O Papel do Juiz em Sentenças de Tráfico de Drogas: Discricionariedade e Valoração do Depoimento Policial

25/11/2024

Coluna semanal: A teoria se aplica na prática

Coordenador: Thiago Minagé

Os principais desafios enfrentados pelo sistema de justiça criminal referem-se à identificação de crimes e de seus autores. Os operadores desse sistema precisam formular e justificar enunciados que busquem demonstrar se o crime ocorreu; quem é o responsável; quem é a vítima – se houver uma – e em quais circunstâncias o responsável praticou aquele fato. Ainda que não se possa afirmar se os operadores buscam descobrir a verdade, o modo de organização das práticas judiciárias penais pressupõe a produção de um conhecimento sobre a realidade, na medida em que esse conhecimento é necessário para justificar a condenação ou absolvição de alguém.

A definição da verdade jurídica é estruturada a partir de um regime que organiza critérios e procedimentos para a determinação do que será considerado verdadeiro ou falso. Segundo Michel Foucault[1], esse regime envolve não apenas normas legais, mas também estruturas de poder e pressões sociais que influenciam as decisões judiciais. No contexto do sistema de justiça criminal brasileiro, o juiz desempenha o papel de "autoridade enunciativa"[2], ou seja, é ele quem, ao proferir a sentença, define quais fatos são “verdadeiros”, produzindo o que o autor chama de verdade jurídica.

Em processos de tráfico de drogas, essa construção enfrenta desafios únicos. Além de, no cotidiano social, os papéis de traficantes e usuários frequentemente se confundirem[3], a construção normativa desses dois crimes apresenta dificuldades para distingui-los. A dificuldade em distinguir o crime de tráfico do de consumo decorre de dois fatores principais: a sobreposição dos verbos que definem as condutas nos artigos 28 e 33 da Lei de Drogas e a subjetividade envolvida na análise da intenção do acusado[4]. Embora a legislação sugira critérios para orientar essa distinção, como a quantidade de droga apreendida, o local da prisão e as condições sociais e pessoais do réu, tais critérios carecem de objetividade.

Ademais, o panorama montado pelas pesquisas que estudam os processos tráfico indicam que o juiz – aquele que terá de definir os fatos – tem a sua disposição um número limitado de evidências para justificar as suas conclusões. A literatura especializada mostra que esses processos, em sua grande maioria, são iniciados por prisões em flagrante e são enviados à justiça sem maiores ações investigativas feitas pela polícia[5]. Esse fenômeno, no entanto, é comum no sistema de justiça brasileiro: casos iniciados por prisões em flagrante geralmente não le­vam a grandes investigações policiais e são tratados de maneira diferenciada, passando rapidamente à fase judicial[6].

No cenário descrito pelas pesquisas, o momento do julgamento parece ser uma mera reiteração do que foi colhido na fase de inquérito policial, repetindo-se argumentos, depoimentos e conclusões. Os agentes, inclusive os juízes, tendem a compreender o flagrante como um “caso pronto”, já que apresenta a materialidade do crime (provas recolhidas pelos policiais que realizaram a prisão), autor (a pessoa presa) e testemunhas (os próprios policiais), não havendo, portanto, necessidade de realizar uma investigação mais aprofundada[7]. Consequentemente, a fase judicial em processos de tráfico raramente apresenta novas evidências além das reunidas no auto de prisão em flagrante, configurando-se mais como uma ratificação da fase policial[8].

Porém, no processo penal, o juiz somente condena se tiver certeza do fato, já que se presume a inocência da parte acusada. Dessa forma, deveria ocorrer um esforço argumentativo maior ao justificar uma condenação do que uma absolvição. Assim, em processos com poucas evidências, como os de tráfico, não seria extraordinário presumir maior número de absolvições. Todavia, as pesquisas mostram que acontece justamente o contrário: muitas condenações em processos sem muitas evidências, cuja definição legal do crime investigado o aproxima de outro delito, sem critérios claros para distingui-los. Há, portanto, um cenário aparentemente problemático: como é possível justificar uma decisão, cuja fundamentação teoricamente é mais exigente, em um contexto no qual deveria ser ainda mais difícil fazê-lo.

O magistrado, autoridade enunciativa, é, ao mesmo tempo, o operador que teve menos contato direto com o “fato” e, por isso, decide com base em relatos de terceiros, sejam estes documentais (pericias, vídeos, inquérito), sejam falados (depoimento das testemunhas, acusado)[9]. Porém, no processo brasileiro, o juiz não é um ator passivo, já que possui poderes para interferir na instrução da fase judicial. A autora observa que os juízes buscam direcionar os depoimentos das testemunhas a partir de estratégias de interrogatório. Por exemplo, ao interrogar policiais, os magistrados fazem um esforço para que o depoimento do policial em juízo seja coerente com o depoimento dado em sede de delegacia e com o teor da denúncia. Para isso empregam diversas ferramentas: leem a denúncia ou depoimento do policial antes dele testemunhar, fazem perguntas de caráter confirmatório, ou chegam até mesmo a corrigir o que o policial havia acabado de relatar[10]. Táticas semelhantes, como a leitura da denúncia e do depoimento do policial no inquérito antes do início das perguntas, foram encontradas por Jesus et. al. (2016). Para Prates[11], essa atuação do juiz durante o interrogatório atende a duas necessidades: produção de coerência e de legalidade. A autora vê nessas interferências a antecipação do trabalho de determinação da hipótese verdadeira dos fatos. Busca-se direcionar os testemunhos para que eles possam ou apresentar efeitos de verdade, i.e., parecerem verossímeis, ou para lhes retirar esse efeito.

Nesse sentido, interessa-nos especialmente a criação de evidências com “uma presunção estatutária de verdade”[12]. As evidências com presunção estatutária de verdade são aquelas a que são atribuídos valores demonstrativos maiores que outras, “independente da sua estrutura racional própria”[13]. Essa presunção pode ser determinada pela própria legislação, mas também pode ser elaborada pela jurisprudência.

A literatura mostra que o depoimento do policial costuma ser a principal prova nos processos de tráfico. Desde a vigência da antiga lei de drogas, a centralidade da palavra dos policiais enquanto principal evidência nos processos de tráfico já era observada pela literatura[14]. Boiteux et al.[15], em uma das primeiras pesquisas após a promulgação da legislação atual, mostraram que pouco havia mudado sob a nova lei. Ao analisar sentenças dos tribunais do Distrito Federal e Rio de Janeiro proferidas entre 2006 e 2008, as autoras demonstram que na maioria dos casos as únicas testemunhas arroladas são os próprios policiais responsáveis pela prisão do réu. A pesquisa de Haber et al[16], cujos resultados encontram paralelo nas de Carvalho e Weigert[17]; Jesus et. al.[18]e Lemgruber e Fernandes[19], aponta que a maioria das sentenças analisadas tinham como principal fundamento o depoimento dos policiais no Rio de Janeiro, além de indicar que em 62% das sentenças analisadas entre 2014 e 2016, o depoimento desses agentes foi a única prova testemunhal produzida.

A presunção de veracidade desses depoimentos é justificada nas sentenças a partir de raciocínios que estabelecem diferentes graus de credibilidade para a palavra do policial, desde aqueles que atribuem essa credibilidade a uma imagem de agentes de segurança que agem sempre com honestidade e desinteresse, até aquelas que a depreendem do exercício da função pública, conferindo uma espécie de fé pública ao depoimento desses agentes[20].  Carvalho et. Weigert[21] mostram como esse raciocínio desdobra a presunção de veracidade dos atos praticados por funcionários públicos, para a pressuposição de veracidade da própria palavra dos policiais. Especificamente no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, há o entendimento sumulado (súmula 70) de que a palavra do policial é suficiente para uma condenação[22], o que contribuí para o seu status de evidência com presunção estatutária de verdade.

Em processos em que na maioria das vezes a única prova é o depoimento do policial, os juízes justificam a capacidade especial de demonstratividade desse depoimento também por meio de uma representação do policial como um agente honesto e desinteressado. Os efeitos da atribuição de um caráter de demonstratividade especial para o depoimento dos policiais parecem ser o de criar um facilitador para o processo de justificação da decisão judicial e não uma obrigação legal de decidir conforme seu conteúdo. Os depoimentos dos agentes influenciam a fundamentação da sentença, na medida que é mais fácil justificar a decisão, se sua conclusão sobre a versão do ocorrido for no mesmo sentido indicado por eles.

Nesse sentido, a literatura aponta para a presença de modelos de sentenças “cuja argumentação para condenação (79,97% dos casos) ou absolvição (20,03% dos casos) costuma vir previamente estruturada e pronta para se encaixar à realidade fática[23]. Com a existência de um modelo, presume-se um certo automatismo do ato de julgar, que demonstra pouco interesse nos fatos, se as justificativas consideradas válidas pelo regime de verdade estiverem presentes na sentença.

