O ônus da contraprova e a tutela da evidência – Parte 3 – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

24/04/2017

Leia também a Parte 1 e a Parte 2

A TUTELA DA EVIDÊNCIA E O ÔNUS DA CONTRAPROVA: PROVISORIEDADE INERENTE À COGNIÇÃO SUMÁRIA.

Nas colunas anteriores foi realizada uma sucinta distinção entre as tutelas provisórias de urgência e da evidência. Foi afirmado, para dar consistência ao sistema das tutelas provisórias, que as duas espécies têm um ponto de contato, qual seja, ambas são provisórias, porque concedidas em cognição sumária e podem, ao final do processo, não ser confirmadas, logo, não se tornariam definitivas.

Com essas afirmações não se está negando nem a temporalidade da tutela cautelar, tampouco, a sua referibilidade ao direito em perigo, mas tão somente dando ênfase ao plano de cognição que o CPC-2015 prevê para a concessão das tutelas provisórias. São elas concedidas em cognição sumária, provisórias, portanto.

A tutela da evidência prevista no art. 311, do CPC-2015 assim deve ser enfrentada, como uma antecipação dos efeitos da tutela pretendida ao final do processo, numa decisão de caráter provisório, que pode ou não ser confirmada ao final. A provisoriedade é a principal característica deste tipo de tutela da evidência, fundada na probabilidade máxima do direito afirmado, o que dispensa, inclusive, a urgência para a sua concessão.[1]

Essas ressalvas se mostram importantes porque parte da doutrina vem afirmando que a tutela da evidência prevista no inciso IV, do art. 311 do CPC-2015, acaso concedida, confunde-se com um julgamento antecipado de mérito (CPC-2015 art. 355, I), logo, seria ela uma tutela definitiva (em cognição exauriente) e não provisória (cognição sumária).[2]

Para um melhor entendimento dessa parcela da doutrina, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Essa corrente defende que para a aplicação da tutela da evidência prevista no inciso IV, do art. 311 do CPC-2015, dependem três requisitos: (a) que a evidência seja demonstrada pelo autor e não seja abalada pelo réu mediante prova exclusivamente documental; (b) que o autor traga prova documental ou documentada suficiente dos fatos constitutivos do seu direito; e (c) ausência de contraprova documental suficiente do réu, que seja apta a gerar dúvida razoável em torno do fato constitutivo do direito do autor ou do seu próprio direito (defesa indireta de mérito).[3]

Ausente a contraprova documental suficiente e não dispondo o réu de nenhum outro meio de prova igualmente suficiente, já seria, na visão dos referidos autores, caso de julgamento antecipado do mérito por desnecessidade de produção de outras provas (CPC-2015 art. 355, I). Por outro lado, se a contraprova documental for insuficiente, mas o réu requerer a produção de outros meios de prova, não estaria autorizada a concessão da tutela provisória da evidência, que pressupõe que se trate de causa em que a prova de ambas as partes seja exclusivamente documental.[4]

Não parece, contudo, que esse entendimento seja o melhor. Muito embora o inciso IV, do art. 311, do CPC-2015[5], realmente exija para a concessão da tutela da evidência que a petição inicial esteja instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável, não há o que se falar de confusão deste instituto com o do julgamento antecipado do mérito.

O que pretende o referido inciso é a concessão de uma tutela da evidência (tutela antecipada) em razão de o réu não ter se desincumbido do ônus da contraprova, e com isso ter aumentado as chances de sua derrota ao final do processo. A análise anteriormente realizada sobre o ônus da contraprova pode clarear essa afirmação, mesmo porque a contraprova tem como objeto o fato constitutivo do direito do autor e não a prova de eventual fato modificativo, extintivo ou impeditivo daquele direito.

Explicando melhor. Em tendo o autor produzido prova documental (ou documentada) suficiente do fato constitutivo do seu direito, ele (o direito) já se mostra provável. Caso o réu, na sua defesa, não produza prova (pré-constituída, documental ou documentada) apta a infirmar a evidência (do direito) criada pela prova documental juntada pelo autor com a inicial, autorizada estará a concessão da tutela provisória da evidência (tutela antecipada).

Daí a se afirmar que essa espécie de tutela da evidência confunde-se, sempre que concedida, com um julgamento antecipado de mérito, não se mostra a melhor interpretação. Para se chegar a essa confusão duas premissas teriam que ser aceitas: (a) que essa tutela da evidência pressupõe que as provas de ambas as partes ao longo de todo o processo sejam exclusivamente documentais (ou documentadas); (b) que o requerimento de produção de outros meios de prova, que não documentais, impedem a concessão da tutela da evidência.

Essa interpretação, entretanto, não parece encontrar amparo no texto do inciso IV, do art. 311, do CPC-2015.[6] Não se mostra correta, data venia, a afirmação de que para a concessão deste tipo de tutela da evidência todas as provas aptas a formação do convencimento do juiz tenham que ser documentais (ou documentadas), tal qual o procedimento do mandado de segurança[7], tampouco que o requerimento de produção de outros meios de prova sejam suficientes para impedir a concessão da tutela da evidência.

Isso não quer dizer, contudo, que se o réu não se desincumbir do ônus da contraprova (seja com provas pré-constituídas ou com o requerimento de produção de outros meios de prova), não esteja autorizado o julgamento antecipado do mérito. Mas esse julgamento antecipado não se confunde com a tutela da evidência prevista no inciso IV, do art. 311, do CPC-2015, e se dará em razão da desnecessidade de produção de prova nova, conforme preceitua o art. 355, I, do CPC-2015[8].

Na verdade, a tutela da evidência referida deve ser concedida justamente quando o réu não oponha contraprova documental suficiente para incutir dúvida razoável no juiz, mas requeira a produção de outros meios de prova aptos a infirmar a existência do fato constitutivo do direito do autor. Como o autor produziu prova documental desde logo, o seu direito se mostra mais provável naquele instante processual (cognição sumária), o que não quer dizer que com a produção da prova requerida pelo réu (ônus da contraprova) ou em eventual prova determinada de ofício pelo magistrado (frente aos argumentos lançados pelo réu na sua peça de defesa), ao final, em cognição exauriente, o pedido não possa ser julgado improcedente.[9]

Do texto do inciso IV, do art. 311, do CPC-2015 não se extrai qualquer limitação ao ônus da contraprova. Pode o réu exercê-lo, enquanto poder processual, em atenção aos seus próprios interesses, requerendo a produção de qualquer meio de prova em direito permitido, mas já sabe, de antemão, que se não produzir contraprova documental ao fato constitutivo do direito do autor que tenha sido provado documentalmente, poderá ver a tutela ser concedida de forma antecipada, dentro dos limites das tutelas provisórias e não, ainda, de forma definitiva.

Por outro lado, o referido dispositivo não cuida exclusivamente de hipótese onde o réu não oponha defesa direta de mérito (quando o fato constitutivo do direito do autor restar comprovado documentalmente), mas apenas defesa indireta sem oferecer prova documental suficiente para gerar dúvida razoável, protestando pela produção de outros meios de prova, como parcela da doutrina parece entender.[10]

Como defendido ao longo de toda essa investigação, que já está em sua terceira parte, não há que se confundir o ônus da prova com o ônus da contraprova. O dispositivo em análise preceitua a tutela da evidência tendo como pressuposto, entre outros, o não exercício do ônus da contraprova, que tem como objeto, insista-se, o fato constitutivo do direito do autor e não a alegação de fatos novos como matéria de defesa (modificativos, extintivos ou impeditivos daquele direito).

Em o réu não impugnando o fato constitutivo do direito do autor, mas alegando outros modificativos, extintivos ou impeditivos, a ele incumbe o ônus da prova desses fatos novos (por ele alegados) e não a contraprova do fato que sequer foi impugnado. O que não significa, a bem da verdade, que a tão só ausência de defesa direta de mérito autoriza a concessão da tutela da evidência. Caso a defesa indireta de mérito reste comprovada (ônus da prova), muito provavelmente o pedido, ao final, será julgado improcedente, não havendo espaço para a incidência do inc. IV do art. 311 do CPC-2015.[11]

Resumindo, a concessão da tutela da evidência prevista no art. 311, IV, do CPC-2015 não deve ser confundida com o julgamento antecipado do mérito (CPC-2015, art. 355, I), pelos seguintes motivos: (a) a sua concessão pressupõe probabilidade do direito afirmado e provado documentalmente pelo autor já na inicial (cognição sumária); (b) que o réu não tenha se desincumbido, de logo, do ônus da contraprova (produzindo prova pré-constituída juntamente com a defesa), apto a incutir no julgador dúvida razoável; e (c) que a despeito da não produção de contraprova ao fato constitutivo do direito do autor (que tenha sido provado documentalmente), o réu, no exercício do ônus da contraprova, tenha requerido a produção de outros meios de prova na fase instrutória do processo.

O julgamento antecipado do mérito pressupõe desnecessidade de produção de prova nova, ao contrário da tutela da evidência em análise, que tem como pressuposto, justamente, a necessidade de produção de outros meios de prova na fase instrutória do processo, transferindo-se as consequências nefastas da demora processual à parte que não se desincumbiu, ainda no início do procedimento, do ônus da contraprova (ou da prova, em se tratando de defesa indireta de mérito), mas requereu, no exercício legítimo do seu poder processual, a produção de outros meios de prova.

Destarte, a correta compreensão do ônus da contraprova, e a sua aplicação à tutela da evidência, facilitam, sobremodo, a interpretação do alcance da norma inserta no art. 311, IV, do CPC-2015. Não há se baralhar institutos. Tem o réu o ônus, enquanto poder processual, de produzir a contraprova (de início ou na fase instrutória), mas já sabendo que se dele não se desincumbir com provas pré-constituídas (documental ou documentada), terá contra si a demora processual, porquanto se antecipe a tutela pretendida em favor do autor, só que em cognição sumária (tutela provisória).


Notas e Referências:

[1] Isso não significa afirmar que no caso concreto a urgência não possa se fazer presente, mas apenas que ela não é necessária para a concessão da tutela da evidência. Pode o autor demonstrar que além da probabilidade do seu direito, existe, no caso concreto, urgência, o que deve ser considerado pelo magistrado para a concessão da medida. Neste sentido: MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado [livro eletrônico]: com remissões e notas comparativas ao CPC/73. São Paulo: RT, 2015.

[2] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de direito processual civil. 10ª ed. v. 2, Salvador: Juspodivm, 2015, p. 629. Em sentido contrário, defendendo que não há a referida confusão: THEODORO JR, Humberto. Curso de direito processual civil. 56ª. rev. atual. e ampl. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[3] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de direito processual civil. 10ª ed. v. 2, Salvador: Juspodivm, 2015, p. 629.

[4] Idem. ibidem. p. 629.

[5] Art. 311.  A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:

[…]

IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.

[6] Não se desconhece a distinção entre texto e norma, sendo esta produto da interpretação. Entretanto, texto e norma não são cindidos, não se podendo atribuir qualquer sentido ao texto. Sobre os limites da atribuição de sentido com ênfase na pré-compreensão, consultar: Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica; tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão de tradução de Enio Paulo Giachini. 14ª ed. Petrópoles: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014.

[7] Defendendo que a hipótese cuida de uma tutela da evidência fundada em direito líquido e certo, equivalente àquela do mandado de segurança, CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 191.

[8] Art. 355.  O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando:

I – não houver necessidade de produção de outras provas;

[9] Em sentido contrário ao texto, BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estrutura à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2015.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 202.

[11] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado [livro eletrônico]: com remissões e notas comparativas ao CPC/73. São Paulo: RT, 2015, p. 310.


 

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