O novo paradigma objetivo nos tribunais superiores e a utilização da reclamação

22/04/2018

I – Considerações iniciais

A reclamação tem ganhado cada vez mais destaque no cenário processual. Isso porque o seu cabimento está diretamente ligado ao  rumo que os Tribunais, notadamente os Superiores, estão tomando.

O atual CPC consolida a tendência de as Cortes assumirem papéis mais uniformizadores e consolidadores da jurisprudência. E, uma vez definidas as teses, é necessário um instrumento para impor a observância às suas decisões e preservar a sua competência.

Principalmente por isso, a reclamação ganha destaque – para fazer valer as teses e controlar o respeito às decisões dos Tribunais.

À luz da legislação anterior ao novo CPC, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça guiava-se mais pela interpretação direta da Constituição Federal e dos Regimentos Internos, já que a Lei 8038/90 pouco tratava do tema. Alguns avanços quanto ao cabimento da reclamação foram observados, como a admissão para impor que os Juizados Especiais respeitassem os julgados do STJ e também para fazer com que fossem observadas decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade.

Por outro lado, limitações foram impostas, como as relativas ao cabimento da medida contra a má aplicação de precedentes em recursos repetitivos. O novo CPC trata da reclamação no artigo 988 e não apenas amplia o seu cabimento como estende a medida para todos os Tribunais[i].

A Lei 13256/2016, todavia, alterou a redação do dispositivo, restringindo o cabimento no que toca à sistemática dos recursos repetitivos e da repercussão geral, tentando, em alguns pontos, aproximar a regulamentação da linha da jurisprudência vigente, formada antes do novo Código.

Cabe, assim, tratar das limitações e da nova regulamentação.

II – A jurisprudência do STF e do STJ anterior ao atual CPC

O STF, notadamente a partir da paradigmática Reclamação 4335/AC, admitiu em alguns casos a medida para impor a observância a decisões tomadas em processos de controle difuso de constitucionalidade.

Fugindo da linha tradicional de que apenas decisões tomadas em processos de controle concentrado produzem efeitos vinculantes e erga omnes, o Tribunal admitiu a reclamação, mesmo não tendo havido a suspensão da lei declarada inconstitucional pelo Senado Federal.

Outros estudos já foram dedicados ao assunto[ii], mas vale lembrar, resumidamente, que a Corte Constitucional, pelas razões principalmente do voto do relator, considerou que o ato de suspensão de uma lei pelo Senado é meramente político, devendo-se impor a observância a decisões em controle difuso de constitucionalidade até em nome do papel constitucional do Tribunal. Na mesma linha o entendimento tomado nos autos da RCL 2280/RJ. Luiz Guilherme Marinoni faz coro ao aumento da vinculação das decisões do STF ainda que não em controle concentrado, pontuando que “não há motivo para limitar a eficácia vinculante apenas às decisões com igual eficácia no controle objetivo” [iii].

O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha de ampliar o cabimento da medida, admitiu-a, a partir da RCL 3752/GO (que levou à edição da Resolução 12/2009), contra decisões de Turmas Recursais que desrespeitem a jurisprudência firme da Corte.

Estes exemplos da ampliação do cabimento da medida realçam a importância da reclamação, principalmente no contexto da objetivação do processo (que passa a ser encarado de uma forma menos subjetiva, individualizada, sofrendo efeitos de decisões tomadas em outros casos, de uma forma mais direta).

Por outro lado, o STF e o STJ reduziram o cabimento da reclamação no tocante aos recursos repetitivos. Mesmo sendo a sistemática destes recursos distinta da tradicional dos recursos - por afetar-se um caso para julgamento da tese que será decisivamente firmada, devendo ser observada - os Tribunais adotaram majoritariamente o entendimento de que não se deve admitir a reclamação quando recursos sobrestados forem mal indeferidos ou forem mal julgados após a decisão no caso paradigma.

Em estudo específico foram exploradas as limitações[iv] merecendo destaque algumas decisões que fixaram teses restritivas, como a da Corte Especial na QO no Ag 1154599/SP (Rel. Min. Cesar Rocha. DJ de 12/05/2011), originariamente quanto ao não cabimento de agravo para o STJ e posteriormente estendida para a reclamação, ao argumento de que a aplicação equivocada de precedente em repetitivo não usurpa a competência do Tribunal Superior.

Outras decisões, como a do AgRg na Rcl 8264/RN (Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. Segunda Seção. DJ de 26/08/2014) reconheceram a ausência de caráter vinculante à decisão tomada no repetitivo, pois “as orientações emanadas em recursos especiais repetitivos não detêm força vinculante ou efeito erga omnes, não autorizando, por si só, o ajuizamento da reclamação constitucional contra decisão judicial que venha a contrariá-las”.

O Superior Tribunal de Justiça, assim, por regra, vinha interpretando o preceito constitucional viabilizador da reclamação, quanto aos recursos repetitivos, de forma limitada – por regra, apenas em casos de descumprimento de decisão no caso concreto. Aplicado mal um precedente em caso de recurso sobrestado, incabível agravo para o Tribunal Superior ou reclamação. Cabível, apenas, agravo interno para o Tribunal. Da mesma forma, se houver má aplicação do precedente em repetitivo quando do rejulgamento de determinado processo pelo Tribunal de origem.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, as limitações seguem a mesma linha, não se admitindo, por regra, reclamação contra decisão que aplica o entendimento firmado em repetitivo ou em repercussão geral. Desde o julgamento da Questão de Ordem no AI 760358 (Rel. Min. Presidente. Tribunal Pleno. DJ de 19/02/2010) foi estabelecido que a reclamação, além do agravo de instrumento, é incabível contra a decisão que aplica (mal) o entendimento firmado em recurso repetitivo. Cabível apenas o agravo interno no próprio Tribunal a quo.

No que toca à repercussão geral (hoje, um conteúdo do rito repetitivo), também o STF vinha entendendo que os precedentes não são dotados de eficácia erga omnes. Ainda que deva ocorrer a observância ao paradigma, se houver o desrespeito por parte do Tribunal de origem, deve-se tentar resolver o problema no âmbito da própria Corte Inferior, não podendo haver, per saltum, a atuação do STF. Merece referência a Rcl 17914/MS (Rel. Min. Lewandowski. Segunda Turma. DJ de 04/09/2014) onde restou consignado que “não cabe reclamação fundada em precedentes sem eficácia geral e vinculante” e que “conquanto o decidido nos recursos extraordinários submetidos ao regime da repercussão geral vincule os outros órgãos do Poder Judiciário, sua aplicação aos demais casos concretos (...) não poderá ser buscada, diretamente, nesta Suprema Corte, antes da apreciação da controvérsia pelas instâncias ordinárias”.

No mesmo sentido, a decisão na Rcl 17512/SP (Rel Min. Barroso. Primeira Turma. DJ de 25/09/2014), segundo a qual “as decisões proferidas em sede de recurso extraordinário, ainda que em regime de repercussão geral, não geram efeitos vinculantes aptos a ensejar o cabimento de reclamação, que não serve como sucedâneo recursal”.

Ou seja, tanto no STJ quanto no STF, o desrespeito a decisão que deveria ser observada (tomada em repetitivo ou com repercussão geral) deve ser atacada de outras formas (notadamente nos Tribunais inferiores), não sendo cabível, por regra, a reclamação diretamente às Cortes Superiores.

Apesar de estarem objetivando o processo em outras hipóteses, no que toca aos repetitivos e à repercussão geral, ao menos quanto ao cabimento direto de reclamação, as Cortes ainda vinham adotando uma linha mais subjetiva (mais típica do CPC de 1973, menos focado em impor a observância da jurisprudência).

