O Nome da Rosa: Ecos do Direito em uma Obra Imortal

06/03/2016

Por Kássio Henrique S. Aires - 06/03/2016

No dia 19 de fevereiro o mundo perdeu um dos seus maiores pensadores e filósofos: o italiano Umberto Eco. A notícia chocou o mundo com a despedida surpresa de um escritor carismático, culto, além de um grande semiólogo e que possuía a rara habilidade de escrever textos e livros que atraiam tanto o meio erudito, quanto as massas populares.

Mas falar de Umberto Eco é também falar de sua maior obra, um best-seller mundial chamado O Nome da Rosa. Lançado em 1980, o livro alcançou de imediato um lugar na lista dos mais vendidos em diversos países, provocando rapidamente a atenção de produtores cinematográficos, que acabaram por adaptar a obra aos cinemas. O filme homônimo foi lançado em 1986, ganhando criticas positivas do mundo todo, além de um forte apreço por parte do publico, que anos depois o elevou a status de cult. Não há como separar essas duas artes, livro e filme, pois ambas estão em uma reciprocidade verdadeira que acaba por completar uma a outra.

Talvez analisar o filme provoca ao leitor aquela desconfiança costumeira de que o autor do ensaio negligencia o livro em detrimento de outras artes. Pelo contrario; apesar de haver algumas alterações do texto literário para as telas de cinema, a essência da historia continua a mesma, assim como sua complexidade, filosofia, e criticas ao sistema religioso. O próprio Eco aceitou a adaptação com bom agrado, permitindo ao diretor que traísse a obra “porque para se adaptar algo bem, precisa-se trair bem”. E como dito por Arnaldo Sampaio (2013), “O filme mantém a inteligentíssima intertextualidade do romance de Umberto Eco.”

O romance se desenvolve em um período medieval, uma época obscura para o pensamento livre e racional do homem. O individuo da Idade Média é um ser – marionete, preso a superstições e convicções religiosas, que inibem terrivelmente seu livre arbítrio. Aqui não há liberdade individual, uma vez que o domínio do Estado e da Igreja se encontra onipresente em todo lugar, não permitindo que o indivíduo possa viver e se expressar da forma como queira.

A obra possui como personagens principais o frade franciscano Guilherme de Baskerville (o nome no livro original é William, mas por um motivo desconhecido pelo autor do ensaio, a versão em português traduziu para Guilherme de Baskerville) e seu noviço Adso de Melk. De imediato o apreciador da obra associa a dupla de religiosos a Sherlock Holmes e seu amigo Watson. As semelhanças são nítidas, tais como a atuação do noviço como narrador da historia, papel esse desempenhado da mesma forma pela personagem de Conan Doyle nas historias da dupla de investigadores de Londres; o método de investigação da dupla, flertando com a racionalidade cientifica; a posição de conhecedor de tudo que tão bem iguala Sherlock Holmes e Guilherme de Baskerville; o próprio sobrenome do monge beneditino, que evoca o livro O Cão dos Baskerville, historia de detetive da dupla de Londres e etc. Nota-se também que a dupla é composta de um mestre e seu aprendiz; uma jogada artística sábia que permite ao espectador, através do aprendiz, saber e aprender coisas intrínsecas a história que ainda não foram expostas ao espectador.

O perfil evidenciado das personagens principais se esforça em demonstrar uma racionalidade empírica humana, consubstanciada aos avanços “tecnológicos” da Baixa Idade Media. A título de reforço, a Baixa Idade Media é conhecida como o período decadente de uma época obscura as quais certos assuntos eram tabus, mas passaram a ser firmemente questionados, tais como a importância do homem no mundo em desfavor de outros fatores, como a própria religião; o ceticismo quanto ao formato do mundo redondo; a busca de novas terras, desmitificando as lendas de países míticos e fantásticos, além de outros denominadores.

Mas voltemos ao filme. A dupla sherlockiana da idade medieval vem a um isolado mosteiro para investigar a morte de um jovem monge em circunstâncias misteriosas. Logo após a morte do jovem, outras duas ocorrem, provocando o pânico entre os beneditinos. Boatos fervorosos de que os crimes estão relacionados a forças sobrenaturais do demônio forçam os superiores do monastério a dispensar os serviços de Guilherme e Adso e convocar aquela que poderá solucionar esse terrível mistério: a Grande Inquisição, a poderosa máquina da igreja para a propagação da justiça divina sobre o mal e o pecado do mundo.

Chefiando a comitiva inquisitória está o grande e temido inquisidor Bernardo Gui, um velho inimigo de Guilherme de Baskerville. O primeiro defende a idéia da justiça vinda dos céus, proferida pelo divino contra o demônio e seus tentáculos. O Grande Inquisidor crê na justiça natural, naquela arraigada ao começo do mundo, com seus princípios a floreio que obrigatoriamente necessitam ser seguida de forma obediente e somente a sua entidade máxima, nesse caso a Igreja, poderia ser a aplicadora da lei. O monge Benedito reconhece a justiça natural, mas acredita fielmente que uma justiça fruto da racionalidade, aliada com a investigação de fatos sem um olhar crítico e arbitrário da Igreja poderia ser mais bem aplicada a casos concretos como aquele. Sua idéia é concomitante com a de uma justiça justa, expressa pelo brocardo dar a cada ser o que merece, na sua devida proporcionalidade. Essa justiça racional encontra ecos no positivismo, teoria difundida séculos depois, onde aqui se considera o conhecimento cientifico como o único conhecimento verdadeiro. Mas nós estamos em um período diferente e estranho ao nosso, e apesar do Irmão Baskerville não se calar e contestar quando o Grande Inquisidor culpa um corcunda, uma camponesa e um abade pelas mortes, além de associação a bruxaria por invocação ao “demônio” (sem ao menos permitir o contraditório e ampla defesa deles), a Inquisição se impõe no final, condenando os três acusados a fogueira.

