Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
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Temos tentado abordar alguns aspectos relevantes do Pacote Anticrime em nossas últimas colunas. Isso tem sido feito porque o Código Penal e o Código de Processo Penal, além de outras importantes leis, sofreram alterações muito significativas. Os alunos que já cursaram tais disciplinas terão sérios problemas, caso não se atualizem, porque não estudarão na graduação tais modificações, salvo se as faculdades criarem alguma disciplina específica para tanto. De outro lado, os operadores do Direito, já familiarizados com o sistema até então vigente, não poderão ignorar, no dia a dia forense, tantas mudanças.
O que entendemos curioso é o fato de a Lei 13.964/19 ter sido muito criticada, tanto por aqueles que acreditam que o rigor da lei é capaz de mudar a realidade social, quanto por aqueles que têm um entendimento mais liberal. Na nossa opinião, a nova lei merece críticas, mas é preciso alguma razoabilidade em sua análise. A alteração legislativa agora trazida não é uma maravilha, mas também não é um horror. É com esse propósito, de examinar o Pacote Anticrime de forma técnica, sem grandes emoções, é que temos dedicado ultimamente as nossas colunas aos seus aspectos mais importantes.
O que se pretende neste texto é examinar a mudança operada no art. 75 do Código Penal, cuja redação anterior era a seguinte.
Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos.
§1º. Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.
§2º. Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.
A mudança operada pelo Pacote Anticrime foi muito simples: onde se lê 30 (trinta) anos, leia-se 40 (quarenta) anos. Embora apenas tenham sido alterados o caput e o § 1º do art. 75 do Código Penal, não tendo o seu § 2º sofrido qualquer alteração, existem aspectos relevantes a serem destacados.
O primeiro aspecto importante consiste no fato de prevalecer o entendimento segundo o qual os benefícios previstos na Lei de Execução Penal devem incidir no total da pena recebida pelo réu, e não na pena unificada, que agora passa a ser de 40 anos.
Portanto, se o réu for condenado à pena privativa de liberdade de 180 anos de reclusão, ele ficará preso, no máximo, por 40 anos. Se ele fizer jus a algum benefício na execução penal que exija o cumprimento de 1/6 da pena, o cálculo deverá incidir na pena total de 180 anos, e não na pena de 40 anos, prevista no art. 75 do Código Penal.
Isso gera uma repercussão matemática evidente porque, para cumprir 1/6 de 180 anos, o réu terá que esperar 30 anos. De outro lado, para cumprir 1/6 de 40 anos, o réu terá que esperar 6 anos e 8 meses.
Embora seja possível criticar tal entendimento, não se pode esquecer que a súmula 715 do Supremo Tribunal Federal dispõe o seguinte: a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução.
Com a mudança decorrente do Pacote Anticrime, não há qualquer razão jurídica ou lógica que determine o afastamento da mencionada súmula, cujo entendimento, na nossa opinião, acaba por permitir um tratamento diferenciado de réus que se encontram em situações diferenciadas. Não faria sentido dar ao réu condenado a 180 anos de reclusão o mesmo tratamento dado ao réu condenado a 40 anos de reclusão.
Dessa maneira, a nova lei apenas altera o limite a ser considerado para a unificação das penas. Antes do Pacote Anticrime, esse limite era de 30 anos. Após o Pacote Anticrime, esse limite passou a ser de 40 anos.
Não custa lembrar que o art. 75, § 2º, do Código Penal, não foi alterado e, por isso, permanece em vigor com a sua anterior redação, segundo a qual, sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.
Portanto, é absolutamente possível que alguém fique preso por mais de 40 anos no Brasil. Basta, por exemplo, que a pessoa pratique um crime durante a execução penal, provocando nova unificação das penas.
Vale um exemplo simples. O réu é condenado à pena de 60 anos de reclusão, a qual foi limitada em 40 anos de reclusão, à luz da nova redação do art. 75, caput e § 1º, do Código Penal. Após cumprir 30 anos da pena, o réu pratica dois homicídios dentro do presídio, em razão dos quais é condenado à pena de 50 anos de reclusão. Será necessário somar o tempo que restava de cumprimento de pena em razão da primeira condenação, que é de 10 anos, com o tempo de cumprimento de pena fixado na segunda condenação, que é de 50 anos. As penas unificadas alcançarão o patamar de 60 anos de reclusão, impondo-se nova limitação para o cumprimento em 40 anos de reclusão, conforme dispõe o art. 75, § 2º, do Código Penal. Portanto, no cômputo total, o réu terá ficado preso por 30 anos e ainda deverá cumprir outros 40 anos de prisão. Não custa lembrar que isso só será possível se for necessária mais de uma unificação das penas.
Uma última e importante questão a ser abordada na análise da mudança realizada no dispositivo em destaque decorre do reconhecimento no sentido de que se trata de uma nova norma penal desfavorável ao réu, impedindo-se a sua aplicação retroativa.
Portanto, na nossa avaliação, apenas as condenações decorrente de crimes praticados após a vigência do Pacote Anticrime é que permitirão a unificação das penas no limite de 40 anos.
Se a unificação envolver qualquer crime praticado antes da mudança da lei, o patamar a ser observado será o mais benéfico ao réu, qual seja, o patamar de 30 anos. Portanto, se o réu é condenado a 20 anos de reclusão por crime praticado antes da nova lei e, depois, ele vem a ser condenado a outros 20 anos de reclusão por crime praticado sob a vigência da nova lei, as penas deverão ser unificadas em 30 anos, e não em 40 anos, uma vez que um dos crimes envolvidos foi praticado antes da alteração legislativa ocorrida em seu prejuízo.
Temos dúvidas quanto ao fato de a vigência de leis mais rigorosas ser capaz de diminuir a criminalidade. A mudança agora estudada é, sem dúvida, mais rigorosa, o que atende aos anseios daqueles que acreditam na melhora da vida em sociedade através dessa estratégia. Resta aguardar para verificar se as mudanças sociais, de fato, ocorrerão.
Imagem Ilustrativa do Post: Arame // Foto de: ErikaWittlieb // Sem alterações
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