III – O cabimento da reclamação no atual CPC

O novo CPC alteraria em muito a jurisprudência dos Tribunais Superiores, na medida em que expressamente previa a reclamação para a hipótese, entre outras, de garantir a observância de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência.

A Lei 13256/2016, todavia, alterou o dispositivo para limitar a reclamação contra decisões que aplicam mal precedentes em repetitivos ou em repercussão geral. O atual inciso IV do artigo 988 estabelece que ela é cabível, quanto aos repetitivos, para garantir a observância a precedentes de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.

Ou seja, a reclamação foi limitada, quanto a casos repetitivos apenas aos Tribunais de segundo grau (que julgam os incidentes de resolução de demandas repetitivas), excluindo-se os Tribunais Superiores (que julgam os recursos repetitivos).

No mesmo sentido o § 5º do artigo 988 que, no inciso II, especifica que é inadmissível a reclamação “proposta perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça para garantir a observância de precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva”. Mas o mesmo parágrafo deixa uma margem ao final ao prever que a inadmissibilidade limita-se a casos em que “não esgotadas as instâncias ordinárias”.

Ou seja, com as alterações da Lei 13256/2016, a reclamação não será cabível sempre e diretamente para o Tribunal Superior quando for mal aplicado um precedente (seja indeferindo um recurso especial ou extraordinário sobrestado, seja rejulgando-o). Mas poderá ser cabível se a parte tentar resolver com os remédios possíveis o problema no Tribunal inferior e não conseguir.

Essa limitação parece coincidir com a linha da jurisprudência atual – não se deve reclamar diretamente ao STF ou ao STJ. Deve-se adotar os remédios possíveis no âmbito das Cortes de origem. Apenas em casos extremos, nos quais não se consiga resolver a questão da observância ao precedente firmado em repetitivo ou em repercussão geral no Tribunal inferior é que se pode abrir a via da reclamação.

Outra não pode ser a interpretação a ser dada ao artigo 988, § 5º, inciso II, alterado pela Lei 13256/2016, pois negar a reclamação em definitivo (mesmo após as tentativas no Tribunal inferior) significa autorizar eventual desrespeito ao precedente que deve vincular e ser aplicado a outros casos, afrontando a própria intenção e o espírito do novo CPC – impor o respeito à jurisprudência.

Aliás, no ponto, vale destacar que os precedentes em repetitivos e em repercussão geral, muito embora não sejam equivalentes às súmulas vinculantes, também devem ser respeitados, sob pena de se fazer letra morta aos artigos 926 e 927 do novo CPC.

Nessa linha vale lembrar que as decisões em repetitivos não se confundem com os típicos precedentes da common law. Georges Abboud bem anota que a utilização de um precedente para solucionar um caso concreto “exige intensa interpretação e realização de contraditório entre as partes”[v]. Por outro lado, a utilização da técnica dos recursos repetitivos dispensaria nova argumentação das partes, até mesmo porque o processo em que elas atuam estaria sobrestado, aguardando a definição da Corte Superior, para sofrer diretamente e imediatamente os efeitos da decisão paradigma.

De toda a sorte, tanto as teses fixadas em recursos repetitivos como as estampadas em súmula vinculante devem ser observadas pelos Tribunais. 

O que diferencia os precedentes em repetitivos e em repercussão geral das decisões das Cortes Superiores em casos individuais e ordinários é justamente a possibilidade de produzirem efeitos para além daquele processo (objetivação), afetando casos suspensos e até futuros.

As partes devem, então, após a decisão em repetitivo ou em repercussão geral, se não houver a correta aplicação do precedente aos processos suspensos, lançar mão dos remédios previstos na legislação perante as Cortes de origem antes de ajuizar a reclamação.

