O PACOTE ANTICRIME E O MEDO COMO GARANTIAS DE ADESÃO A UM GOVERNO ANTIDEMOCRÁTICO

28/02/2020

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

“Se você fosse hoje o presidente da República, fecharia o Congresso Nacional?”. Bolsonaro, então com 44 anos e em seu terceiro mandato na Câmara, não titubeou: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia. Não funciona! E tenho certeza que pelo menos 90% da população ia fazer festa e bater palma. O Congresso hoje em dia não serve pra nada, xará. Só vota o que o presidente quer. Se ele é a pessoa que decide, que manda, que tripudia em cima do Congresso, então dê logo o golpe, parte logo pra ditadura”.

Em outro momento, o apresentador perguntou se o então deputado do baixo clero tinha a esperança de ver o Brasil ser um país melhor no futuro. Bolsonaro respondeu: “Me desculpa, mas através do voto você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com FHC. Não deixar ir para fora, não! Matando! Se vai (sic) morrer alguns inocentes, tudo bem”.

Diante da repercussão das declarações, o ex capitão foi ao plenário reclamar que havia sofrido um “massacre” da imprensa, mas não desmentiu o que disse, ao contrário: “Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso Nacional dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo”. (OYAMA, 2020, p. 64)

O que isso significa? Em que contexto, enquanto sociedade, estamos inseridos?

Que o nosso atual Presidente extrapola limites (da razoabilidade e humanidade), já sabemos. Mas será ele só essa figura que coleciona preconceitos e é intragável para grande parte do Brasil e do mundo? Será ele só um cara que permaneceu 27 anos na Câmara dos Deputados com apenas 2 projetos aprovados de 170 apresentados?

E sobre o atual Ministro da Justiça, nomeado pelo Presidente, Sérgio Moro. Será ele só um juiz parcial, movido por interesses pessoais que por meio do clamor público garantiu sua condição privilegiada de herói nacional e permaneceu perante os holofotes?

Talvez eles sejam realmente “só isso”. E talvez “só isso” nos ensine muita coisa.

Sérgio Moro, que no imaginário de parte da sociedade brasileira é como um símbolo do combate a corrupção no Brasil, foi o quinto ministro anunciado pelo Presidente e foi quem propôs o projeto de alteração legislativa, vulgo Pacote Anticrime. No dia 1º de novembro de 2018, Bolsonaro, no twitter, mencionou o magistrado: “Sua agenda anticorrupção, anticrime organizado, bem como respeito à Constituição e às leis será o nosso norte!”

Publicada em 24 de dezembro de 2019, a Lei 13.964, após muito discutida nas casas legislativas e alterada por diversas vezes, trouxe muitas mudanças nos códigos de direito e processo penal, além das alterações em diversas leis extravagantes.

O Pacote Anticrime inicialmente era composto de inúmeros pontos inconstitucionais, - e aqui destaco esse caráter “anti” muitas coisas do Ministro, quiçá “anti” constituição -. No entanto, felizmente, em sua versão final, somente 13 de 50 dispositivos propostos foram mantidos e, ao contrário do que se esperava da nomenclatura, a lei não tratou apenas de normas “contrárias ao crime”, mas trouxe também garantias, como o próprio instituto do juiz de garantias. O que gerou o alívio e despreocupação de muitos (por ora).

No entanto, me limito aqui a tratar dos aspectos das normas que trazem à tona o já presente e em ascensão, expansionismo penal, por meio dos dispositivos que preveem o recrudescimento de leis como forma de combate ao crime.

Importante pontuar que o pacote não foi criado tendo como base estudos de diagnósticos, planejamentos, levantamentos, prognósticos ou fundamentação empírica aptos a atestarem sua qualidade efetiva de reduzir os índices de criminalidade. O que já era de se esperar de um projeto vindo de um Juiz Federal que, no exercício da profissão, costumava agir parcialmente, com abuso de poder e conforme suas próprias convicções.

Além disso, das propostas de governo, compostas de, à título de exemplo: reforma do Estatuto do Armamento, redução da maioridade penal, contrariedade à progressão de regime em cumprimento de pena e às saídas temporárias, nota-se o caráter de resposta do Pacote Anticrime aos anseios de uma sociedade sedenta pelo fim da “impunidade” e que adere, à qualquer custo, a uma política que aposte em métodos mais rigorosos de punição. O que é compreensível sob a ótica do movimento globalizado e do aumento da criminalidade que, mal sabem eles, não se passam dos frutos de todos os métodos “enxuga gelo” que apoiam veementemente.

