O novo código de processo civil e as condições para o regular exercício do direito de ação como categoria do direito processual em geral - Por Afrânio Silva Jardim

30/08/2016

1 - Tendo em vista o sistema adotado pelo novo código de processo civil, que dá tratamento processual semelhante às condições da ação e aos pressupostos processuais, alguns relevantes autores e professores da matéria estão agora negando, doutrinariamente, a permanência do sistema de Liebman. Alegam estes mestres que não mais faria sentido usar expressões como "condições da ação" e distingui-las dos pressupostos processuais.

Sobre tal controvérsia, vale a pena consultar o recente texto do professor Daniel Amorim Assumpção Neves, in Novo Cod.Proc.Civil, Inovações, alterações Supressões, Rio, Gen/Ed.Método, 2015, p.47/510. Discordamos daqueles que negam o chamado "trinômio processual", até porque o código de processo penal, mesmo alterado recentemente, continua a falar em condições para o exercício da ação penal. Vamos agora negar a Teoria Geral do Processo?

Não resta dúvida de que podemos até colocar "tudo no mesmo saco", com algum outro nome, como "pressupostos para o exame do mérito", etc. Realmente são questões preliminares e tanto a presença das condições para o regular exercício da ação como os pressupostos processuais devem ser examinados antes da resolução do mérito do processo. Entretanto, se ação é uma categoria distinta do processo, cada um terá os seus requisitos mínimos para existir. Sem pretensão, manifestada pelo pedido, não existe a ação. Sem órgão investido de jurisdição, partes e a demanda, não existem o processo e a relação jurídica processual que dele decorre.

Por outro lado, sendo a ação um direito subjetivo, (para uns poder jurídico), de manifestar em juízo uma determinada pretensão (no sentido de Carnelutti), ela deve obedecer a alguns condicionantes para que não haja o abuso do exercício do direito. O direito de ação é autônomo e abstrato, mas serve de instrumento ou meio para ver tutelado ou satisfeito um outro direito, regulado pelar lei material, (caráter instrumental). O direito de ação não é um fim em si mesmo. Já o processo, em existindo, deve ter os atos realizados de acordo com as normas que os regulam.

Tudo é uma questão lógica e decorre do sistema processual e não depende do legislador. Não me parece correto anular um processo porque o autor não tem interesse no exercício daquela ação, como não me parece correto que o processo deva ser extinto porque um ato, praticado lá no final, seja nulo ou anulável. Temos de fazer a distinção pela natureza dos "institutos" e por suas consequências.

Irrelevante o fato de o novo código de processo civil não ter se referido ao pedido juridicamente impossível, com hipótese de extinção do processo sem enfrentamento do mérito. Na última edição de seu Manual de Direito Processual Civl (existe excelente tradução de Cândido Dinamarco) também Enrico Liebman omitiu tal condição da ação, por entendê-la questão de mérito. Tema também controvertido. O pedido de prisão de algum devedor por ato ilícito, formulado em uma ação de indenização ou cobrança, seria apreciado pelo juiz ao final do processo? Haveria uma resolução do mérito do processo? No processo penal, o pedido de pena de morte ou açoite, pela prática de um latrocínio, suscitaria uma decisão de mérito? Note-se que também no processo civil temos ou podemos ter condições específicas para determinadas ações, como a prova pré-constituída no mandado de segurança, segundo entendem alguns autores.

Em trabalho recente, reiterei o que de há muito venho sustentando em palestras e nas minhas obras: a originalidade é também uma condição para o regular exercício do direito de ação. Para se admitir a ação, é necessário que não existam a litispendência ou a violação à coisa julgada. Nestas hipóteses, o segundo processo não deve ser anulado, mas extinto sem resolução do mérito. O que se proíbe é a duplicidade da ação e isso nada tem a ver com a validade dos atos processuais.

Em suma, o novo Cod.Proc.Civil vai nos levar a crer que ação e processo são categorias idênticas? Se são distintas, não podem deixar de ter pressupostos, condições, requisitos (ou outro nome qualquer) diferentes. É até mesmo intuitivo.