Portanto, em cenários de processos com poucas evidências, como os de tráfico de droga, enquanto autoridade enunciativa, o juiz atribui especial força demonstrativa a determinadas provas, como o depoimento dos policiais, facilitando a fundamentação de sentenças baseadas em raciocínios indutivos

 

Notas e referências:

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. O inquérito policial em questão: situação atual e a percepção dos delegados de polícia sobre as fragilidades do modelo Brasileiro de investigação criminal. Soc. estado., Brasília, v. 26, n. 1, p. 59-75, 2011.

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FOUCAULT, Michel. A Verdade e as formas jurídicas. Trad. Eduardo Jardim e Roberto Machado. 4ª Ed. NAU Editora. Rio de Janeiro, RJ, 2013, p. 81.

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GARCIA, Cássia S. Os descaminhos da punição: A Justiça Penal e o Tráfico de Drogas (2005). Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, 2005..

HABER, Carolina D. (Coord.). n/a et al. Relatório Final Pesquisa Sobre as Sentenças Judiciais por Tráfico De Drogas na Cidade e Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Departamento de Pesquisa, Defensoria Pública Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2018, p. 35.

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SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento [livro eletrônico]. – 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 239-240.

[1] FOUCAULT, Michel. A Verdade e as formas jurídicas. Trad. Eduardo Jardim e Roberto Machado. 4ª Ed. NAU Editora. Rio de Janeiro, RJ, 2013, p. 81.

[2]FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 42 Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 23-24.

[3] POLICARPO, Frederico Policarpo de Mendonça Filho. Velhos usuários e jovens traficantes? Um estudo de caso sobre a atualização da nova Lei de Drogas na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, [S.l.], v. 6, n. 1, p. 11-37, jan. 2013

[4] COUTO, Vinícius Assis; RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes; ROCHA, Rafael Lacerda Silveira. Nas malhas da justiça: uma análise dos dados oficiais de indiciados por drogas em Belo Horizonte (2008-2015). Opin. Publica, Campinas, v. 23, n. 2, p. 397-428, 2017, p.2.

[5] SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento [livro eletrônico]. – 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 239-240.

[6] AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. O inquérito policial em questão: situação atual e a percepção dos delegados de polícia sobre as fragilidades do modelo Brasileiro de investigação criminal. Soc. estado., Brasília, v. 26, n. 1, p. 59-75, 2011. Ver também: MISSE, 2010, VARGAS, 2012.

[7] JESUS, Maria Gorete Marques de. 'O que está no mundo não está nos autos': a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas (2016). Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2016.

[8] COUTO, Vinícius Assis et al. op. Cit., p. 423.

[9] PRATES, F. La construction du verdict de culpabilité: Magistrature pénale et production de vérité judiciaire au Brésil (2013). Tese: Doutorado em Criminologia. Université de Montreal, UdeM, Canadá. 2013, p. 151.

[10] Idem, p. 110.

[11] Idem, p. 110-111.

[12] FOUCAULT, Michel.  Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo. Ed. WMF Martins Fontes, 2010, p. 10-11.

[13] Idem.

[14] GARCIA, Cássia S. Os descaminhos da punição A Justiça Penal e o Tráfico de Drogas (2005). Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, 2005. Ver também: RAUPP, 2005, p. 61, apud CAMPOS, 2015, p. 192).

[15] BOITEUX, Luciana (Coord.). n/a et al. Relatório de Pesquisa “Tráfico de Drogas e Constituição”. Série Pensando o Direito. Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade de Brasília. Rio de Janeiro/Brasília, RJ/DF, Brasil. 2009, p. 107.

[16] HABER, Carolina D. (Coord.). n/a et al. Relatório Final Pesquisa Sobre as Sentenças Judiciais por Tráfico De Drogas na Cidade e Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Departamento de Pesquisa, Defensoria Pública Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2018, p. 35.

[17] CARVALHO, SALO; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. “Making a Drug Dealer”: o Impacto dos Depoimentos Policiais e os Efeitos da Súmula no 70 do TJRJ na Construção do Caso Rafael Braga. Revista de Estudos Criminais, v. 17, p. 45-77, 2018, p. 50.

[18] Idem.

[19] LEMGRUBER, J., FERNANDES, M. (Coords.). n/a et al. Tráfico de Drogas na Cidade do Rio de Janeiro: Prisão Provisória e Direito de Defesa. Boletim Segurança e Cidadania. Nov., 2015.

[20] SEMER, 2019, op. Cit., p. 187.

[21] Carvalho e Weigert, 2018, op. Cit., p. 51.

[22] "O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Súmula número 70. 2003).

[23] Haber et. Al., 2018, op. Cit., p. 59.

 

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