Se o recurso especial ou o extraordinário sobrestado for mal indeferido, deve peticionar requerendo a reconsideração da decisão ou o recebimento da petição como agravo interno para que o colegiado reveja a decisão equivocada (que indeferiu recurso que não deveria ter sido indeferido). A redação original do novo CPC autorizava o agravo para o Tribunal Superior. A Lei 13256/2016 alterou, todavia, o artigo 1042, não mais cabendo o agravo, exceto o interno.

Se o recurso especial ou o extraordinário sobrestado for mal “rejulgado” (determinou-se o rejulgamento pelo colegiado do Tribunal inferior e o precedente foi mal aplicado), deve-se peticionar no Tribunal inferior requerendo o processamento do recurso especial ou extraordinário, nos termos do artigo 1041, ou interpor novo recurso se for o caso.

Apenas se infrutíferas essas tentativas poderá a parte ajuizar reclamação ao STJ ou ao STF, nos termos do artigo 988, § 5º, inciso II.

A Lei 13256/2016, portanto, colocou limite ao cabimento direto da reclamação, mas ainda assim a reclamação foi fortalecida, não apenas pela brecha do referido inciso II, mas porque a previsão do novo CPC, mesmo com a redação atual, é muito detalhada, valorizando a medida.

E o curioso é que a Lei 13256/2016 manteve a reclamação para as hipóteses de incidentes de resolução de demandas repetitivas e assunção de competência. Nos Tribunais Estaduais ou Regionais, dessa forma, cabível a medida se desrespeitado por órgão inferior o precedente em repetitivo. E, nos Tribunais Superiores, cabível a reclamação se descumprido precedente firmado em assunção de competência, incidente previsto no artigo 947 que pode ser resumido como uma afetação para decisão de questão relevante pelo colegiado maior de um Tribunal, com efeitos vinculantes.

Ou seja, a legislação foi alterada para se ajustar à jurisprudência do STF e do STJ, tendendo, assim, a serem mantidos os entendimentos anteriormente referidos.

Por fim, de se anotar que, com a alteração do inciso IV do artigo 988, parece ter acabado a possibilidade de reclamação para casos futuros (não sobrestados à época da decisão paradigma) que não observem o entendimento firmado em repetitivo ou em repercussão geral, já que a exceção do § 5º, inciso II parece ser para as hipóteses nas quais se tenha tentado fazer com que os Tribunais inferiores apliquem a processos sobrestados a jurisprudência consolidada em repetitivo ou em repercussão geral e se esgotem as tentativas recursais de impor o respeito à jurisprudência consolidada no repetitivo.

Fontes e Referências:

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. A “objetivação” no processo civil: as características do processo objetivo no procedimento recursal in Revista de Processo RePro 178 dezembro 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. pp. 220-226.

_______. Reclamação – A ampliação do cabimento no contexto da “objetivação” do processo nos Tribunais Superiores in Revista de Processo RePro 197 julho 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. pp. 13-25.

________. A reclamação no novo CPC – Fim das limitações impostas pelos Tribunais Superiores ao cabimento? in Revista de Processo RePro 244 junho 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015Pp. 347-358

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz, MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora   Revista dos Tribunais, 2012.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, DIDIER JR., Fredie, TALAMINI, Eduardo, DANTAS, Bruno (coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

[i] Marinoni, Arenhart e Mitidiero bem anotam que o STF, à luz da legislação anterior ao novo CPC, entendia que os Tribunais de Justiça podiam até ter reclamações, mas desde que as Constituições Estaduais assim o permitissem (MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz, MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 920).

[ii] A “objetivação” no processo civil: as características do processo objetivo no procedimento recursal in  REPRO 178, dezembro de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. pp. 220-226.

[iii] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 299.

[iv] A reclamação no novo CPC – fim das limitações impostas pelos Tribunais Superiores ao cabimento? in  REPRO 244, junho de 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2015. pp. 347-358.

[v] Precedente judicial versus jurisprudência dotada de efeito vinculante in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 540.

 

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