Em julgamento do Habeas Corpus 152752-PR, em 04 de abril de 2018, o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro CELSO DE MELLO, em mais um voto para ficar nos anais do STF, proclamou:
Uma Constituição escrita – já o afirmei nesta Suprema Corte (RTJ 146/707-708, Rel. Min. CELSO DE MELLO) – não configura mera peça jurídica, nem representa simples estrutura de normatividade, nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e das Nações. Na realidade, a Constituição traduz documento político-jurídico da maior importância, cuja superioridade impõe-se à observância de todos, notadamente daqueles que exercem o poder político, destinando-se a proteger as liberdades, a tutelar os direitos e a inibir os abusos do Estado e daqueles que em seu nome atuam. Torna-se essencial proclamar, por isso mesmo, que a Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades jamais serão ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar para que essa realidade não seja desfigurada, pois – como ninguém o desconhece – todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica (dos Tribunais, especialmente) porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade (...)
No momento em que ministros do Supremo Tribunal Federal e o próprio STF são constrangidos perante a opinião pública(da) para votar desta ou daquela maneira, notadamente para atender a sanha punitivista, necessário que as sábias palavras do decano da Corte Constitucional ecoe pelo País e que sirva de lição para todos aqueles que pretendem de alguma forma intimidar os ministros e ministras do STF.
Reconhecendo que todos os cidadãos da República têm direito à livre expressão de suas ideias e pensamentos, CELSO DE MELLO adverti que
sem prejuízo da ampla liberdade de crítica que a todos é garantida por nosso ordenamento jurídico-normativo, os julgamentos do Poder Judiciário, proferidos em ambiente de serenidade, não podem deixar-se contaminar, qualquer que seja o sentido pretendido, por juízos paralelos resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar o pronunciamento de magistrados e Tribunais, pois, se tal pudesse ocorrer, estar-se-ia a negar a qualquer acusado em processos criminais o direito fundamental a um julgamento justo, o que constituiria manifesta ofensa não só ao que proclama a própria Constituição, mas, também, ao que garantem os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil ou aos quais o Brasil aderiu. (Grifamos).
Lamentavelmente, nas redes sociais, os supostos paladinos da justiça que capitaneiam as “Forças Tarefas” se servem dessa nova modalidade de comunicação e de todos os meios para insuflar a população contra juízes e ministros do STF que decidem contrariamente as suas pretensões e aos interesses da chamada “maioria de ocasião”.
Ressalte-se que, infelizmente, em razão de pressões externas, com utilização de métodos cada vez mais agressivos - como parte do processo penal do espetáculo[1] - alguns juízes acabam decidindo com medo de desagradar a opinião pública (da) e de caírem em desgraça, acusados de serem convenientes com a criminalidade, notadamente, a corrupção e a imaginada impunidade. Como bem observa RUBENS CASARA, o principal limite ao exercício do poder é formado pelos direitos e garantias fundamentais, verdadeiros trunfos contra a opressão, mesmo que essa opressão venha das maiorias de ocasião[2], mesmo que seja orquestrada pela mídia ou pelos representantes das questionáveis “Forças Tarefas”.
Referindo-se a denominada “criminologia midiática” RAÚL ZAFFARONI afirma que na guerra contra eles (os selecionados como criminosos) são os juízes alvo, preferido da “criminologia midiática”, que segundo o jurista argentino, “faz uma festa quando um ex-presidiário em liberdade provisória comete um delito, em especial se o delito for grave, o que provoca uma alegria particular e maligna nos comunicadores”. Neste viés os juízes “brandos” são um obstáculo na luta contra a criminalidade e contra “eles”. [3]
Já foi dito alhures que a opinião pública – pior das opiniões – é uma intrusa que deve ser expulsa dos julgamentos onde se busca uma decisão imparcial e livre de pressões. Neste diapasão, o ministro CELSO DE MELLO, no HC 152752-PR, salienta:
Sabemos todos, Senhora Presidente, que a Constituição da República de 1988, passados quase 30 anos de sua promulgação, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal um papel de imenso relevo no aperfeiçoamento das instituições democráticas e na afirmação dos princípios sob cuja égide floresce o espírito virtuoso que anima e informa a ideia de República.
Se é certo, portanto, Senhora Presidente, que esta Suprema Corte constitui, por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais, não é menos exato que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer réu mediante instauração, em juízo, do devido processo penal. (Grifamos).
Recentemente, no julgamento do INQ 4435 AGR-QUARTO / DF, em que o Supremo Tribunal Federal manteve o entendimento que cabe à Justiça Eleitoral a análise de crimes comuns conexos a eleitorais, o ministro CELSO DE MELLO – em razão dos diversos ataques e insultos, feitos a Corte em nome da famigerada Operação “Lava Jato – voltou a repetir e advertir que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal para serem imparciais, isentos e independentes “não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor das multidões e de panfletagens insultuosas e atrevidas...”
Em tempos de banalização das prisões cautelares e de aniquilamento das garantias, resultante da fúria punitivista e do discurso vazio da impunidade, necessário que se compreenda que o processo penal, conforme ressalta AURY LOPES JR., não pode ser visto hoje como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Como bem alertado pelo citado autor, “há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)”.[4]
Os desvios inconstitucionais do Estado, afirma CELSO DE MELLO, “no exercício do seu poder de persecução e de punição em matéria criminal geram, na ilegitimidade desse comportamento do aparelho governamental, efeitos perversos que deformam os princípios que estruturam a ordem jurídica, subvertem as finalidades do sistema normativo e comprometem a integridade e a supremacia da própria Constituição da República”.
Por tudo e por mais que se advogue a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, não se pode consentir que a mídia se transforme em juiz/verdugo para julgar e punir suas vítimas. De igual modo, não se pode tolerar que pressões externas, bem como o clamor popular, passem a ditar as decisões de juízes e tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal. Por fim, não se pode admitir que os alicerces do Estado democrático de direito sejam destruídos pelo terremoto punitivista e da opressão.
Notas e Referências
[1] CASARA, R. R. Rubens. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[2] CASARA, Rubens. “Vamos comemora um tribunal que julga de acordo com a opinião pública?” In Brasil em fúria. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.
[4] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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