Necessário se faz traçar um paralelo entre o processo penal daquela época com o nosso sistema atual. Apesar de termos evoluído positivamente em questões como a defesa do réu, o ordenamento jurídico brasileiro sofreu um golpe terrível após o STF decidir esse ano que a prisão de condenados deve ocorrer depois que a sentença for confirmada em um julgamento de segunda instância, ainda que haja possibilidade de recursos de defesa. Juristas, doutrinadores, membros do Judiciário e a população em si questionaram esse julgado da Corte Maior, que claramente é uma afronta ao principio da presunção da inocência presente no inciso LVII do artigo 5o da Constituição Federal. Seria o prenúncio de novos tempos de “inquisição”, onde o réu não teria sua posição de inocente questionável antes que se pudesse provar o contrário? É um questionamento intrigante e urgente diante do que vivenciamos nos últimos dias.

Como um questionador das atitudes da inquisição perante aquele caso, ao irmão Baskerville é dada a “punição” de repetir suas palavras dúbias perante o papa. Afinal, aquele que questiona o Estado precisa ser detido antes que inspire mais pessoas a questionar como ele. Sem divagar muito e fugir do tema proposto, observamos com clareza como o Estado se tornou controlador de relações e expressões consideradas inerentes ao homem, que de forma alguma deveria pertencer a sua alçada estatal. Não sabemos se o irmão Baskerville, através de sua racionalidade, previu que o homem é um ser livre e o Estado um ente mínimo que deverá regular apenas questões essenciais ao convívio em sociedade, tais como segurança, educação e saúde; e nem se o autor tinha essa intenção ao escrever o livro, mas a verdade é que através de uma análise não tão acurada da obra é possível observar essa subversão positiva contra os mandos de um Estado autoritário e opressor. Quando o irmão Baskerville se alia a uma visão racional e não supersticiosa dos fatos em questão, ele notadamente se põe contra um sistema. E como todo subversor em um Estado opressor, necessário se faz a sua punição.

Então, sem se deixar intimidar, William anuncia que as mortes não cessarão com a prisão daqueles inocentes. Mas infelizmente, o monge não é devidamente ouvido.

Com a morte de mais dois irmãos beneditinos, o ultimo no meio de um sermão do irmão Jorge de Burgo, os instintos de Baskerville o alerta a agir o quanto antes, e juntamente com seu noviço Adson, a dupla volta para a biblioteca do monastério onde recentemente exploraram a procura de pistas para a solução daquelas mortes.  Após percorrer um labirinto ao acaso, os dois encontram o responsável por todos aqueles crimes. O autor não será mencionado em respeito ao leitor que ainda não assistiu a versão cinematográfica ou leu a historia. O motivo será igualmente preservado, afinal O Nome da Rosa é uma obra que merece ser degustada de alguma forma, seja na versão romanceada, seja em vídeo.

O homem nasceu mortal, mas de alguma forma consegue perpetuar sua existência nesse mundo através de suas obras. Umberto Eco partiu, entretanto acredito que ele se encontra mais presente do que nunca em nosso meio. Quando seu nome é lembrado, sabemos que seus esforços em vida foram suficientes para eternizar seu eco pelo tempo. Ao explicar a origem do nome da obra, o autor, através de citação de texto de Arnaldo Sampaio (2013) conta que:

 Há tradição que nos dá conta de texto canônico no qual se leria que nomes seriam mais importantes do que coisas. Afinal, segundo esta tradição, no dia em que no mundo não existirem mais rosas, restará entre os homens à lembrança do nome da rosa...

Umberto Eco partiu, mas a exemplo do texto acima, restou à lembrança do seu nome entre nós. Obrigado por ter existido, Umberto Eco, o mundo sentirá sua falta.


Notas e Referências:

Eco, Umberto, O Nome da Rosa, Rio de Janeiro: Record, 2010. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e de Homero Freitas de Andrade.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. EMBARGOS CULTURAIS: O Nome da Rosa mostra Igreja dominada por intrigas. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-abr-28/embargos-culturais-nome-rosa-mostra-igreja-dominada-intrigas>. Acesso em: 23 de fevereiro de 2016.

 GOSETTI, Giorgio. Filme 'O Nome da Rosa' foi "boa traição" do livro, disse Eco. Disponível em:< http://diversao.terra.com.br/arte-e-cultura/filme-o-nome-da-rosa-foi-boa-traicao-do-livro-disse-umberto>. Acesso em 24 de fevereiro de 2016.

NOME da Rosa, O. Direção: Jean-Jacques Annaud. Bernd Eichinger Produções. Alemanha, França e Italia, 1986. 130 min. Son, Color, Formato: 70 mm.


Kássio Henrique Aires. Kássio Henrique Aires é estudante de Direito na Faculdade Católica do Tocantins - FACTO; Representante de turma; Coordenador Jurídico e de Assistência Estudantil do Diretório Central Estudantil - DCE/FACTO; Membro do Observatório de Direitos Humanos; Bolsista pesquisador na área de Direitos Humanos da FACTO; Monitor da matéria de Direito Penal II do curso de Direito da FACTO; e um apaixonado por Direito.


Imagem Ilustrativa do Post: Book // Foto de: Kamil Porembiński // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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