O ônus processual não cria um dever para as partes. No processo penal, as partes não podem ser obrigadas a provar nada - Por Afrânio Silva Jardim

07/11/2017

A toda evidência, no processo penal, o réu não é obrigado a produzir prova, seja em seu favor, seja em seu desfavor. Mesmo para a acusação, a prova não é um dever, mas sim um ônus processual. 

No processo penal, vale a pena repetir, as partes não têm o dever ou obrigação de produzir prova. No Direito Processual, a prova é um mero ônus: uma faculdade outorgada pela lei para que a parte, querendo, obtenha uma posição processual de vantagem. 

São conceitos básicos, que todos os alunos de Direito devem dominar. Não seria aprovado aluno meu que, na sua prova, sustentasse que um magistrado, no processo penal, pudesse determinar que um réu fosse obrigado a juntar algum documento aos autos, dando-lhe exíguo prazo. 

Desta forma, mais uma vez teria errado o juiz da 13ª.Vara Federal de Curitiba que, segundo noticiado pela imprensa, fixou um prazo exíguo para o ex-presidente Lula efetivar a juntada, aos autos do processo, dos recibos de alugueres que ele afirma ter pago ao locador de um apartamento. 

Se há fundada suspeita de que uma das partes do processo está de posse de algum documento falso, caberia uma busca e apreensão apenas no inquérito destinado a apurar este suposto crime. 

De qualquer forma, só seria cabível a intervenção judicial se a busca fosse domiciliar. Mesmo nessa hipótese, o juiz teria de ser provocado por representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público. 

Ademais, há dispositivo expresso, no Código de Processo Penal, no sentido de que as partes têm a faculdade (não o dever) processual de requerer a juntada de documentos em qualquer fase do processo, em qualquer procedimento ou rito (salvo duas exceções, que não têm pertinência aqui). Por isso, descabe fixar prazos para que se realize a juntada de documentos pelas partes. 

No processo penal condenatório, o ônus da prova é todo da acusação, conforme venho sustentando desde 1985 ( em meu livro “Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres”, em coautoria com Pierre Souto Maior Amorim). 

Neste sentido, também é a excelente tese de doutorado do prof. Gustavo Badaró (USP), de cuja banca examinadora tive a honra de participar. 

Ao que parece, o juiz da referida 13a.Vara Federal de Curitiba transformou este órgão jurisdicional em um severo Juizado de Instrução e produz prova como se estivesse na primeira fase inquisitória deste processo misto (incompatível com a nossa Constituição Federal). 

O poder instrutório, que o nosso Código de Processo Penal outorga aos juízes, deve ser utilizado em conformidade com o sistema acusatório que está implícito – senão expresso – na Constituição da República. 

De qualquer forma, este poder instrutório há de ser desempenhado apenas supletivamente à atividade probatória das partes e de forma comedida e parcimoniosa, tendo em vista a necessidade de não se violar o indispensável princípio da imparcialidade do juiz no processo. 

A chamada “busca da verdade real” não justifica uma atuação persecutória dos magistrados no processo penal. Aliás, de há muito, venho sugerindo a substituição desta equivocada expressão por “busca do convencimento do juiz”. A verdade absoluta é algo inalcançável, na medida em que nossos sentidos não são aptos a reproduzir fielmente a realidade dos fatos e das coisas do “mundo naturalístico”.  

Desta forma, quando o juiz sai em “campo” e se antecipa à atividade probatória própria das partes do processo, fica parecendo que o juiz está fazendo o papel de Ministério Público e deseja provar o que afirma a acusação. O princípio da imparcialidade do órgão jurisdicional está sendo totalmente desprezado. 

Em resumo: quando o juiz resolve ser “um instrutor processual”, próprio do sistema processual misto (juizado de instrução), pode resultar em uma trágica inversão cognitiva: o magistrado vai buscar prova para legitimar uma condenação que deseja previamente.

 

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