A recente lei n.13.964/19 deu nova redação à regra do artigo 28 do Código de Processo Penal, que trata do arquivamento dos inquéritos policiais e das chamadas peças de informação.
Inicialmente, cabe ressaltar que não estamos considerando a absurda e autoritária decisão do ministro Luiz Fux que, monocraticamente e no plantão judiciário, suspendeu a eficácia de vários dispositivos da chamada “Lei Anticrime”, inclusive a parte que deu nova redação ao dispositivo legal em exame. (Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 6.299. Vejam o teor desta lamentável decisão, in: https://www.conjur.com.br/dl/fux-liminar-juiz-garantias-atereferendo.pdf).
A lei n.13.964/19 foi aprovada pelo Congresso Nacional, sancionada pelo Presidente da República e ainda permanece existente no “mundo jurídico”. A toda evidência, quando o citado ministro encaminhar o processo para o plenário do S.T.F. em tempo hábil, providência legal e regimental que não é muito de seu gosto, esta decisão não será confirmada, ao menos no que diz respeito à nova redação do artigo 28, de constitucionalidade indiscutível. Por decisão provisória e monocrática, um ministro do S.T.F., por via transversa, acaba “legislando”, em total desprestígio ao Congresso Nacional e ao Estado Democrático de Direito, mormente quando não submete a decisão liminar a julgamento do plenário do S.T.F.
Não gosto deste procedimento de arquivamento, mas não tenho como dizer que ele viola alguma regra ou princípio constitucional. A redação anterior, sim, “arranhava o sistema acusatório”, colocando o juiz como “fiscal do fiscal”, vale dizer, se imiscuindo na opinio delicti que é privativa do Ministério Público.
Desta forma, passamos a examinar a extensão normativa do artigo 28 do Cod.Proc.Penal, com a nova redação fornecida pela mencionada lei n.13.964/19.
Como se sabe, a primitiva redação da citada norma processual outorgava ao juiz o controle do “princípio da obrigatoriedade” do exercício da ação penal pública. Se o juiz discordasse do arquivamento postulado pelo órgão do Ministério Público, submetia a questão ao Procurador Geral de Justiça (Ministério Público dos Estados) ou a órgão colegiado superior de controle (Ministério Público Federal).
Este mecanismo de controle da não denúncia sempre mereceu críticas da doutrina mais moderna, pois violaria o chamado sistema processual penal acusatório. Realmente, nele, o juiz não pode praticar atos persecutórios, não deve se imiscuir na investigação policial e nem na opinio delicti do Ministério Público, conforme já salientamos acima.
Atento a tudo isso, o legislador mudou a sistemática do arquivamento. Agora, a decisão é do órgão do Ministério Público com atribuição para o oferecimento da denúncia. Entendendo ele que não estão presentes as condições para o regular exercício da ação penal pública, ele mesmo arquiva o procedimento investigatório, vale dizer, não mais formula esta postulação ao juiz, ao Poder Judiciário.
A nova redação inserida no Código de Processo Penal:
“Artigo 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
§1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
Entretanto, como se percebe da leitura deste novel dispositivo legal, mantem-se um sistema de controle do arquivamento, embora não seja muito prático e bastante burocrático.
Depurou-se o sistema acusatório, mas se criou um mecanismo complexo e que não deve funcionar a contento na prática. Notem que, agora, TODOS os arquivamentos serão submetidos ao órgão colegiado superior do Ministério Público. Outrora, tal remessa somente ocorria quando o juiz indeferia o arquivamento, hipótese rara na prática.
A última palavra sobre o exercício da ação penal pública continua sendo do Ministério Público, como é próprio do sistema acusatório. Deste procedimento de arquivamento não mais participa o Poder Judiciário. Entretanto, está consagrado um mecanismo interno de controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, através de um órgão colegiado e superior do Parquet.
Como a nova redação não mais se refere à figura do juiz de primeiro grau e ao Procurador Geral, entendemos que este novo procedimento de arquivamento de inquéritos policiais e de quaisquer peças de informação deve ser aplicado nos caso de competência originária dos tribunais para a ação penal pública, tendo em vista algum investigado gozar de foro por prerrogativa de função.
A nova redação do artigo 28 do Código de Processo Penal é posterior ao Regimento Interno do S.T.F. e à lei federal que trata do procedimento para os crimes da competência originária dos tribunais. Como se sabe, lei posterior que dispõe de forma diferente da lei anterior tem a eficácia de revogar a norma primitiva, ainda que tacitamente.
Ademais, a lei n.13.964/2019, ao dar nova redação ao mencionado artigo 28 do Cod.Proc.Penal não fez qualquer distinção ou restrição que autorizasse ao intérprete concluir que ela somente se aplicaria ao arquivamento no primeiro grau de jurisdição. Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazer a distinção.
Acresce que este mecanismo de controle da não ação penal, da não denúncia, vale dizer, do arquivamento dos procedimentos de investigação criminal se faz ainda mais necessário nos casos em que o indiciado (investigado) tenha direito à competência originária dos tribunais por prerrogativa de função. Esta necessidade de controle decorre das formas de nomeação dos Procuradores Gerais e do prestígio político que quase sempre desfrutam os ocupantes de cargos públicos do alto escalão do Poder Público.
De há muito venho alertando para a necessidade deste controle. Em vários textos, pugnei por uma nova lei que o regulasse, tendo em vista que a redação do antigo artigo 28 não permitia aplicá-lo nos arquivamentos perante os tribunais. Agora, tudo é diferente. Tal regra, que sempre desejei, está aí. Cabe lutarmos para que ela tenha a amplitude que postulamos, em prol da efetividade do Estado de Direito, que pressupõe a existência de mecanismos democráticos de controle das decisões prolatadas pelos órgãos públicos.
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