Parte do Brasil vai bem. Estou nela. Quero dizer: algum estudo, alguma renda, plano de saúde, coisas assim. Nada demasiado. Coisa além da conta média, porém, nessa Pátria que concorre pelo último lugar do mundo em distribuição de renda. Lembro José Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim.” Os brasileiros estamos desconsiderando isso. Nosso entorno urbano é nossa circunstância: ela inclui – e como – a parte do Brasil que não vai bem.
Tati Bernardi, a quem admiro, na FSP, B2, 17mar17: “Waldecir, segurança do meu prédio, puxou papo enquanto eu esperava o elevador: [...]. Fiquei me perguntando se valia a pena perder alguns minutos discutindo com um senhor de 58 anos, evangélico, criado em família extremamente machista do interior de Pernambuco.
Se a gente começar a discutir com todo taxista malufista, tio reaça que tira foto com PM, jornaleiro fã do MBL, professor de crossfit e publicitário das antigas, talvez nos sobre muito pouco tempo para viver nossa vida. Então, fazer o quê? Deixa quieto? Sorri? Concorda com aquele queixo de idosa desistente em missa? Torce para o tormento acabar logo?”
Adiante: “Na semana seguinte, Waldecir veio correndo, estava ainda mais perplexo: ‘O programa só piora [...]”. Então o segurança despeja sobre Tati os seus preconceitos rancorosos contra Amor & Sexo, programa da TV Globo, mais particularmente contra travestis, questionando se “aquela gente” é normal e legal.
Tati o contesta: “Exatamente, Waldecir. Eles são normais e legais. Você é que anda um tanto chato e paranoico. Para não falar retrógrado, preconceituoso e ignorante”. E indaga: “O que você acha melhor ensinar aos seus filhos [...]: dar porrada em todo mundo que considerar diferente ou respeitar qualquer que seja a orientação sexual e visual do amiguinho?”.
Tati conclui lindamente sua contestação à estupidez que ouvia dizendo que não se tratava de gostar, como dizia Waldecir, de “viado de saia”, mas “de gente em suas mais complexas e lindas formas de expressão”. Eu não rebateria melhor um preconceituoso que me assaltasse a consciência com suas crendices hostis. Entretanto, labora em equívoco ao formular as premissas de seu texto. Explico:
Tati, eu mesmo, quem me lê estamos no Brasil que vai bem. De alguma forma somos – linguagem psicanalítica – sujeitos advertidos. Compomos a parte vantajosa desses dois Brasis que se estranham nas ruas, nos taxis, nos elevadores, na política. Nesse distanciamento conceitual, ideológico, econômico, educacional etc em que brasileiros se estabelecem desigualmente, alguns estudamos, temos boa renda, safamo-nos do cotidiano desgastante, violento, alienante em que parte da Nação sobrevive.
Bem, tanto quanto a Tati, essas insultantes posições a respeito do Outro me agastam. Mas, aí, duas contas: muitos cumprem preconceitos em condições avantajadas; já, outros, são vítimas – inclusive ideológicas – das injustas relações sociais brasileiras, que sonegam até boa formação escolar à maior parte do povo.
Discrepo de Tati, todavia, quando ela se declara atormentada – palavras suas – pelo senhor evangélico, nordestino e machista, pelo taxista malufista, pelo tio reaça que tira foto com PM, pelo jornaleiro fã do MBL, pelo professor de crossfit, pelo publicitário das antigas. Ora, esse Outro que Tati refuta compõe tanto quanto o travesti que ela – e eu – defende (“Pessoas que vivem machucadas pelo preconceito, prostituídas pela falta de empregos, carentes de respeito, compreensão e amor”), a parcela dos brasileiros com a qual mais deveríamos manter diálogo.
Todos que estamos bem devemos refugar o pastoreio religioso, não o “cordeiro”; o machismo, não o feito machista no interior do nordeste; a PM violenta, não o tio fotografado; os ladrões do País (a esquerda de direita), não os equivocados que veem solução no MBL; o Maluf, não o taxista que se entrega, pela introjeção do medo, ao discurso de segurança assassina do malufismo ou do bolsonarismo.
Mais concordo do que discordo de Tati Bernardi. Sobremaneira, aquiesço: “Ainda falta emocionar, educar e incomodar muita gente”. A outros Outros, porém; sobretudo, sem concessões, a quem esteve ou está no poder. Não aos feitos franja do sistema. E se o segurança aprecia Amor & Sexo, alguma coisa de boa ele deve ter. Pelo que vê, não pelo que diz, um abraço no Waldecir.
Imagem Ilustrativa do Post: Walking & Talking // Foto de: Daniel Lee // Sem alterações
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