O pagamento do tributo sonegado como solução garantista nos crimes contra a ordem tributária

21/01/2019

 

O tema sob análise insere-se em finalidade diversa da que se é esperada pelo direito penal comum, circunscrevendo-se, mesmo, na expectativa aguardada pelo direito penal tributário, a qual, seguindo as diretrizes conceituais de Harada:

No Direito Penal Tributário, o bem jurídico tutelado é o Erário. Por isso, pago o tributo devido, não há razão para a continuidade da prisão do inadimplente. As normas de Direito Penal Tributário, ao contrário das normas de Direito Penal, não têm por objetivo retirar de circulação alguém que represente um perigo para a sociedade, por quebra das regras de vivência comum. (2018). 

O objeto do presente estudo é modesto na medida em que apenas limita-se à verificação dos crimes consignados nos incisos, do art. 1º, da lei 8137, e a forma pela qual ocorrera uma evolução de teor garantista quanto às modalidades criminosas expressas no referido tipo incriminador.

Não são poucas as críticas ao caráter retributivo do direito penal. Este, diante de sua inflexibilidade formalista, cede, aos poucos, espaço para a justiça restaurativa, observado, conforme a acurada leitura do eminente jurista Damásio Evangelista de Jesus, como “processo colaborativo”, por meio do qual, se evitaria com que o autor, de qualquer infração penal, por tê-la cometido, fosse castigado, tão logo, e, somente, com o cárcere, em decorrência do mero intento de punir estatal, mas, ao contrário, reeducado para bem conviver com os seus iguais, por meio de atuações integrativas e reparadoras entre o réu, a vítima, e a comunidade diretamente envolvida na controvérsia (2007).

“No modelo de justiça retributiva combinam-se as penas privativas de liberdade, as penas de multa e as restritivas de direito. A prisão enquanto pena é unanimemente criticada e apenas deve ser utilizada quando absolutamente necessária devido suas consequências.”(TEIXEIRA; PEREIRA, 2016).

De se observar, outrossim, que o garantismo não se verifica, portanto, apenas, antes do cometimento do crime, por meio da formulação de um preceito primário incriminador que torne efetivamente o direito penal a última ratio do ordenamento jurídico, atuando como um contributo lógico ao chamado princípio da ofensividade, mas, também, posteriormente, como elemento norteador à atuação do aplicador do direito no tocante à punição ou ressocialização a ser atribuída ao infrator (OLIVEIRA, 2014). “deve se guiar de forma a impedir (ou reduzir ao máximo) a possibilidade de punição a um inocente, ainda que ao custo da impunição a um culpado.” (OLIVEIRA, 2017).

A justiça restaurativa, assim como o garantismo, comunicam-se na medida em que a ambos interessariam a promoção da defesa dos direitos e garantias fundamentais, consagrando o ideal de presunção do estado de inocência e da segurança jurídica das decisões judiciais condenatórias, proporcionando, diante destes valores magnos, a descoberta de soluções alternativas que se mostrem úteis à pacificação social, relegando o cárcere à última medida a ser adotada ao caso concreto, constituindo, destarte, a expressão de uma intervenção drástica e derradeira a ser utilizada pelo Estado.

Os vieses garantista e restaurativo, também, são constatáveis, na solução viabilizada pelo art. 9º, e em seus parágrafos, da lei 10684, quanto aos crimes previstos pela lei 8137, nesta, precisamente, em seus arts. 1º, 2º, e do art. 95, da lei 8212, e arts. 168-A, 337-A, ambos, do Código Penal, permitindo que a pretensão punitiva, possa ser suspensa, e, até mesmo, a punibilidade, extinta, caso o infrator venha a adotar medidas de cunho ressarcitório – posto que pagaria aquilo que em momento adequado não adimplira – em relação ao erário.

