O PACOTE ANTICRIME: O JUIZ DAS GARANTIAS E O “TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL”

31/01/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Para ouvir a leitura do artigo, clique aqui!

Temos escrito uma série de textos relativos ao Pacote Anticrime, o qual provocou uma série de mudanças no Código Penal, no Código de Processo Penal e em diversos outros textos legais. Não duvidamos da importância de tais mudanças. Aliás, a Lei 13.964/19, em razão da relevância das transformações que operou na justiça criminal, tem levado a comunidade jurídica a muitas reflexões interessantes, o que se constata pela leitura de muitos textos que têm sido veiculados pela doutrina.

A mudança mais polêmica, sem qualquer dúvida, decorreu da criação do chamado juízo das garantias, sobre o qual, aliás, já nos manifestamos em outros textos. De forma simplificada, é possível afirmar que dois diferentes juízes deverão atuar nos processos criminais. O juiz das garantias atuará na fase de investigação, até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, enquanto o juiz da instrução e do julgamento presidirá a instrução a ser feita em juízo e, depois, proferirá a sentença.

Na nossa avaliação, é possível criticar a opção legislativa. Mas a discordância quanto à criação do juízo das garantias não pode, por si só, impor o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Há mudanças trazidas pelo Pacote Anticrime que, realmente, podem ter a sua constitucionalidade questionada. Mas, em um sentido mais amplo, a instituição do juízo das garantias não nos parece carecer de constitucionalidade. A divisão de “tarefas” entre dois juízes, em um mesmo processo e na mesma instância, não encontra, a rigor, resistência na Constituição Federal.

Cabe repetir: é possível discordar da opção legislativa, mas uma coisa é discordar e outra coisa – muito diferente, aliás – é qualificar como inconstitucional algum texto legal que, a rigor, é compatível com a carta constitucional.

Feito esse registro, pretendemos abordar um ponto específico do Pacote Anticrime, qual seja, o disposto no art. 3º-B, IX, do Código de Processo Penal, segundo o qual cabe ao juiz das garantias determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento.

Sabemos que, recentemente, em decisão liminar proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade, o Ministro Fux impediu a vigência do mencionado dispositivo, sendo certo que o colegiado do Supremo Tribunal Federal ainda deverá enfrentar o tema.

Mas, apesar da decisão liminar referida, é importante uma melhor reflexão sobre os novos pontos trazidos pelo Pacote Anticrime, razão pela qual o dispositivo em destaque merece exame neste momento.

A primeira observação a ser feita refere-se ao fato de o legislador ter aderido a uma expressão criada pela doutrina que, a rigor, carece de técnica. Dizer que o inquérito policial pode ser trancado revela muito pouco sob o ponto de vista técnico. Melhor seria se o legislador dissesse que o juiz das garantias tem competência para determinar o arquivamento dos autos do inquérito policial ou para impedir o prosseguimento das investigações.

O curioso é que o mencionado trancamento, na prática, equivale ao arquivamento dos autos da investigação, sendo difícil entender a razão que afastou o legislador do uso do vocábulo arquivamento, tantas vezes utilizado na nossa legislação processual.

A segunda observação a ser feita refere-se ao fato de o legislador ter mencionado, de forma expressa, o inquérito policial, deixando de fazer menção a outros procedimentos que porventura tenham sido instaurados para a apuração de eventual prática criminosa.

É evidente que o uso da analogia permite que o juiz das garantias também determine o arquivamento de outros procedimentos investigatórios, mas o legislador podia ter sido mais cuidadoso neste sentido.

A terceira observação a ser feita refere-se ao ponto mais sensível que é abordado pelo dispositivo em exame, o qual autoriza o juiz das garantias a arquivar os autos do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento.

Isso porque a investigação policial, normalmente materializada nos autos do inquérito policial, tem o propósito de buscar a justa causa, ou seja, o mínimo suporte probatório indispensável para o exercício do direito de ação. Em outras palavras, a investigação policial buscar reunir os elementos imprescindíveis para o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime.

Evidentemente, sendo o status de réu em processo criminal ofensivo, por si só, à sua dignidade, só é possível o recebimento da denúncia ou da queixa-crime quando existem elementos mínimos em seu desfavor.

Portanto, a questão a ser respondida é a seguinte: se o inquérito policial justamente busca tais elementos mínimos, em que situações será possível o trancamento da investigação? Há uma certa falta de lógica quando se impede o prosseguimento de uma investigação sob o argumento de que inexistem elementos contra o investigado quando se sabe que o propósito da investigação é justamente obter tais elementos.

Não se duvida que o status de investigado também ofende a dignidade da pessoa contra a qual a investigação é realizada. Assim como ninguém gosta de ser réu em um processo criminal, ninguém gosta de ser investigado em um inquérito policial.

Todavia, o filtro a ser feito no caso de investigação policial é diferenciado. Em outras palavras, apenas em hipóteses verdadeiramente excepcionalíssimas é possível evitar a instauração do procedimento investigatório ou evitar o prosseguimento das investigações.

A competência é mesmo do juiz das garantias, mas, na nossa opinião, apenas será possível o trancamento da investigação quando o caso for teratológico, mostrando-se verdadeiramente incabível.

O fundamento razoável referido pelo legislador há de ser visto com o rigor que o caso exige. Não cabe a discussão em sede do procedimento investigatório com a mesma extensão daquela que deve ser estabelecida em juízo, com a observância de todos os princípios constitucionais.

Em síntese, entendemos o seguinte: (i) é correta a opção legislativa quando fixa a competência do juiz das garantias para o trancamento da investigação policial, (ii) o termo trancamento carece da melhor técnica, (iii) o referido trancamento abrange qualquer procedimento destinado à investigação de uma suposta prática criminal e (iv) apenas em hipóteses verdadeiramente excepcionais é possível o trancamento do procedimento investigatório para evitar a sua instauração ou para evitar o seu prosseguimento.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: jessica45 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/photos/lady-justice-legal-law-justice-2388500/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura