tem, absolutamente, nada a ver com a outra, com todas as vênias do universo.

A rigor, a justificativa somente seria verdadeira se a prisão cautelar fosse fundamentada na potencial culpa do acusado, o que não é o caso. Da análise da legislação de regência (art. 312, CPP) verifica-se que a custódia provisória é autorizada com amparo em elementos de cautela, de precaução. A prisão preventiva não se efetiva porque se considera o acusado, em alguma medida, culpado, mas para garantir a ordem pública e econômica, quando imprescindível à instrução processual ou para assegurar a aplicação da lei penal. A prisão, nesse caso, assume feição meramente instrumental.

Desse modo, como considerar a prisão preventiva exceção à norma de “ninguém será considerado culpado” se com a culpa ela não se relaciona? Salvo melhor juízo, o equívoco da justificativa é confundir o instituto da prisão com o da pena, apesar desta última poder ser efetivada por intermédio daquela. A pena sim, pressupõe a certificação da culpa, a prisão não, já que é possível sua decretação quando presente os requisitos de cautelaridade, não contradizendo nem enfraquecendo a garantia do inciso LVII.

Superada, todavia, a prejudicial apontada acima e considerando, para argumentar, que o enunciado do inciso LVII traduz, de fato, uma norma-princípio, conclusão que se chega com base na diferenciação apresentada pela doutrina[7] – e não porque é possível prisão preventiva –, a questão principal, e de fato legítima, que se impõe é aferir o acerto da afirmação de que o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade é superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça[8].

Infelizmente ultrapassa os objetivos do presente artigo maior digressão a respeito do acerto ou equívoco de se atribuir maior peso ao princípio da efetividade e credibilidade da jurisdição em detrimento da garantia fundamental da presunção de inocência. No entanto, causa espécie o fato de se lançar mão do princípio da efetividade da jurisdição para autorizar a execução provisória da pena quando o referido princípio deveria incidir para obrigar o Judiciário a analisar os recursos interpostos na instâncias superiores em prazo razoável, como, aliás, já se impõe (art. 5º, LXXVIII, CR/88[9]).

Pois bem. Visto os dois principais argumentos utilizados por todos os votos vencedores, resta claro que toda a celeuma em torno do precedente sub examine gira em torno da garantia constitucional do estado de inocência grafado no inciso LVII, do artigo 5º, da seguinte forma: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O texto estabelece uma clara relação entre culpa e trânsito em julgado. Vale dizer: o Estado brasileiro somente pode atribuir à alguém a pecha de ser culpado pela prática de determinada infração penal após a certificação de que, contra a decisão penal condenatória, não cabe mais recurso.

É possível identificar, desde logo, que o estigma da culpabilidade tem uma condição temporal definida hermeticamente pelo texto constitucional, sendo ela o trânsito em julgado da decisão, de modo que parece incipiente qualquer discussão que tente atribuir à norma interpretação distinta da historicamente consagrada.

Se é certo que existe considerável consenso sobre o conteúdo normativo da condicionante temporal, o mesmo não é possível afirmar da proibição veiculada pela locução “ninguém será considerado culpado”. Isso porque o conceito de culpa na circunscrição da ciência jurídica não é um dado ontológico que precede à existência própria da norma, mas, pelo contrário, é produto de sua concepção, sendo o Parlamento o feitor de sua história, agregando-o sentido e alcance.

Diante disso, o questionamento que se impõe é o seguinte: o que constitui a culpa e o que é considerar culpado? Quais os atos materiais do Estado podem ser caracterizados como reveladores de culpa? Já uma segunda questão é: considerando a função retributiva da pena prevista, em alguma medida, no caput do artigo 59 do Código Penal[10], é possível punir, mediante recolhimento ao cárcere, sem considerar culpado? Como justificar a punição sem a certificação indubitável da culpa?

Permissa venia, a resposta a todos os questionamentos acima só pode ser no sentido de que não é possível dissociar a punição da culpa. Isso porque, existe, ao que parece, uma incompatibilidade lógica, quase cartesiana, ao nosso sentir, entre a norma inscrita no inciso LVII, com a punição. Não parece haver consenso possível entre punir, seja qual for a natureza da pena (PPL, PRD ou multa), sem que com isso não esteja considerando alguém culpado, apesar do precedente do Supremo Tribunal Federal constante do Habeas Corpus n.º 126.292/SP dizer o contrário.