Assim, a existência de uma categoria jurídica não depende de sua previsão expressa na lei, mas pode depender do próprio sistema. Por exemplo, a exigência de prova mínima para a admissibilidade da ação penal condenatória não está expressa no Cod.Proc.Penal e todos são unânimes em não aceitar ação penal condenatória sem que a denúncia ou queixa tenham algum lastro em prova no inquérito ou nas peças de informação. Entendemos que não bastam alguma prova da autoria e alguma prova da existência material, mas se fazem necessárias também prova mínima da culpabilidade e da ilicititude da conduta penalmente relevante, (hoje, abandono a polêmica expressão “justa causa” e a substituo por “por suporte probatório mínimo”, como quarta condição para o regular exercício da ação penal condenatória”.

2 - A originalidade como condição para o exercício do direito de ação, tanto no novo Código de Processo Civil como no Código de Processo Penal.

Inicialmente desejo deixar bem claro o sistema processual com o qual opero, dando os nossos conceitos sobre as categorias jurídicas que o compõem. Não podemos negar a influência de Carnelutti , Liebman e Jayme Guasp em nossa formação, sendo que, em nossa pátria, levamos em linha de conta o pensamento de Hélio Tornaghi, Frederico Marques e o grande José Carlos Barbosa Moreira.

Desde logo se vê que trabalho com conceitos que extraímos da hoje questionada Teoria Geral do Processo, motivo pelo que, quase tudo que aqui vamos dizer, vale para os vários ramos do Direito Processual (Civil, Penal e do Trabalho).

Concebemos a ação como um direito subjetivo público, autônomo e abstrato, porém conexo a uma relação jurídica de direito material, alegada pelo autor, de manifestar em juízo uma determinada pretensão.

Fazemos a distinção do direito de ação, que tem assento constitucional, do exercício deste direito de ação, que é regulado pelo Direito Processual. Julgamos ser sempre muito importante distinguir qualquer direito de seu exercício.

Pretensão, no conceito supra, tem o sentido específico e peculiar formulado por Carnelutti, sendo a exigência de subordinação do interesse jurídico do autor em face de eventual interesse oposto do réu. É uma vontade que o autor da ação manifesta perante o poder judiciário. Tal manifestação é um pressuposto necessário para que o direito de ação tenha sido efetivamente exercido. As chamadas condições da ação se relacionam com o seu regular ou legítimo exercício, e devem ser examinadas tendo em vista o que, em tese, o autor alega e não tendo em vista a prova produzida, pois aí já estamos no exame do mérito.

Cabe, ainda, explicitar que a pretensão, enquanto vontade do autor, é exteriorizada através do "pedido". O pedido tem um significado próprio no Direito Processual. Não se julga o direito de ação, mas sim o pedido. A ação é admissível ou não, enquanto o pedido é procedente ou não. Em outras palavras, o pedido materializa a pretensão, documenta a pretensão. Ele é que delimitará o "thema decidendum". Entretanto, na ação penal condenatória, tal delimitação será efetivada através da imputação do "fato principal". Não se deve confundir pedido com meros requerimentos ou manifestações sobre o mérito, em alegações das partes ou em pareceres.

Seguindo explicitando o nosso pensamento, damos o nosso conceito de processo: para nós, processo é um conjunto de atos jurídicos, regulados pela lei processual, organizados de forma sistemática e teleológica, através dos quais a atividade jurisdicional se desenvolve para satisfação da pretensão do autor. Usamos aqui o termo “satisfação” no sentido de Guasp, não significando que o autor será atendido, mas terá seu pedido examinado pelo Poder Judiciário, em uma atividade substitutiva.

Entendemos que o processo não é uma relação jurídica, mas cria a relação jurídica, vinculando os sujeitos que nele atuam. Não trabalhamos com o conceito de lide, que pode existir ou não, mas trabalhamos sempre com a idéia de pretensão. Não existindo pretensão, não haverá ação, processo e jurisdição. Podemos ter sim a chamada jurisdição voluntária, onde encontramos requerimento, procedimento e atividade judicial (não jurisdicional).

Finalmente, temos entendido que o processo é uma categoria autônoma, descabendo enquadrá-lo em outras categorias cunhadas pela Teoria Geral do Direito. Em resumo, processo é processo e não relação jurídica. Processo cria a relação jurídica. Neste particular, recebemos a adesão do excelente professor e desembargador Alexandre Câmara, no trabalho publicado na segunda edição do livro “Tributo a Afranio Silva Jardim”, Lumen Juris, 2014, p.33/40. Para melhor detalhamento do que acabamos de sustentar, peço licença para remeter o leitor ao nosso trabalho intitulado “Reflexão teórica sobre o processo”, o qual se tornou o capítulo do livro Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres, p.21/52, agora em 13.edição, publicado pela Lumen Juris, em 2014, que conta com a co-autoria do amigo, excelente magistrado e professor Pierre Souto Maior Amorim.

Desta forma, sendo o direito de ação uma categoria diversa do processo, até porque a primeira só existe no plano ideal e a segunda surge no mundo físico, não vejo como alguns possam misturar ou confundir os pressupostos do processo com as condições para o exercício do direito de ação e mesmo com o pressuposto da existência deste direito (pretensão). Embora todos tenham de ser examinados lógica e cronologicamente antes do mérito, eles se relacionam com categorias processuais absolutamente distintas. Lamentavelmente, os nossos tribunais costumam confundir estas categorias.

Voltando ao tema central deste nosso estudo, salientamos, mais uma vez, com apoio na melhor doutrina, da qual Hélio Tornaghi foi um dos pioneiros, que as chamadas condições da ação não são condições para a existência do direito de ação, mas sim para o seu regular exercício. Vale dizer, mesmo que falte uma destas condições, teremos ação, processo e atividade jurisdicional, entretanto, a pretensão do autor não será apreciada (mérito).

Por outro lado, cabe salientar, que na falta de um pressuposto de existência do processo, não teremos atividade jurisdicional e coisa julgada. Na falta de um pressuposto de validade do processo, fica contaminada a validade dos atos processuais (plano da eficácia), acarretando a sua nulidade. A rigor, para nós, no processo, não haveria nulidade, mas sim anulabilidade, pois enquanto o ato processual não é desconstituído por decisão judicial, ele produzirá efeitos, os quais a coisa julgada material poderá até torná-los perenes.

Feitas estas observações teóricas e introdutórias, vamos passar a sustentar a existência de mais uma condição para o regular exercício da ação penal, civil e trabalhista. Importa ressaltar que se trata de mais uma condição genérica, pois não vamos cuidar das chamadas condições específicas, criadas pela lei processual para situações peculiares. Julgo necessário mais um esclarecimento, específico para o Direito Processual Penal.

De há muito vimos sustentando que a justa causa é uma quarta condição para o regular exercício da ação penal condenatória, pública ou privada. Definíamos a justa causa como sendo o suporte probatório mínimo que deve existir para legitimar uma acusação penal, tendo em vista que a instauração de um processo já pode causar danos irreparáveis ou de difícil reparação para o réu. Hoje, fazemos a distinção das duas categorias processuais: suporte probatório mínimo e justa causa, tendo em vista a atual redação do art.395 do Cod.Proc.Penal. Veja esta nossa nova posição doutrinária no recente trabalho que publicamos em nossa Coluna do site Empório do Direito, cujo título é “Justa causa para instauração do processo penal condenatório”.

Ademais, também temos afirmado que este suporte probatório mínimo não se refere apenas à impropriamente chamada materialidade do delito e à autoria ou participação da conduta imputada na denúncia ou queixa. Deve haver também prova mínima da ilicitude e culpabilidade. Para mais detalhes sobre nosso pensamento, remetemos o leitor para o nosso livro “Ação Penal Pública”, publicado, em 5ª.edição, pela Lumen Juris, 2012.

Atualmente, vale e pena repetir, fazemos a distinção entre o suporte probatório mínimo, com quarta condição da ação penal condenatória, da categoria justa causa, conforme recente trabalho publicado em nosso Coluna do site Empório do Direito, com o título “Justa causa para instauração do processo penal condenatório”.

