O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR NA PROMOÇÃO E EFETIVAÇÃO DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

26/09/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Há trinta e três anos, sensibilizado pela luta de organizações nacionais e estrangeiras, o Brasil deu um importante passo em prol da infância e adolescência, consagrando em sua Constituição, a Doutrina da Proteção Integral, pela qual crianças e adolescentes são reconhecidos como sujeitos de direitos que gozam de proteção especial e prioritária oriunda de sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. Com vistas à implementação desse paradigma para os direitos infantoadolescentes materializado em um sistema de garantias, promulga-se a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), considerada uma das mais avançadas legislações sobre o tema e por isso, referência internacional.

Desde então, esse sistema de garantias constituído pela integração de instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, instrumentos normativos e mecanismos institucionais de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente tem sido aperfeiçoado, cuja operacionalização “trata-se de uma tarefa árdua, pois exige conhecer, entender e aplicar uma nova sistemática, completamente diferente da pretérita, entranhada em nossa sociedade há quase um século” (Maciel, 2016, p. 53).

Não obstante os esforços de órgãos e atores que integram o sistema de garantias e, em rede, exercem funções específicas e atribuídas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), por meio dos canais Disque 100, Ligue 180 e aplicativo Direitos Humanos Brasil, recebeu no primeiro semestre de 2023, 97.341 denúncias com registro de 560.080 violações dos direitos de crianças e adolescentes em todo o país, dentre as quais 231.837 (41,39%) tratavam-se de violência física; 198.255 (35,39%) de violência psicológica; 70.341(12,56%) de negligência; 25.372 (4,53%) de violência sexual; 23.857 (4,26%) de violações aos direitos sociais; 2.340 (0,41%) de violência patrimonial e 8.078 (1,44%) de outros tipos de violações (MDH, 2023).

Essa triste realidade revela que ainda há muito a ser feito. Novos atores precisam ser convocados a entrar em cena e se corresponsabilizar com a causa da infância e adolescência de maneira a viabilizar a articulação de ações diversificadas, complementares e interdependentes. Diante disso indaga-se: nesse cenário, qual o papel das instituições de ensino superior (IES), principalmente aquelas voltadas à educação em Direito, em face da proteção integral de crianças e adolescentes? Como contribuem para a formação em temas da infância e adolescência frente à atuação futura dos profissionais que primarão pela promoção e defesa dos direitos infantoadolescentes?

Na busca por respostas e, via de consequência, por novas indagações, parte-se do mandamento constitucional contido no caput do artigo 227 que estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, 1988).

O referido dispositivo constitucional consagra o princípio da prioridade absoluta, estabelecendo primazia em favor das crianças e dos adolescentes em todas as esferas de interesse, conferindo às respectivas normas uma aplicação invariável e incondicionada ante o emprego da qualificação “absoluta”. “Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infantoadolescente deve preponderar, não comportando indagações ou ponderações sob o interesse a tutelar em primeiro lugar, uma vez que a escolha foi realizada por meio do legislador constituinte” (Amin, 2016b, p. 64-65).

De acordo com Liberati (1999, p. 16-17), por absoluta prioridade entende-se que “primeiro, devem ser atendidas todas as necessidade das crianças e adolescentes, pois o maior patrimônio de uma nação é o seu povo, e o maior patrimônio de um povo são suas crianças e jovens”. Essa exigência constitucional demonstra, no entendimento de Dallari (2010, p. 44), o reconhecimento da necessidade do cuidado especial das pessoas que, por sua fragilidade natural ou por estarem numa fase em que se completa sua formação, correm maiores riscos.

Dada sua importância e alcance, o princípio da prioridade absoluta foi reiterado no artigo 4º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), inclusive com vistas a sua instrumentalização e efetivação.

Art. 4° - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo Único - A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude (Brasil, 1990).

Esclareça-se que o rol apresentado no artigo 4º supra descrito não é taxativo, mas apenas exemplificativo, visto que são inúmeras as situações em que a promoção e proteção dos direitos das crianças e adolescentes merece atenção. Nesse sentido, Dallari (2010, p. 45) esclarece que, em complemento às disposições constitucionais e às exigências do próprio artigo 4º acrescentou-se a este um parágrafo, de maneira a elencar alguns dos procedimentos indispensáveis para a garantia de prioridade exigida pela Constituição; porém, as alíneas supra não são exaustivas, logo, não especificam todas as situações em que deverá ser assegurada a preferência à infância e à adolescência, nem todas as formas de assegurá-la, mas representam o mínimo exigível sendo indicativo de como se deverá dar efeito prático à determinação constitucional.

