Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Com o advento da Lei 13.964/19, mais conhecida como Pacote Anticrime, surgiram muitas questões processuais interessantes que devem ser enfrentadas. Entendemos que a opção legislativa deve ser respeitada, salvo, evidentemente, quando incompatível com a Constituição Federal. Não desconhecemos a qualidade dos nossos parlamentares, assim como não desconhecemos a forma como são eleitos e a maneira como desempenham as suas funções.
Ainda assim, em um Estado Democrático de Direito, não cabe ao Poder Judiciário filtrar a legislação infraconstitucional à luz da sua vontade ou com base nas opções políticas de seus integrantes. Se há inconstitucionalidade sob o ponto de vista técnico, a mesma deve ser declarada. Se não há a referida inconstitucionalidade, a legislação infraconstitucional deve ser respeitada e observada na prática.
Partindo dessa premissa, temos examinado os dispositivos que compõem o Pacote Anticrime fazendo um juízo crítico, sem a radicalidade que temos visto em muitos intérpretes. Existem coisas positivas e negativas na Lei 13.964/19. Também merece registro o fato de alguns dispositivos criarem situações que, na prática, serão capazes de gerar perplexidades.
O que se pretende neste texto é tratar de uma parte específica dos juízo das garantias. Veja-se que o Pacote Anticrime inseriu no nosso ordenamento jurídico a figura do juiz das garantias. De forma absolutamente resumida, é possível definir o juiz das garantias como sendo aquele que atuará nos procedimentos que embasam o oferecimento da denúncia ou da queixa, sendo certo que a nova lei define pormenorizadamente a sua competência, a qual se encerra justamente no momento em que a denúncia ou a queixa é recebida.
Em outras palavras, o juiz das garantias deve atuar até o recebimento da denúncia ou da queixa, devendo outro juiz assumir a presidência do processo posteriormente, fazendo a instrução em juízo e proferindo a sentença.
Ocorre que o novo art. 3º-C, § 3º, do CPP, dispõe o seguinte: os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.
A primeira questão decorre do fato de o Pacote Anticrime passar a exigir que dois juízos atuem no mesmo processo, ou seja, serão necessários dois cartórios ou duas secretarias distintas. Não cabe ao mesmo juiz ser responsável pelo juízo das garantias e pelo juízo da instrução e julgamento. O legislador podia ter optado por manter um único juízo, com a atuação de dois juízes – um juiz das garantias e um juiz da instrução e julgamento. Mas a nova lei expressamente distingue os juízos e, por consequência, distingue os juízes.
Portanto, o juiz das garantias participará da fase pré-processual, contando com o apoio de sua equipe de servidores lotados no juízo das garantias. Após receber a denúncia ou a queixa, o juiz das garantias manterá no juízo das garantias as peças que embasaram o oferecimento da denúncia ou da queixa e enviará, em regra, apenas a denúncia ou a queixa para o juízo da instrução e julgamento.
Qual é a óbvia motivação desse dispositivo? Evitar que o juiz da instrução e julgamento seja “contaminado” pelas peças que embasaram o oferecimento da denúncia ou da queixa. Portanto, segundo o legislador, essas peças passam a constituir um mistério para o juiz da instrução e julgamento.
Ocorre que as mencionadas peças não serão levadas ao juízo da instrução e julgamento, mas ficarão à disposição do Ministério Público e da defesa, os quais terão livre acesso às mesmas, bastando consultá-las no juízo das garantias. É o art. 3º-C, § 4º, do CPP, que dispõe que fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.
A questão ganha complexidade quando se percebe que a vontade do legislador é evitar qualquer contato do juiz da instrução e julgamento com os elementos constantes no procedimento que embasou o oferecimento da denúncia ou da queixa. Isso porque, ao mesmo tempo que deseja evitar tal contato, o legislador afirma, no art. 3º-C, § 2º, do CPP, que as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.
Então, a questão passa a ser seguinte: de que maneira o juiz da instrução e julgamento pode reavaliar alguma decisão do juiz das garantias se não tiver acesso a todos os elementos que compõem o procedimento pré-processual?
Há também uma questão de ordem prática que não pode ser ignorada. Embora o legislador tenha sido expresso ao distinguir o juízo das garantias e o juízo da instrução e julgamento, adotando a cautela de os autos pré-processuais ficarem separados dos autos processuais propriamente ditos, a referida cautela pode ser facilmente driblada pelas partes.
O art. 231, caput, do CPP, não foi alterado pelo Pacote Anticrime. Tal dispositivo dispõe que, salvo os casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo.
Portanto, é possível ter no dia a dia forense uma situação inusitada. O Ministério Público oferece a denúncia, embasando-a com os autos do inquérito policial. O juiz das garantias recebe a denúncia, acautela os autos do inquérito policial no juízo das garantias e envia a denúncia para o juízo da instrução e julgamento. O Ministério Público providencia cópia integral dos autos do inquérito policial e requer a sua juntada aos autos existentes no juízo da instrução e julgamento, com base no art. 231, caput, do CPP. Sequer será possível indeferir a juntada da cópia integral dos autos do inquérito policial, sob o argumento de que se trata de prova impertinente ou irrelevante. Isso porque, muito ao contrário, se trata de prova evidentemente pertinente e relevante.
Essa questão é parecida com aquela provocada pelo art. 8º, § 2º, da Resolução nº 213/15, do Conselho Nacional de Justiça, que trata das audiências de custódia. Tal dispositivo afirma que a oitiva da pessoa presa será registrada, preferencialmente, em mídia, dispensando-se a formalização de termo de manifestação de pessoa presa ou do conteúdo das postulações das partes, e ficará arquivada na unidade responsável pela audiência de custódia.
Em outras palavras, na prática, as declarações do preso submetido à audiência de custódia ficam guardadas no juízo da custódia, não sendo levadas, em um primeiro momento, ao juízo competente para o julgamento. Todavia, nada impede que o Ministério Público requeira a sua vinda aos autos.
Não custa lembrar que a discussão sobre a validade da Resolução nº 213/15 perdeu valor porque o Pacote Anticrime inseriu a previsão para a realização da audiência de custódia no próprio CPP. Mas isso é tema para outro texto.
Em conclusão, entendemos que há certo exagero do legislador ao determinar que a denúncia ou a queixa, em regra, sejam recebidas pelo juiz das garantias e sejam encaminhadas sozinhas ao juiz da instrução e julgamento, ou seja, sejam enviadas ao juiz da instrução e julgamento desacompanhadas dos autos que revelaram a presença da justa causa e que, justamente por isso, permitiram o oferecimento da denúncia ou da queixa.
Isso mais atrapalha do que ajuda a dinâmica processual. O art. 155, caput, do CPP, continua a ter a seguinte redação: o juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar a sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Portanto, qualquer juiz da instrução e julgamento sabe que, em regra, não poderá embasar a sua sentença com os elementos produzidos na fase pré-processual. Além do mais, se as partes têm livre acesso aos autos que ficaram no juízo das garantias e se as partes podem trazer a sua cópia ao juízo da instrução e julgamento, é evidente que não faz sentido a manobra cartorária prevista no Pacote Anticrime. Enfim, é esperar para ver como as coisas irão se desenvolver no dia a dia forense.
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