No plano da “linguagem jurídica” do direito das exações, utilizando da terminologia empregada pelo celebrado tributarista Paulo de Barros Carvalho, assim, compreendida, resumidamente, como os próprios elementos integradores do direito tributário (p.162, 2003), cumpre elucidar, ainda que de forma superficial e antecedente, que tais tipos penais, abarcados pela art.1º, da lei 8137, cingem modalidades que utilizam, a evasão, ou, até mesmo, a elusão fiscal, como meios, para consumar a inadimplência tributária, total ou parcial, da quantia efetivamente devida.

É a evasão fiscal a “(...) forma de se esconder ou acobertar fatos geradores já ocorridos, frustrando a ação da fiscalização tributária e frustrando, por consequência, a arrecadação de valores para os cofres públicos.” (CAVALCANTE, 2016).

Interessante notar, também, que na elusão fiscal(...) os mecanismos utilizados são lícitos e a operação e traçada antes da ocorrência do fato gerador assim como na elisão, mas prevalece o intuito fraudulento assim como na evasão fiscal.” (CAVALCANTE, 2016).

Consiste, pois, numa evasão fiscal mais rebuscada, posto que, reveste-se de uma pseudo formalidade de negócio jurídico ultimado, quando na realidade o intuito negocial propulsor de tal ato jurídico inexistiria.

Tanto a evasão quanto a elusão fiscal são combatidas pelo CTN, pelo art. 116, também conhecida como norma geral antielisiva. Nomenclatura que, a depender da opinião doutrinária adotada, poderia ser tida como equivocada, mas que relevaria o fato de ser tanto a elusão quanto a evasão fiscal, formas de elisão frustrada (CAVALCANTE, 2016).

De notar, destarte, que nenhum destes meios ilícitos de supressão ou de redução do quantum tributário devido se confundiria com a elisão fiscal que nada mais é do que o planejamento tributário, permitido pelo ordenamento jurídico, porquanto com este não se confronta.

“(...) se trata da forma de economizar no pagamento de tributos evitando a ocorrência de fatos geradores. Trata-se de mecanismo de antecipar-se e evitar o surgimento da obrigação tributária utilizando outras formas jurídicas lícitas para alcançar um resultado idêntico ou equivalente.” (CAVALCANTE, 2016).

Os tipos incriminadores, previstos na lei 8.137 guarda correlação com características próprias do garantismo ou da justiça restaurativa na medida em que se exige não só o inadimplemento, total ou parcial, do montante tributário realmente devido, mas, também, o ardil, materializado na falsificação de documentos, na omissão, na supressão, ou na declaração de informações falsas, prestadas ao Fisco, para com que assim haja a configuração de crime contra a ordem tributária.

Por lógico, tal infração penal, deste modo, se configuraria, já que trivial é o fato de que a lex poetelia não vige entre nós, sendo, desta forma, o inadimplemento tributário, por si só, insuscetível de levar qualquer pessoa a cárcere.

De se observar, entretanto, a título de curiosidade – e até mesmo de perplexidade – as lamentáveis novidades noticiadas pela Conjur, constantes das ratio decidendi derivadas dos julgamentos do REsp de nº: 598.005-SC e a decisão em HC, da 3ª Seção, de nº 399.109-SC, ambos, da lavra do STJ, possivelmente atentatórios à norma constitucional insculpida no inciso LXVII, do art. 5º, da CF, viabilizando a prisão por dívida tributária, divergindo diametralmente do posicionamento há muito tempo adotado pelo STF no julgado de nº 999425 SC, e pelo julgado emblemático de nº 466.343 que proibiria a prisão do depositário infiel, permitindo-se, ao fim, inegável afronta ao sobreprincípio da segurança jurídica, mormente, dentre os ideais que o conferem respaldo, aquele atinente à previsibilidade quanto aos efeitos de determinada norma jurídica (CARRAZZA, p.483, 2015).

O direito penal tributário - reitera-se – interessa-se pelo pagamento do tributo. O crédito tributário é tornado, pelo lançamento, líquido, certo e exigível, traduzindo-se, em sucintos termos, num recurso financeiro apto à satisfação do interesse secundário da administração pública.

Este que pode ser, assim, compreendido, em poucas palavras, pela sanha arrecadatória estatal para a manutenção eficiente de suas atividades enquanto pessoa jurídica de direito público, a fim de que seja, por fim, atendida supremacia do interesse público, a legalidade e outros valores que a sociedade espera do ente político como um todo.