Ao longo da história, tivemos inúmeras condutas governamentais nesse mesmo caráter. No entanto, essa mesma história nos mostrou que o endurecimento das leis e a redução da criminalidade não se relacionam, mas pelo contrário, continuam nos lembrando do colapso em que se encontra o nosso sistema penal. Nesse sentido, Tiago Joffily e Airton Gomes Braga afirmam

“o problema é que a imaginada correlação entre encarceramento, de um lado, e redução da criminalidade, de outro, nunca foi demonstrada empiricamente. Ao contrário, as mais recentes e abrangentes pesquisas empíricas realizadas sobre o tema apontam para a inexistência de qualquer correlação direta entre esses dois fenômenos, havendo praticamente consenso entre os estudiosos, hoje, de que o aumento das taxas de encarceramento pouco ou nada contribui para a redução dos índices de criminalidade”. [1]

Pois bem, de tudo isso nós já estamos fartos de saber (ou pelo menos deveríamos). No entanto, atentos à essa mesma história, percebemos que são as estratégias punitivas, com uma dose de violência face a uma sociedade insegura e com medo, que garantem a adesão a um governo que, até agora, se mostrou incapaz de promover verdadeiras e efetivas melhoras na vida do povo brasileiro.

Toda essa perspectiva acerca da insegurança e do medo, pode ser entendida através das transformações abarcadas pelo neoliberalismo da primeira metade do século XX, onde o capitalismo teve forte influência no surgimento de centros sociais, que seriam cidades globais com fluxo intenso de pessoas e grande circulação de capitais.

Para Bauman, parafraseando entre Freud e Castel, “nos últimos anos, sobretudo na Europa e em suas ramificações no ultramar, a forte tendência a sentir medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras”. (BAUMAN, 2009, p.10).

Nesse linear, construímos inimigos que não existem e somos manipulados por toda e qualquer informação que nos é trazida nos mantendo num ciclo vicioso de sustentar fantasmas.

Não negamos a existência de uma sociedade violenta, e o problema não é saber que ela existe, o problema é começar a enxergar o perigo, a ameaça e o inimigo no outro e em qualquer canto. É quando o medo gera a exclusão, se torna maior que a nossa indignação e deixamos de questionar, de buscar razões, de lutar pelo correto, pelo coerente, pelo ético e pelo legal só porque estamos com medo e queremos uma resposta.

Esse sentimento subjetivo de insegurança traz como consequência modificações sócio-políticas, vez que, governantes como Jair Bolsonaro, carregados em sua essência de interesses unicamente partidários e pessoais, se aproveitam dessa fragilidade e falta de intelectualidade social visando tão somente a manutenção e perpetração do poder.

Logo, para que se chegue a concretizar determinados discursos demagogos, surgem essas leis penais sem quaisquer estudos prévios, disfarçadas de legalidade, apenas para satisfazer os anseios sociais.  Neste sentido, ponderam Saavedra e Vasconcellos (2011):

Portanto, muitas leis punitivas são legisladas somente para “acalmar” os anseios do povo e, com isso, obviamente, cativar futuros eleitores. Pode-se perceber, a partir da análise do clamor social punitivo, a formação de dois polos definidos e antagônicos: o ofensor e a sociedade, o agressor e as “pessoas de bem” agredidas. A proteção da população se destaca como principal, se não único, objetivo do direito penal, pois, segundo David Garland: “Hoje, há uma nova e urgente ênfase na necessidade de segurança, na contenção do perigo, na identificação e administração de qualquer tipo de risco. Proteger o público se tornou o tema dominante da política penal. (SAAVEDRA, 2011, p.30).

Sob uma análise da aprovação do Pacote Anticrime pelo Legislativo, mesmo com dispositivos inconstitucionais, destaca-se a importância de estarmos atentos às razões da criação dessas leis, que não se passam de esforços do próprio governo para subverter a democracia de uma forma “legal”.

Ao se apresentar como um instrumento “anticorrupção e anticrime organizado”, a nova lei, mesmo com dispositivos de recrudescimento penal, é apresentada como um aperfeiçoamento da democracia, levando a transformação dos próprios poderes em armas políticas. Nesse sentido, Steven Levitsky faz uma leitura desse contexto e nos ensina:

As instituições se tornam armas políticas, brandidas violentamente por aqueles que as controlam contra aqueles que não as controlam. É assim que os autocratas eleitos subvertem a democracia – aparelhando tribunais e outras agências neutras e usando-os como armas, comprando a mídia e o setor provado (ou intimidando-os para que se calem) e reescrevendo as regras da política para mudar a mando de campo e virar o jogo contra os oponentes. O paradoxo trágico da vida eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la. (LEVITSKY, 2018, p. 19)

Essa tendência autoritarista que Levitsky traz sob o parâmetro norte americano se coaduna perfeitamente com o que Theodor Adorno, em 1950, numa pesquisa sobre personalidade autoritária ensinou sobre a identificação desses traços e a gênese de condutas antidemocráticas.