Não julgamos que o suporte probatório mínimo precise da certeza da materialidade da infração penal e nem trabalhamos com a ideia de probabilidade de futura condenação, conforme pareceu ao professor Gustavo Badaró, em minucioso e extenso trabalho, criticando a nossa tese sobre a imputação alternativa (“Tributo a Afranio Silva Jardim”, Rio, Lumen Juris, 2ª.edição, p.387/444. A nossa posição é que, para o exame desta quarta condição da ação penal condenatória, basta constatar a existência (sem juízo de valor) da prova mínima que dê lastro à acusação. Se, no inquérito policial ou nas peças de informação, encontramos alguma prova da existência material da infração penal, de sua autoria ou participação e também prova mínima da ilicitude e culpabilidade, estará correto o exercício daquela ação penal condenatória.

Mais uma ressalva: tendo em vista a imprecisão da expressão “justa causa” e o seu errôneo tratamento dado pelo legislador da reforma do Código de Processo Penal, (art.395), consoante dissemos acima, passamos a cuidar da justa causa como categoria processual distinta, mantendo a seguinte afirmação: A QUARTA CONDIÇÃO PARA O REGULAR EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL CONDENATÓRIA É A EXISTÊNCIA DE UM SUPORTE PROBATÓRIO MÍNIMO DA IMPUTAÇÃO FEITA NA DENÚNCIA OU QUEIXA. Acreditamos que, com isso, ninguém discorde. A discordância poderá ficar para a extensão desta prova mínima. (Repito: sobre a justa causa, veja recente trabalho de nossa autoria, publicado em nossa Coluna do site Empório d Direito).

Passamos agora a enfrentar um outro tema relevante: a originalidade como condição para o regular exercício da ação civil, penal e trabalhista. Quando falamos em originalidade, estamos querendo dizer o mesmo direito de ação não pode ser exercido simultaneamente (litispendência), ou mesmo, sucessivamente (se houver coisa julgada material). Vale dizer, não litispendência e não violação à coisa julgada. A ação tem de ser original e não uma “cópia” de outra ainda pendente ou já constante de outro processo apreciado no mérito.

A doutrina vem asseverando que a litispendência e a coisa julgada são pressupostos processuais negativos de validade do segundo processo. Percebemos aqui novamente aquela confusão que mencionamos no início deste breve trabalho, confundindo validade processual com regularidade no exercício do direito de ação. A proibição de se reproduzir uma determinada ação tem a ver com a validade dos atos processuais praticados no segundo processo ou tem a ver com o abusivo duplo exercício do mesmo direito de ação?

Assim, quando o sistema normativo proíbe a litispendência e a violação à coisa julgada, ele está disciplinando, regulando, limitando o exercício do direito de ação. Nestas hipóteses, o autor está abusando do seu direito de ação ou, em outras palavras, ele está exercendo ilegitimamente o direito de ação, porque o faz repetidamente.

Por isso, o Código de Processo Civil não determina que o segundo processo seja anulado, mas sim que ele seja extinto sem apreciação de seu mérito. Correto o legislador. Se fosse o caso de anular o segundo processo, ele poderia ser instaurado novamente, sanada que fosse a nulidade ... Aliás, caberia aqui uma pergunta: que ato deste segundo processo deveria ser anulado? Que ato deste segundo processo foi praticado em desconformidade com a lei processual que o regula?

A toda evidência, a reprodução indevida do mesmo direito de ação tem a ver com o direito de ação e não com o processo. É até mesmo intuitivo. Este nosso entendimento é antigo e consta das duas de nossas obras acima mencionadas, bem como de palestras que se encontram publicadas na internet (Youtube). Já encontramos adesão de alguns importantes autores ligados ao Processo Penal, como os professores e magistrados Rubens Casara e Antônio Pedro Melchior, (Teoria do Processo Penal Brasileiro, Rio, Lumen Juris, 2013, 1º.volume, p444) e André Nicollit (Manual de Direito Processual Penal, Rio, Elsevier, 2013, 4ª.edição, p.113/114 ), motivo pelo qual aguardamos que os mestres dos outros ramos do Direito Processual nos honrem com suas apreciações críticas..


Imagem Ilustrativa do Post: Composition 1951 (Vieira da Silva Portalegre tapestries) // Foto de: Pedro Ribeiro Simões // Sem alterações

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