Importa registrar que o princípio da legalidade tem que ser usado junto com o princípio da supremacia do interesse público, uma vez que a Administração tem a obrigação de praticar atos que atenda a sociedade como um todo e estes atos têm que ser convenientes para esta sociedade. (VIEGAS, 2011).

Ora, recuperado o crédito tributário, permitindo-se o regular funcionamento estatal, satisfazendo-se, deste modo, o interesse secundário da administração pública, prescindível se mostra a custódia do sonegador em estabelecimento prisional, sendo que aquele, por fim, optou por adimplir seu débito fiscal, cumprindo, de resto, a finalidade daquele ramo do direito. 

É Harada que, em artigo esclarecedor e  objetivo, tece análise percuciente a respeito da evolução, no ordenamento jurídico pátrio, de alguns dos crimes estudados pelo Direito Penal Tributário, mencionando, a título de exemplo, o trato legislativo conferido à Lei 4.729/1965, assim conhecida como a “lei de sonegação fiscal”,  em comparação com a lei 8137/90, intitulada, por sua vez de “lei dos crimes contra a ordem tributária”.

No cotejo realizado por aquele renomado tributarista se pode constatar, e com o mesmo convir que, no plano do direito substantivo, a intenção do legislador fora a de conceder, deveras, maior proteção aos autores das condutas ali descritas, haja vista que algumas modalidades de crimes de ordem tributária, ao longo do tempo, deixaram de ser formais, para alçarem a classificação de materiais.

Assim, não bastaria a concessão de informações destoantes da realidade com a intenção, genericamente de burlar o Fisco, para, a partir de então, haver a configuração dos delitos em tela– ao menos no que tange às modalidades criminosas elencadas pelo art. 1º da lei dos crimes contra a ordem tributária –, também sendo indispensável para a consumação dos mesmos, o evento traduzido pela efetiva supressão, ou pela minoração, do quantum tributário devido.

De assinalar, no entanto, que, apesar do fortalecimento do jus libertatis decorrente da alteração redacional que acarretaria na transmudação da classificação referida, houve, por outro lado, o recrudescimento da sanctio juris, passando o preceito secundário, antes consistente na detenção cumulada com multa, a consubstanciar-se em pena de reclusão conjugada com aquela sanção de natureza pecuniária.

Noutros termos, se se tornara mais dificultoso para o indivíduo ser tido como autor de um crime contra a ordem tributária. Doutra perspectiva, a partir do momento em que, assim, fosse considerado, deveria arcar, por subsequente, com sanção mais gravosa do que as de outrora.

Contudo, ainda que tivesse de suportar a “pesada mão” do Estado, quando do cometimento de tal infração penal atentatória aos interesses do Erário. Contaria o agente, nos  termos da lei, com a possibilidade de ser agraciado com a extinção da punibilidade, se o mesmo fosse integrante do regime de parcelamento antes do oferecimento da denúncia ministerial, e procedesse com o pagamento integral do débito tributário, e/ou de seus acessórios, antes do ajuizamento daquela (art. 15, §3º, Lei 9964/2000, art. 9º, caput, e §2º, da lei 10.684/2003).

Ter-se-ia – mal comparando – os mesmos efeitos, na prática, de um sursis processual, ainda mais quando se vislumbram as consequências contidas na redação do art. 89, da lei 9099/95, na realidade fática, ou seja, de forma convergente com o preceito contido no art. 9º, caput, enquanto pendente o parcelamento, não haveria de se ter o regular trâmite do processo judicial, sendo este extinto assim que pago o débito fiscal devido.

De notar, também, que o advento da lei 10.684/2003 conferiu maior propriedade à redação da Lei 9.964, isso porque, diante deste diploma legal, havia a dúvida se somente o pagamento total dos débitos que foram parcelados é que ensejaria a exclusão de culpabilidade, ou se o adimplemento integral, independente de parcelamento, também restaria abrangida por tal benesse.