Segundo ele, as convicções e concepções pessoais sobre política, economia e sociedade se transcrevem numa mentalidade que se torna o padrão dos traços e tendências da sua personalidade.

O que observamos é que, a personalidade composta de uma potencialidade fascista e autoritária, caráter militar e paixão pela ditadura de quem tem o poder em mãos é um grave risco a democracia, especialmente porque, enquanto representante do povo num Estado, ainda Democrático de Direito, deveria agir como garantidor de direitos fundamentais e não como um sujeito irracional que enxerga o que conquistamos em anos, como um obstáculo a ser superado em prol da eficácia estatal.

Nas palavras de Levitsky, “para os outsiders, porém, sobretudo aqueles com inclinações demagógicas, a política democrática é com frequência considerada insuportavelmente frustrante. Para eles, freios e contrapesos são vistos como uma camisa de força.” (2018, p. 80)

Fato é que, as instituições de poder para alcançarem seus fins de domínio funcionam tendo como instrumento coações e amedrontamentos e não podemos perder de vista que, ideologias, políticas, religião e discursos revestidos de bem comum são estratégias de poder. (NUNES, 2019, p. 99)

Com a experiência da história da civilização, precisamos aprender a notar os sinais anunciadores e a reconhecer o que verdadeiramente nos ameaça.

Sobre a história e esses sinais anunciadores, Levitsky, numa tentativa de nos alertar, conta: “Apesar de suas enormes diferenças, Hitler Mussolini e Chávez percorreram caminhos que compartilham semelhanças espantosas para chegar ao poder. Não apenas todos eles eram outsiders com talento para capturar a atenção pública, mas cada um deles ascendeu ao poder porque políticos do establishment negligenciaram os sinais de alerta e, ou bem lhes entregaram o poder (Hitler e Mussolini), ou então lhes abriram a porta.” (LEVITSKY, 2018, p. 29).

O que temos vivido não devia se tratar de “posicionamento político”, mas de métodos comuns de sobrevivência. Assistimos de dentro, um povo inteiro manipulado sem saber que o está sendo. Manipulados a não questionar, a não pensar, a não refletir sobre o que está, de fato, acontecendo.

Enquanto deveríamos estar juntos, estamos nos separando. Nos separamos enquanto nação, nos separamos entre brancos, negros, ricos, pobres, heterossexuais, homossexuais, direita, esquerda e, no meio disso, estamos todos debaixo da mesma nuvem cinzenta que quer romper com o que uma história longa, de luta e sangue nos garantiu.

Citando Eduardo Galiano “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.”

A verdade é que, como acrescentou Mia Couto “há quem tenha medo que o medo acabe”. O que seria de governos autoritários como o de Jair Bolsonaro se não tivéssemos medo?

 

Notas e Referências

ADORNO, Theodor. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J. & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. Nova Iorque: Harper & Row.

CASARA, Rubens. O pensamento do juiz autoritário em 14 pontos. 13 de maio de 2017. Disponível em http://www.justificando.com/2017/05/13/o-pensamento-juiz-autoritario-em-14-pontos/.

Discurso intitulado “Murar o Medo”, proferido por Mia Couto, na Conferência de Estoril, em 2011.

LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Ed. Zahar. 2018.

NUNES, Pedro. Democracia Fraturada: a derrubada de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a Imprensa no Brasil. Ed. CCTA. 2019.

Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 27, N. 318, Edição Especial, maio 2019. / RBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

SAAVEDRA, Giovani Agostini. Expansão do Direito Penal e a Relativização dos Fundamentos do Direito Penal, julho/setembro, 2011. 

SANCHÉZ, Jesús Maria Silva. Lá Expansión Del Derecho Penal, aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2001.

PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo. Editora Método, 2003.

OYAMA, Thaís. Tormenta: O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. Ed Companhia das Letras, 2020.

ZYGMUNT, Bauman. Confiança e medo na Cidade. Trad. de Eliana Aguidar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 2009.

[1] Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/alerta-aos-punitivistas-de-boa-fe-nao-se-reduz-a-criminalidade-com-mais-prisao

 

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