O ônus da contraprova e a tutela da evidência – Parte 1 – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

10/04/2017

Leia também a Parte 2 e a Parte 3

Com o advento do novo Código de Processo Civil, as tutelas de urgência e da evidência foram reunidas sob um mesmo título: o da tutela provisória. Dito de outro modo, a tutela provisória é gênero do qual são espécies as tutelas de urgência e a tutela da evidência (que independe de urgência). Ambas as tutelas têm em comum a provisoriedade do pronunciamento judicial que as concede, que poderá ser ou não confirmado ao final do processo[1], além da necessidade de restar demonstrada a probabilidade do direito afirmado pela parte requerente.

Apesar de reunidas sob o mesmo gênero e de alguns processualistas defenderem até mesmo a existência de fungibilidade entre elas[2], as tutelas de urgência estão atreladas ao perigo de dano ou ao risco ao resultado útil do processo (urgência), enquanto a tutela da evidência não necessita da caracterização da urgência para a sua concessão, bastando a ocorrência de uma das hipóteses previstas no art. 311, do CPC-2015.

É bom que se diga, para evitar mal entendidos, que para a concessão de qualquer tutela provisória, e com a tutela da evidência não seria diferente, é necessário que o requerente demonstre a probabilidade do direito que afirma ter e não apenas a urgência ou uma das hipóteses previstas nos incisos do art. 311, antes referido. Mais que isso. Para a concessão de uma tutela da evidência faz-se necessária a demonstração de uma probabilidade máxima da existência do direito, só que em cognição sumária[3], que poderá, ao final e depois da instrução do processo, não se tornar definitiva.

Luiz Fux, um dos primeiros a propagar no Brasil a distinção entre as tutelas de urgência e da evidência, tem que o direito evidente seria aquele evidenciado por provas, tal como o direito líquido e certo que autoriza o mandado de segurança.[4] Há, entretanto, aqueles que vinculam a evidência do direito, apta à concessão da tutela de forma provisória, à noção de defesa inconsistente.[5]

De que forma for, a concessão da tutela provisória da evidência imprescinde, como parece óbvio, da demonstração no caso concreto da evidência do direito afirmado e não apenas da caracterização de umas das hipóteses previstas nos incisos do art. 311, do CPC-2015. Vozes há que afirmam que o perigo (ou risco de perigo) está inserido na própria noção de evidência. “O direito da parte é tão cristalino que a demora na sua execução, por mera e inócua atenção aos atos procedimentais do método, já se torna indevida”[6], o que não infirma, antes impõe, a necessidade da demonstração da probabilidade do direito.

Não se pode considerar, por exemplo, evidente o direito da parte pelo simples fato de uma conduta desleal da parte contrária (CPC-2015, art. 311, I). Conduta desleal se pune com aplicação de multa (e.g. art. 77, § 2º do CPC-2015), não com a concessão de uma tutela provisória.

Ninguém adquire direito por uma conduta desleal da outra parte. O requerente tem ou não o direito e para a concessão da tutela da evidência o direito tem que ser, ao menos, provável. É bem verdade que a deslealdade da parte adversa (abuso ou protelação) permite elevar o grau da probabilidade ao nível da evidência, mas só a conduta desleal, insista-se, não autoriza a concessão da tutela provisória.[7]

Repita-se, a tutela da evidência imprescinde da demonstração da probabilidade do direito da parte, não apenas da configuração, no caso, de uma das hipóteses previstas nos incisos do art. 311, do CPC-2015. Se tal demonstração vai se dar mediante a produção de prova documentada ou pela ausência de prova a ser produzida pelo réu apta a gerar dúvida razoável, não infirma a necessidade da demonstração, de forma fundamentada, da existência da probabilidade, em grau elevado, do direito afirmado pela parte.

Embora diferentes, ambas as tutelas têm pontos de contato que autorizam conceituá-las como espécies de um mesmo gênero (tutelas provisórias), o que talvez tenha feito parte da doutrina deixar de lado o necessário enfrentamento das hipóteses de concessão da tutela da evidência genérica, previstas nos incisos do art. 311, do CPC-2015, em especial aquela do inciso IV do referido dispositivo[8].