Numa última palavra, não dá para dissociar a punição da culpa. Não dá para punir alguém sem que com isso esteja o Estado, aos olhos do acusado e da própria sociedade, impingindo-lhe o estigma da culpabilidade. Prender com fundamento na cautelaridade sim, prender para punir, definitivamente, não. Com efeito, a certificação da culpa é condição de possibilidade para a punição, apesar de não ser, frise-se, para a prisão.

 

Notas e Referências

[1] Nesse sentido MELLO, Patrícia Perrone Campos. Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 41-53, 2015: “A ratio decidendi corresponderá apenas ao entendimento ou aos argumentos acolhidos pela maioria dos juízes do tribunal e imprescindíveis para justificar o desfecho do caso.

[2]DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela I Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira – 10 ed.- Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015. v.2. p. 441.

[3] Sobre o tema, Lênio Streck com mestria escreveu o seguinte: “A questão é saber: é possível cindir questão de fato de questão de direito? Autores como Castanheira Neves (“toda questão de fato é sempre uma questão de direito e vice-versa, pois o direito é parte integrante do próprio caso; quando o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao fato”), Perelman, Sergi Guasch (“o problema dos fatos e o problema do direito é o resultado de um verdadeiro paralogismo processual que tem ocasionado desvios patológicos de ordem teórica”), Ovídio Baptista e uma infinidade de juristas já trataram dessa falsa dicotomia e a desmi(s)tificaram. Disseram um sono não.” Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-22/senso-incomum-segundo-grau-esgota-questao-fato-butao-assim

[4] Sobre o tema, SILA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): 607-630. Disponível em: https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2003-RLAEC01-Principios_e_regras.pdf

[5] Trecho do voto proferido pelo Min. Roberto Barroso no Habeas Corpus n.º 126.292/SP, página 39: “21. Pois bem. Não há dúvida de que a presunção de inocência ou de não-culpabilidade é um princípio, e não uma regra. Tanto é assim que se admite a prisão cautelar (CPP, art. 312) e outras formas de prisão antes do trânsito em julgado. Enquanto princípio, tal presunção pode ser restringida por outras normas de estatura constitucional (desde que não se atinja o seu núcleo essencial), sendo necessário ponderá-la com os outros objetivos e interesses em jogo16.”

[6] Sobre o tema, SILA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): 607-630: “Dworkin argumenta que, ao lado das regras jurídicas, há também os princípios.10 Estes, ao contrário daquelas, que possuem apenas a dimensão da validade, possuem também uma outra dimensão: o peso. Assim, as regras ou valem, e são, por isso, aplicáveis em sua inteireza, ou não valem, e portanto, não são aplicáveis. No caso dos princípios, essa indagação acerca da validade não faz sentido. No caso de colisão entre princípios, não há que se indagar sobre problemas de validade, mas somente de peso. Tem prevalência aquele princípio que for, para o caso concreto, mais importante, ou, em sentido figurado, aquele que tiver maior peso.11 Importante é ter em mente que o princípio que não tiver prevalência não deixa de valer ou de pertencer ao ordenamento jurídico. Ele apenas não terá tido peso suficiente para ser decisivo naquele caso concreto. Em outros casos, porém, a situação pode inverter-se.”

[7] Trecho do voto proferido pelo Min. Roberto Barroso no Habeas Corpus n.º 126.292/SP: “27. Portanto, o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade – prisão do acusado condenado em segundo grau antes do trânsito em julgado – é superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça, sobretudo diante da mínima probabilidade de reforma da condenação, como comprovam as estatísticas. Essa conclusão é reforçada pela aplicação do princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente.”

[8] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

[9] Sobre o tema GRECO, Rogério. Código Penal Comentado – 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017. p. 198: “Em razão da redação contida no caput do art. 59 do Código Penal, podemos concluir pela adoção, em nossa lei penal, de uma teoria mista ou unificadora da pena. Isso porque a parte final do caput do art. 59 do Código Penal conjuga a necessidade de reprovação com a prevenção do crime, fazendo, assim, com que se unifiquem as teorias absoluta e relativa, que se pautam, respectivamente, pelos critérios da retribuição e da Prevenção”.

 

Imagem Ilustrativa do Post: chains // Foto de: Rylee Fowler // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/skyhighwings/26599548220

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura