Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
1 Introdução
O presente artigo objetiva apresentar a imprescindibilidade da elaboração de políticas públicas destinadas à equidade da população negra brasileira, diante do racismo institucional.
É preciso destacar que a criação de políticas públicas no Brasil passa por diferentes fases antes da implementação, podendo ser revista e modulada pelos setores participantes em vários momentos. Ocorre que, em resultado ao racismo institucional vigente, as políticas públicas destinadas à equidade racial raramente são cogitadas, fazendo com que o tema passe “despercebido” aos olhares dos agentes de formulação. O que se percebe é que, para que este tema seja considerado, geralmente necessita de uma forte pressão de movimentos sociais, em especial do Movimento Negro, fazendo com que ele se torne o principal agente capaz de instigar a aprovação de projetos.
Além disto, foi divulgada, recentemente, a aprovação do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, um marco importante no avanço do combate ao racismo institucional pelos órgãos do Poder Judiciário, em uma tentativa de: a) fomentar a representatividade em tais órgãos; b) oferecer capacitação aos magistrados acerca do tema; c) aperfeiçoar o banco de dados já existente para que possam ser elaboradas políticas públicas de equidade racial, e d) ampliar a comunicação entre o Poder Judiciário e os movimentos sociais (como o Movimento Negro).
Deste modo, este estudo busca evidenciar que, para além da teoria, as políticas públicas devem preocupar-se com a equidade, considerando as especificidades da população negra brasileira, e quanto aos órgãos do Poder Judiciário, cabe a fiscalização e implementação de políticas/ações efetivas no combate ao racismo institucional presente em tais espaços.
2 O processo de elaboração das políticas públicas brasileiras
O sistema democrático de direitos implantado no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, estabelece algumas formas de participação ativa da população na tomada de decisões com o intuito de colocar o cidadão “de frente” ao governo para que este possa satisfazer, de maneira eficaz, suas necessidades básicas como emprego, educação, moradia, saúde e saneamento básico. Para que isto ocorra, é preciso que se criem mecanismos aptos a conduzir instituições hegemônicas à mudanças, e uma das ferramentas criadas pela Carta Magna foram as políticas públicas (PEDONE, 1986).
O conceito de política pública vem sendo discutido pela doutrina ao longo dos anos, e ganhou diversas classificações. Uma das classificações basilares é a que subdivide as políticas públicas entre políticas públicas de Governo, que são aquelas propostas de ações temporárias que servem para cumprir um desejo político e que, ao passar do governo acaba sendo extinta ou reformulada, ou, as classificam em políticas públicas de Estado, que servem para combater problemas que assolam a população de modo geral, em uma tentativa de melhorar a qualidade de vida da região onde será implementada, mantendo-se mesmo com a mudança dos governos. Em geral, o conceito de política pública pode ser entendido como decisões, atividades normativas e administrativas, tomadas para resolver um problema de cunho social, destinadas a solucionar problemas de tamanha relevância que necessitam da participação de agentes governamentais para que possam ser solucionados (LIMA, 2015).
O processo de criação destas políticas passa por cinco fases principais: 1) Formação de Assuntos Públicos, momento em que os problemas sociais mais relevantes/urgentes surgem, trazidos por organizações não governamentais, movimento de cidadãos, partidos políticos e agentes de comunicação social, os quais discutem previamente sua relevância de acordo com o cenário sócio-político do contexto; 2) Formulação de Políticas Públicas, onde inicia-se o processo junto aos órgãos do Poder Executivo e Legislativo, fase em que serão analisadas as possibilidades reais de implementação do projeto sob o ponto de vista econômico e de racionalidade político-sistêmica (PEDONE, 1986) (MONTEIRO; MOREIRA, 2018).
Logo após, tem-se: 3) Processo Decisório, caracterizado pelo momento em que os setores sociais podem atuar com mais pressão, podendo gerar influência nas decisões, o qual pode ser considerado o momento mais delicado de todo o processo, afinal, pois se selecionam os problemas que serão resolvidos, e aqueles que serão ignorados e postergados; 4) Implementação das Políticas, momento fundamental para que se obtenha retorno sobre sua aceitabilidade, as possíveis adaptações e problemas que ela terá; e 5) Avaliação, cujo objetivo é verificar se ela foi implantada corretamente e quais os impactos que ela gerou naquele problema inicial, etapa que dará ensejo para sua manutenção, aprimoramento ou até mesmo a sua extinção (PEDONE, 1986) (MONTEIRO; MOREIRA, 2018).
Na prática, ainda que um programa proveniente de determinada política pública tenha uma avaliação negativa, raramente ele será cancelado. O que geralmente acontece é a troca de uma política pública por outra, ressaltando ainda mais a importância do processo inicial de elaboração, da participação dos movimentos sociais e órgãos jurídicos, bem como da necessidade de avaliações periódicas, para que se consiga corrigir e otimizar os rumos da educação brasileira (MONTEIRO; MOREIRA, 2015, p. 235). Mas o fato é que, dentre todas as fases de elaboração das políticas públicas educacionais, dificilmente encontram-se ações destinadas especificamente à população negra.
Segundo Fonte (2017), o planejamento e execução de políticas públicas precisa levar em consideração vários enfoques, como a realização de pesquisas, experiências, e a elaboração de novas propostas, tudo com o objetivo central de tornar os espaços cada vez mais diversos. No entanto, o que se vê, na prática, é que a população negra segue sempre em desvantagem com relação ao acesso às políticas públicas.
Portanto, pensar políticas públicas de equidade racial significa muito mais do que igualar os índices de acesso à cargos de poder, mas garantir a possibilidade de um futuro próspero a famílias plurais, ocupando cargos não antes ocupados por seus pares (FONTE, 2017). É preciso equidade para que a população negra possa ter perspectivas muito maiores do que “apenas” sobreviver às opressões racistas brasileiras.
3 O racismo e o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial
Sabe-se que o processo de racialização incutido forçosamente à população escravizada fez com que o racismo se tornasse, no Brasil, um sistema subjetivo (não menos violento) de controle de corpos. Tal processo pode ser explicado a partir de dois fatores: o primeiro ocorreu quando a raça passou a ser o que determina as posições sociais que cada indivíduo ocupa ao longo da vida, razão pela qual o colonizado passa a ser visto como alguém instável e primitivo, posição contrária ao colonizador europeu; o segundo, por sua vez, ocorreu quando o colonizado acatou sua posição de inferior, interiorizando-a e passando a se reconhecer através das lentes do colonialismo. A partir daqui o negro passa a ser considerado o “outro”, o desumano, que nega a si próprio ao invés de negar quem o coloniza (FAUSTINO, 2015).
A raça, neste sentido, foi concebida como uma forma de diferenciação baseada no fenótipo, situando os colonizados em evidente inferioridade em relação a seus colonizadores, em uma tentativa de legitimar as relações de dominação estabelecidas. Este foi o marcador que fez com que os povos colonizados passassem a ser vistos como naturalmente inferiores, assim como seus traços, sua intelectualidade e suas culturas (QUIJANO, 2005). Ou seja, o racismo, base ideológica na colonização, não é simplesmente um confronto entre civilizações e/ou culturas, mas sim “a negação sistemática da humanidade do outro com vistas à sua exploração e dominação” (FAUSTINO, 2018, p. 87). Tanto é que segundo Pires e Oyarzabal (2019, p. 01), os colonizadores “não hesitaram em humilhar, ferir, escravizar e matar para conquistar terras e o poder inerente à elas”.
Atualmente, pode-se afirmar que existem diversas formas pelas quais o racismo se apresenta, sendo uma delas a abordada pelo trabalho, qual seja, o racismo institucional. Ele pode ser entendido como “o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça” (ALMEIDA, 2019, p. 37-38). Desta forma, a existência de desigualdades raciais é fruto de instituições compostas hegemonicamente pelo grupo racial branco, que impõe seus interesses político-econômicos de modo a impedir o acesso da população negra a estes locais (ALMEIDA, 2019).
E foi considerando tais situações que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ criou o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, cujo marco inicial foi a divulgação de que, se mantida a atual sistemática, apenas 22% dos cargos da magistratura brasileira serão ocupados por pessoas negras até 2044. Segundo o CNJ, o pacto se efetivará com a colaboração do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior do Trabalho, além da participação dos movimentos sociais (CNJ, 2022).