O art. 311, IV, do Código de Processo Civil está assim redigido:

Art. 311.  A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:

[...]

IV - a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.

Percebe-se do dispositivo transcrito, que a concessão da tutela da evidência na hipótese prevista no inciso IV pressupõe que, além de o autor ter que provar documental e suficientemente os fatos constitutivos do seu direito, o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável no juiz. Vale dizer, o dispositivo atribui ao réu o ônus da contraprova do fato constitutivo do direito do autor, e caso dele o réu não se desincumba, autorizada estará a concessão da tutela provisória da evidência em favor do autor.

É justamente sobre o ônus da contraprova e a sua aplicação à tutela da evidência que há um déficit doutrinário preocupante. Se é verdade que sobre o ônus da prova muito se escreveu e se escreve[9], sobre o ônus da contraprova ainda há um vácuo que pode dificultar a compreensão do dispositivo em análise, daí a necessidade de se enfrentar a matéria de uma forma mais detida, mas, ressalte-se, sem qualquer pretensão de se esgotar o tema.

Ademais, o próprio modelo comparticipativo de processo, com os deveres de cooperação a ele inerentes, fez com que a doutrina, aqui e ali, baralhasse o conceito de ônus, muitas vezes o confundido com dever, quando menos com uma situação passiva subjetiva, o que também não corrobora a correta compreensão do ônus da contraprova e sua aplicação às tutelas da evidência (provisórias).

Uma acertada compreensão de ônus e sua correlação com a prova é de extrema importância para o alcance da norma inserta no art. 311, IV, do CPC-2015, sendo esse o caminho que se buscará trilhar nas próximas colunas, não sem antes visitar conceitos caros à Teoria Geral do Direito e do Processo, tão renegadas na atual quadra do Direito Processual Civil.[10] Até a próxima semana.


Notas e Referências:

[1] Não se desconhece que a tutela cautelar não é provisória, mas temporária, porque só tem lugar enquanto perdurar a situação de perigo ao direito referido. Como o presente artigo tem um corte metodológico específico não se fará essa distinção ao longo do texto. Sobre a temporalidade como característica inerente às tutelas cautelares, o que as diferiria da tutela antecipada: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Direito Processual Civil. 3ª ed. v. 3. São Paulo: RT, 2000.

[2] Por todos: CÂMARA, Helder Maroni. Código de processo civil: comentado. São Paulo: Almedina, 2016, p. 424-428. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 19ª ed. revisada e completamente reformulada conforme o Novo CPC – Lei 13.105, de 16 de março de 2015 e atualizada de acordo com a Lei 13.256, de 04 de fevereiro de 2016. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 491.

[3] Entendendo que a evidência serve tanto às tutelas definitivas como às provisórias: DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de direito processual civil. 10ª ed. v. 2, Salvador: Juspodivm, 2015, p. 617.

[4] FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela de evidência. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 311.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 200-201. Referidos autores propugnam que a defesa inconsistente está atrelada à defesa indireta de mérito infundada, o que voltará a ser analisado no final do presente trabalho.

[6] DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 19ª ed. revisada e completamente reformulada conforme o Novo CPC – Lei 13.105, de 16 de março de 2015 e atualizada de acordo com a Lei 13.256, de 04 de fevereiro de 2016. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 523.

[7] DONIZETTI, Elpídio. Idem ibidem, p. 524. Em sentido aparentemente contrário, defendendo a existência de uma tutela da evidência punitiva: DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de direito processual civil. 10ª ed. v. 2, Salvador: Juspodivm, 2015, p. 620-621.

[8] Tratando do tema apenas de passagem: BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estrutura à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2015. THEODORO JR, Humberto. Curso de direito processual civil. 56ª. rev. atual. e ampl. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2015. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: RT, 2015.

[9] Merece destaque a obra de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, que já se encontra em sua 3ª edição: Prova e Convicção. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. Como também a coletânea: DIDIER JR, Fredie (Coord.); MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (Org.) Novo CPC doutrina selecionada, v. 3: provas. 2ª ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016.

[10] Analisando criticamente o abandono da teoria geral do processo como um excerto da teoria geral do processo, DIDIER JR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 2ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2013.


 

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