No que tange aos destinatários da norma, o artigo 227 da Constituição afirma ser a família, a sociedade e o Estado. Em complementação, o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente acrescenta como destinatários da norma, a comunidade e o Poder Público. Isso porque, como distingue Amin (2016b, p. 64) enquanto a sociedade tem caráter geral, a comunidade refere-se à parcela mais próxima das crianças e dos adolescentes, residindo na mesma região, comungando dos mesmos costumes, como vizinhos, membros da escola e igreja etc. Quanto ao Estado e ao Poder Público, engloba todas as suas esferas: legislativa, judiciária ou executiva.

Chama-se a atenção para a existência de posicionamentos doutrinários no sentido de identificar uma ordem hierárquica na disposição dos destinatários da norma, para os quais caberia em primeiro lugar, à família, em segundo, à sociedade e, por último, ao Estado resguardar e promover os direitos das crianças e adolescentes. A essa linha filia-se Liberati (1999, p. 16) ao sustentar que “o artigo 4º praticamente transcreve o artigo 227 da Constituição, que determina que, primeiro, a família e, supletivamente, o Estado e a sociedade têm o dever de assegurar, por todos os meios, de todas as formas e com absoluta prioridade, todos os direitos inerentes a constituição de um homem civilizado”.

De modo diverso entendem Rossato, Lépore e Cunha (2016, p. 62) destacando que trata-se de uma responsabilidade que, para ser realizada, precisa de uma integração entre os atores, de modo que essa competência difusa que responsabiliza uma diversidade de agentes pela promoção dos direitos infantoadolescentes tem por escopo ampliar o próprio alcance da proteção desses direitos, bem como Dallari (2010, p. 44) ao explicitar que  “cada uma dessas entidades, no âmbito de suas respectivas atribuições e no uso de seus recursos, está legalmente obrigada a colocar entre seus objetivos preferenciais o cuidado das crianças e dos adolescentes”. Filia-se a essa linha por entender que a existência de tal hierarquia vai de encontro ao aspecto institucional (cogestão e corresponsabilidade) e organizacional (rede) do Direito da Criança e do Adolescente sob a égide da Doutrina da Proteção Integral.

Portanto, pelo princípio da prioridade absoluta depreende-se que os direitos infantoadolescentes devem ser assegurados: (1) com primazia, (2) pela família, comunidade, sociedade em geral e pelo Poder Público, (3) por todos os meios possíveis. Assim, considerando que as instituições de ensino superior integram a sociedade, a comunidade próxima à criança e ao adolescente e formam agentes do poder público, essas também são corresponsáveis por assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, por meio de suas funções de ensino, pesquisa e/ou extensão.

Nesse contexto, a partir da interpretação extensiva do artigo 5º, inciso II da Resolução CES/CNE n° 9/2004, o curso de graduação em Direito deve contemplar, em seu projeto pedagógico e em sua organização curricular, conteúdos e atividades que atendam o eixo de formação profissional, incluindo além dos ramos do Direito expressamente mencionados no dispositivo, outros como o Direito da Criança e do Adolescente, observadas suas peculiaridades, senão veja-se:

Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de formação:

I – [...]

II - Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindo-se necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual (Brasil, 2004b, grifo nosso) 

Como se observa, o rol indicado no artigo 5º, inciso II da Resolução CES/CNE n° 9/2004, embora necessário, não é taxativo, uma vez que se utiliza da expressão “dentre outros”, deixando a cargo da IES incluir em sua organização curricular outros ramos do Direito condizentes com o respectivo projeto pedagógico. Todavia, agora em uma interpretação sistemática, conjugando o referido dispositivo aos artigos 227 da Constituição da República e 4º da Lei n° 8.069/90, por força do princípio da prioridade absoluta é possível inferir que dentre os outros ramos do Direito a serem contemplados pelas IESs, o Direito da Criança e do Adolescente deve, necessariamente, estar incluso no eixo de formação profissional, inclusive prevalecendo sobre os demais ramos do Direito se considerada a literalidade da expressão “prioridade absoluta”.

Uma política voltada à proteção, como prioridade absoluta, não é mais obrigação exclusiva da família e do Estado: é um dever social, pelo qual os direitos de crianças e adolescentes devem ser resguardados e defendidos (Pereira, 2008, p. 760). Além disso, sob o viés da prevenção esculpido no artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente em que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (Brasil, 1990), esta ocorre através da abstenção da prática de atos nocivos ao desenvolvimento da criança e do adolescente, mediante o cumprimento espontâneo de obrigações relacionadas à prevenção especial e também por meio de iniciativas tendentes a promover seus direitos fundamentais (Paula, 2010, p. 321). Na forma desta última é que se enquadra a política de promoção e efetivação dos direitos infantoadolescentes, por meio da formação acadêmica.