Seus objetivos estão subdivididos em três eixos fundamentais: Eixo 01 - Promoção da equidade racial no Poder Judiciário, objetivando fomentar a representatividade e regulamentar comissões de Heteroidentificação nestes espaços; Eixo 2 - Desarticulação do Racismo Institucional, visando a elaboração de formações continuadas a magistrados, bem como a promoção de ações preventivas no combate à discriminação (CNJ, 2022).
O Eixo 03 consiste na Sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário, com vistas a aperfeiçoar o banco de dados já existente para que possam ser implementadas políticas públicas de equidade racial; Eixo 04 - Articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário, momento em que serão adotadas ações voltadas à correção de desigualdades raciais em um diálogo permanente com outros órgãos do sistema de justiça e com movimentos sociais (CNJ, 2022).
O Pacto poderá vir a ser um grande instrumento antirracista na construção de espaços equânimes, sendo a população negra cada vez mais representada através dos seus. Isto reforça que a desconstrução do racismo requer a vigilância constante de todos os órgãos sociais, desde a família, o Poder Público e suas instituições, em uma pedagogia integrada onde todos os agentes possam participar efetivamente do diálogo (HOOKS, 2021).
4 Conclusão
Percebe-se, portanto, que o racismo se tornou um sistema implícito de categorização, diferenciação e objetificação de pessoas através do marcador racial. Por diversas vezes os seus rastros não são muito bem percebidos em ambientes hegemônicos, justamente pela falta de diversidade na ocupação dos cargos de poder.
Isto se reflete muito bem na projeção anunciada recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça, onde a representatividade da população negra nos cargos da magistratura será superficial até o ano de 2044, quando comparada à população branca. Tal previsão reforça a necessidade de criação de políticas públicas específicas dentro deste órgão de justiça, no intuito de capacitar os magistrados que se encontram em atuação, bem como aqueles que assumirão os cargos, sendo imprescindível também a coleta de dados para que possam ser pensadas políticas públicas de equidade.
Sabe-se da dificuldade na inclusão da pauta antirracista quando das formulações de políticas públicas, mas pode-se concluir que a criação do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial poderá significar um grande aliado no combate ao racismo institucional, por vezes, presente nestes locais. É preciso que todos os agentes envolvidos estejam comprometidos com o tratamento das chagas deixadas pelo colonialismo brasileiro, para que, em coletivo, consiga-se uma sociedade mais humana.
Notas e Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Pólen Livros, 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/direitos-humanos/pacto-nacional-do-judiciario-pela-equidade-racial/>. Acesso em: 10 dez. 2022.
FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. 1 ed. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018. Ebook. Disponível em:<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5143585/mod_resource/content/1/06-A-Deivison-FANON.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2022.
FAUSTINO, Deivison Mendes. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. 2015. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, p. 261, 2015. Disponível em:<https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/7123/TeseDMF.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 12 dez. 2022.
FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais. Saraiva Educação SA, 2017.
HOOKS, Bell. Ensinando a comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Editora Elefante, 2021.
LIMA, Fernanda da Silva. Os direitos humanos e fundamentais de crianças e adolescentes negros à luz da proteção integral: Limites e perspectivas das políticas públicas para a garantia de igualdade racial no Brasil. Tese (Doutorado em Direito), pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
MONTEIRO, Susana; MOREIRA, Amílcar. O ciclo da política pública: da formulação à avaliação ex post. In FERRÃO, João; PAIXÃO, José Manuel Pinto. Metodologias de avaliação de políticas públicas. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2018, p. 71-86.
PEDONE, Luiz. Formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. 1986. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/2982>. Acesso em: 01 dez. 2022.
PIRES, Cláudia Luisa Zeferino; OYARZABAL, Larissa da Silva. Abolição da escravatura: 131 anos de liberdade ou ilusão? Revista Literatura em Debate, v. 13, n. 24, p. 4-14, jan./jun. 2019. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/220245/001121587.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 10 dez. 2022.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Editora CLACSO, 2005, p. 117-142. Disponível em:<http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2022.
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