Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
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Passadas algumas semanas desde o surgimento do Pacote Anticrime, verifica-se que o juízo das garantias constitui o ponto mais polêmico, seja em razão das críticas feitas pelo profissionais do Direito, seja em razão das críticas feitas pela mídia em geral, seja em razão das informações que circulam diariamente na internet, muitas das quais feitas por pessoas que não têm conhecimento jurídico mais profundo.
É interessante observar a maneira como um mesmo tema pode ensejar opiniões tão diversas. Enquanto alguns acreditam que o juiz das garantias resolverá ou quase resolverá a possibilidade de o réu ser julgado por um magistrado parcial, outros acreditam que o juiz das garantias ensejará a impunidade máxima, transformando o complexo sistema judiciário brasileiro em um verdadeiro caos.
Não somos tão radicais. Ter a atuação de um juiz na fase de investigação e ter a atuação de um outro juiz na fase processual propriamente dita não assegura, na nossa avaliação, a imparcialidade do julgador. São tantas as questões que envolvem a imparcialidade do juiz que não é a “divisão de tarefas” que resolverá definitivamente a questão. O juiz comprometido com um julgamento imparcial não se desnatura ao deferir uma ou outra medida na fase de investigação. Por outro lado, o juiz determinado a ser parcial pode ingressar no processo em qualquer fase e, ainda assim, encontrará um caminho para extravasar a sua parcialidade. Não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que a nova lei solucionará todos os problemas.
De outro lado, o juiz das garantias e o juiz da instrução e do julgamento serão retirados do corpo de juízes que já existem nos tribunais. Acreditar que o juiz das garantias aliviará todos os investigados, a ponto de inviabilizar a condenação dos mesmos pelo juiz da instrução e do julgamento, é um tanto quanto exagerado. O juiz mais liberal que hoje atua na vara criminal e que passar a atuar como juiz das garantias continuará mais liberal. O juiz mais rigoroso que hoje atua na vara criminal e que passar a atuar como juiz das garantias continuará mais rigoroso. Não há qualquer complexidade para se chegar a esta conclusão. Portanto, não nos parece que ocorrerá o aumento da impunidade em razão da instituição do juiz das garantias.
Examinar se, atualmente, os juízes de uma forma geral são imparciais é uma coisa. Examinar se, atualmente, o Poder Judiciário deve ser mais rigoroso em termos criminais é outra coisa. Tais aspectos são complexos e merecem uma reflexão profunda. Apenas discordamos do argumento segundo o qual o juiz das garantias, para algumas pessoas, resolverá completamente o problema de parcialidade de alguns juízes, assim como discordamos do argumento segundo o qual o juiz das garantias, para outras pessoas, provocará uma impunidade absurda.
Na nossa concepção, o que não se pode negar é o fato de a atuação do juiz das garantias provocar uma considerável reorganização da justiça criminal, justamente porque se exigirá que dois juízes, necessariamente, atuem no mesmo processo. Há, sem dúvida, uma dificuldade de ordem prática, que é passível de ser contornada em um intervalo de tempo razoável. Neste ponto, a vacatio legis de 30 dias prevista pelo legislador, ainda mais pelo fato de a nova lei ter sido criada durante o recesso forense, sem dúvida, impõe um esforço exagerado aos tribunais, sendo certo que nada impediria que o legislador fixasse um prazo mais dilatado para que os tribunais pudessem se organizar.
Não foi por outro motivo que o Ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, no dia 15 de janeiro de 2020, deferiu liminar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, para prorrogar a vacatio legis por outros 180 dias, a contar da publicação da sua decisão.
A crítica que pretendemos fazer neste texto se refere justamente ao art. 3º-E, inserido no Código de Processo Penal, cuja redação é a seguinte: o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.
A questão delicada que o dispositivo mencionado traz se refere à designação do juiz das garantias pelos tribunais, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.
É que, por maior preparo que tenham os integrantes das cúpulas dos tribunais e por melhor que sejam as suas intenções, não é prudente que a designação do juiz das garantias seja feita à luz de critérios objetivos distintos daqueles que ensejam a assunção de titularidade em qualquer juízo.
Em outras palavras, os tribunais podem definir se o juízo das garantias ficará vinculado a um único juízo de instrução e de julgamento, desmembrando-se cada juízo criminal atualmente existente em dois juízos, sendo um juízo das garantias e um juízo de instrução e de julgamento. Também é possível que os tribunais vinculem o juízo das garantias a vários juízos de instrução e de julgamento, para melhor distribuir o volume de trabalho, se for o caso.
Mas, na nossa opinião, o ideal seria o legislador registrar expressamente que o juízo das garantias contaria com um magistrado titular e, portanto, resguardado pela garantias constitucionais, dentre as mesmas a inamovibilidade, prevista no art. 95, II, da Constituição Federal.
Afinal de contas, por que motivo o juiz das garantias deveria ser investido em suas relevantíssimas funções de forma diferente da investidura do juiz da instrução e do julgamento? O fato de atuar na fase de investigação, e não na fase processual propriamente dita, não reduz a sua importância.
Além disso, é fundamental que o juiz das garantias atue com total independência funcional, sem qualquer preocupação no sentido de que determinada decisão – liberal ou rigorosa – possa desagradar a alguém e, por consequência, possa levar ao seu afastamento do juízo das garantias.
Convém lembrar que a própria Constituição Federal prevê o mecanismo através do qual, em situações excepcionalíssimas, o juiz titular do juízo das garantias pode ser afastado de suas funções, conforme o seu art. 93, VIII, segundo o qual o ato de remoção ou de disponibilidade do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada a ampla defesa.
Portanto, sendo a inamovibilidade do juiz das garantias evidentemente benéfica à prestação jurisdicional, sobretudo porque resguarda a sua independência funcional e, por consequência, resguarda a sua imparcialidade, e havendo mecanismo constitucional capaz de solucionar situações excepcionalíssimas, poderia o Pacote Anticrime ter sido mais rigoroso na escolha do magistrado que atuará no juízo das garantias.
De toda forma, somos otimistas. Isso porque, tendo o art. 3º-E do Código de Processo Penal esclarecido que o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, nada impede que os tribunais tenham a coragem que o legislador não teve. Em outras palavras, esperamos que os tribunais assegurem a titularidade do juiz das garantias, garantindo a sua inamovibilidade e evitando qualquer questionamento quanto à sua escolha.
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