A lógica, a razoabilidade, e a lei dirimiram a referida celeuma, chancelando de vez a estabilidade do sistema jurídico, no sentido de que o simples pagamento do valor devido era o que interessava à pacificação social, permitindo a extinção da punibilidade do sonegador, conforme se pode depreender do julgamento proferido pelo STF no HC de nº HC 81.929/RJ e HC 83.414/RS (HARADA, 2018).

Com todo este arcabouço legislativo e jurisprudencial, ter-se-ia como cumprida a finalidade do próprio direito penal tributário que, conforme já ressaltada ab initio, consistiria, em sucintos termos, na arrecadação do tributo devido.

De notar, ademais, que em razão da própria conceituação dispensada ao direito penal tributário, este não adstringe seu foco, tão somente, nestes últimos diplomas legais aludidos, alcançando, aliás, o trivial, ou seja, o próprio Código Penal, precisamente em seu capítulo, assim, intitulado “Dos Crimes Praticados Por Particular Contra A Administração Pública Em Geral”, nos arts. 334, 337-A, como também a figura típica prevista no art. 168-A, sob a rubrica “Da Apropriação Indébita”, entre outras infrações também encontradiças naquele código.

Pelas modificações legislativas e jurisprudenciais ocorridas, salvo raras, atuais, e preocupantes exceções, pode-se verificar que houve nítida evolução quanto ao fortalecimento do jus libertatis do indivíduo, assim, manifestada pela descrição textual das condutas elencadas no art.1ª da lei 8137, bem como, diante das soluções apresentadas pela lei 10864 de cristalino conteúdo restaurativo. Espera-se, destarte, que a jurisprudência, reveja certos posicionamentos atuais e que, com o passar do tempo, não destoe da lei, vez que esta demonstra-se, quanto ao aludido, baliza acertada na tutela do jus libertatis do indivíduo.

 

 

Notas e Referências

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2015.

CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, ano 2003, v. 98,           julho    2003.   Disponível      em: < https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67584/70194>. Acesso em: 05 set. 2017.

CAVALCANTE, Diogo Lopes. A estreita fronteira da elisão e evasão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 131, p. 199-220, 2016. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_bibliotec a/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RTFPub_n.131.08.PDF> Acesso em: 02/10/18.

HARADA, Kiyoshi. Evolução Legislativa dos Crimes Tributários. Gen Jurídico, São Paulo. 16 março. 2018.  Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2018/03/16/evolucaolegislativa-dos-crimes-tributarios/> Acesso em: 10 out. 2018.

Interpretação temerária Criminalizar não pagamento de tributos gera insegurança, diz advogado. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, set. 2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-set-26/criminalizar-nao-pagamento-tributos-gerainseguranca-advogado?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook>. Acesso em:

02/10/18.

Justiça Restaurativa. Carta Forense, São Paulo, 07 ago. 2007. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/justica-restaurativa/833>. Acesso em: 22 out. 2018.

OLIVEIRA, Daniel Kessler. Realmente você está sendo enganado sobre o garantismo penal. Canal Ciências Criminais, Porto Alegre - RS: 14 agosto. 2017. Disponível em:    <https://canalcienciascriminais.com.br/enganado-garantismo-penal/>. Acesso em: 22 out. 2018.

OLIVEIRA, Thiago Francisco Borges de. Noções elementares sobre o garantismo penal. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 21 nov. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.50764&seo=1>. Acesso em: 20 out. 2018.

TEIXEIRA Maria de Jesus Nunes; PEREIRA, D. N. JUSTIÇA RESTAURATIVA: justiça retributiva x justiça restaurativa. REVISTA ELETRÔNICA DE TRABALHOS ACADÊMICOS – UNIVERSO/GOIÂNIA., Ano 1, nº. 3, v. 1, p. 40,

  1. Disponível em:                                    <

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O princípio da supremacia do interesse público: uma visão crítica da sua devida conformação e aplicação. Conteudo Juridico,   Brasilia-DF:      12        mar.     2011    Disponível      em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.31499&seo=1>. Acesso em: 22 out. 2018.

 

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