As instituições de ensino superior destinadas à educação em Direito, enquanto formadoras, inclusive dos profissionais que, direta ou indiretamente, atuarão com o público infantoadolescente podem desempenhar um importante papel na proteção dos direitos da criança e do adolescente. Pelo necessário compromisso com a causa da infância e adolescência decorrente do princípio da prioridade absoluta, as faculdades de Direito deverão coparticipar na medida de sua responsabilidade institucional e social, sendo esta última, inclusive, uma das dimensões avaliadas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES):

Art. 2º O SINAES, ao promover a avaliação de instituições, de cursos e de desempenho dos estudantes, deverá assegurar:

I – avaliação institucional, interna e externa, contemplando a análise global e integrada das dimensões, estruturas, relações, compromisso social, atividades, finalidades e responsabilidades sociais das instituições de educação superior e de seus cursos.

Art. 3º A avaliação das instituições de educação superior terá por objetivo identificar o seu perfil e o significado de sua atuação, por meio de suas atividades, cursos, programas, projetos e setores, considerando as diferentes dimensões institucionais, dentre elas obrigatoriamente as seguintes:

[...]

III – a responsabilidade social da instituição, considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural (BRASIL, 2004a, grifo nosso). 

Por outro lado, a assunção de responsabilidade pela promoção e efetivação dos direitos infantoadolescentes por parte das referidas instituições de ensino superior, ainda é um desafio, haja vista que o Direito da Criança e do Adolescente, salvo exceções, não é contemplado, com prioridade, nas respectivas matrizes curriculares, sendo invisibilizado ou marginalizado em face dos demais ramos jurídicos tradicionalmente contemplados como disciplinas obrigatórias (Silva, 2022).

Como bem ressalta Veronese (2017, p. 8), tal fato é de causar assombro, afinal, “o Direito da Criança e do Adolescente é o mais elementar, o fundamental, na garantia de direitos básicos para o pleno desenvolvimento do ser – o ser criança – o qual constitui e compõe a humanidade”.

Diante disso, a proposta de Santos não poderia ser mais oportuna, ao salientar que a responsabilidade social precisa ser assumida pela universidade, permitindo-se ser permeável às necessidades sociais, principalmente àquelas provenientes de grupos sociais marginalizados que não têm condições, por si próprios, para reivindicá-las; assim sendo, “a autonomia universitária e a liberdade acadêmica, que no passado foram esgrimidas para desresponsabilizar socialmente a universidade – assumem agora uma nova premência – uma vez que só elas podem garantir uma resposta empenhada e criativa aos desafios da responsabilidade social” (Santos, 2011, p. 89-90).

CONCLUSÃO

O tema em questão parte da necessidade de se repensar políticas voltadas à promoção dos direitos da criança e do adolescente há tempos negligenciados pela sociedade, uma vez que o avanço normativo e os esforços dos atuais órgãos e atores que integram o sistema de garantia desses direitos têm se mostrado insuficientes ante o cenário de violações que se apresenta, cujos dados estatísticos são alarmantes e crescentes.

À vista disso e a partir do questionamento acerca da participação das IESs, principalmente daquelas voltadas à educação em Direito, na causa da infância e adolescência, enquanto formadoras, inclusive dos profissionais que direta ou indiretamente atuarão com esse público, é possível concluir que as referidas instituições integram o sistema de garantia dos direitos infantoadolescentes, sendo essenciais nas políticas de proteção e efetivação desses direitos na medida de sua responsabilidade institucional e social, especialmente, por meio da formação acadêmica.

Pelo princípio da prioridade absoluta esculpido no caput do artigo 227 da Constituição da República de 1988 depreende-se que os direitos infantoadolescentes devem ser assegurados com primazia, pela família, comunidade, sociedade em geral e pelo Poder Público, por todos os meios possíveis. Por conseguinte, tendo em vista que as IESs fazem parte da sociedade, da comunidade próxima à criança e ao adolescente e formam agentes do poder público, defende-se a sua proeminência como instituições também corresponsáveis por assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos da criança e do adolescente.

Por fim, conclui-se pela possibilidade e necessidade de articular propostas que concebam, com prioridade e autonomia, o Direito da Criança e do Adolescente nas matrizes curriculares, possibilitando que surjam as vocações latentes para esse ramo do Direito, assim como novas possibilidades para a atuação dos futuros profissionais a partir de uma experiência acadêmica ainda mais humana e sensível ao público infantoadolescente.

 

Notas e referências

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AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016a. p. 45-61.

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BRASIL. Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004a. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.861.htm>. Acesso em: 21 maio 2023.

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ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069/90 comentado artigo por artigo. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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