Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá
Com a vigência do Novo Código de Processo Civil (2015), houve a sacralização do negócio jurídico atípico em seu artigo 190, inovando com relação ao Código anterior (1973), que somente previa o negócio jurídico típico, tradicionalmente exemplificado pela suspensão processual. Por se tratar de uma figura inovadora, com limites turvos e desconhecidos de aplicação, sua utilização ainda é demasiadamente parca, principalmente em razão da dificuldade de compreender o negócio jurídico processual em si.
Historicamente, o Processo Civil brasileiro sempre demonstrou predileção em relação a legalidade das formas, optando por uma articulação pormenorizada do procedimento, observando estritamente a sequência legal de atos[i].
No entanto, o procedimento fixo previsto legalmente nem sempre é o mais adequado a lide, considerando, inclusive, que cada processo possui suas características próprias, sendo, por vezes, demasiadamente onerosa a aplicação de um procedimento rígido. Inclusive, diversas vezes, este se mostra incompatível com a realidade fática, tornando mais difícil o acesso a ordem jurídica justa e célere.
Posto que os conflitos possuem natureza variada, também deve a prestação jurisdicional acompanhar estas peculiaridades[ii], sendo inclusive adequado e necessário remetermo-nos a comparação de Francesco Carnelutti[iii], afinal, se médico algum pensa em prescrever o mesmo remédio a todos os enfermos, por qual razão deveriam todas as lides serem submetidas ao mesmo rito, se possuem natureza igualmente diversa?
Cumpre ainda apontar que a adaptabilidade do procedimento, aqui defendida, não se confunde com liberdade irrestrita das formas processuais nem resulta em anarquia processual. Apenas se defende que os sujeitos do processo possam realizar alterações procedimentais, de forma a encaixar o procedimento à natureza e peculiaridades da demanda[iv].
O formalismo processual em si exerce papel fundamental no estudo da tutela jurisdicional, indicando as fronteiras do processo, estabelecendo os limites dos sujeitos do processo, trazendo certa previsibilidade ao processo e disciplinando o poder do juiz[v]. No entanto, o excessivo apego às formalidades não pode representar um fim em si mesmo, opondo-se ao melhor andamento do processo em claro embate ao princípio da razoável duração do processo.
Ressalva-se que o processo é um instrumento de tutela dos direitos, sendo necessário o estudo dos institutos tradicionais com uma visão crítica e mais ampla da utilidade processual, preocupando-se em fazer este aderir à realidade sócio-jurídica a que se destina, sendo meio efetivo de realização de direitos, permitindo a analise material[vi].
Assim, na busca por aquilo que realmente se tem direito, o cidadão precisa não somente da previsão procedimental rígida, mas da possibilidade de criação de um procedimento adequado às peculiaridades do caso[vii]. Ao permitir a flexibilização procedimental, o legislador trouxe amparo legal a adaptabilidade do procedimento, permitindo a efetivação da garantia constitucional do contraditório, fundada no caráter dialético do processo[viii].
A possibilidade de as partes negociarem e acordarem, conquanto as variações procedimentais, não constitui ofensa a previsibilidade do processo ou ao devido processo legal, pois este procedimento é previsível e legitimo às partes, as quais em comum acordo definem o procedimento a ser seguido, não podendo alegar sua imprevisibilidade, nem ventilar a possibilidade de insegurança jurídica, posto que a alteração é decorrente da autonomia privada destes.
A adequação procedimental busca conceber vias individualizadas em oposição ao rito pré-formatado, justificando as alterações voltadas a obtenção dos melhores resultados, visando uma tutela jurisdicional mais célere e efetiva.
Ao retratar o negócio jurídico processual no artigo 190 do CPC e possibilitar a adequação procedimental pelas partes em acordo com as necessidades e peculiaridades do caso, o legislador permitiu que os agentes diretamente envolvidos na lide pudessem pactuar qual o procedimento que melhor se adeque ao litígio e aplicá-lo de acordo com sua vontade, desde que observados os limites legais.
Neste norte, seguindo a Teoria da Escada Ponteana de Pontes de Miranda, a qual consiste na definição de uma tricotomia de planos que configuram o negócio jurídico, tem-se primeiramente a análise sobre o plano da existência, abrangendo todos os fatos jurídicos, lícitos ou ilícitos, ficando circunscrito apenas a constatar se o suporte fático suficiente se compôs, assim, se há falta de elemento nuclear, mesmo que de natureza complementar do núcleo, o fato não tem entrada no plano de existência[ix]. Nessa premissa, constituem elementos gerais existenciais: a) intrínsecos (constitutivos): a forma, o objeto e a circunstâncias negociais; e b) extrínsecos (ou pressupostos): o agente, o lugar e o tempo do negócio[x].
Superado o plano da existência, passa-se a analisar o plano da validade, “onde o Direito fará a triagem entre o que é perfeito (que não tem qualquer vício invalidante) e o que está eivado de defeito invalidante”[xi]. Assim, pode-se considerar que a validade é a “qualidade que o negócio deve ter ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas (‘ser regular’)”[xii]. Desse modo, os negócios jurídicos processuais devem ser atendidos os requisitos objetivos e subjetivos do direito processual, enquanto matéria reguladora.
Os elementos subjetivos são aqueles apontados pela legislação processual em seus artigos 70 e 103, respectivamente, capacidade processual e capacidade postulatória, bem como aqueles apontados nos arts. 42 e 144/145, respectivamente, competência e imparcialidade do magistrado. Já os elementos objetivos intrínsecos ao processo estão presentes nos artigos 319 e 239 do Código de Processo Civil, sendo eles a petição inicial apta e a atenção as formalidades da citação[xiii].
No plano da eficácia, cumpre ressaltar novamente a previsão deste negócio, em artigo supracitado do Código Processualista, adentrando o entendimento de que a norma processual possuí eficácia própria e, ao permitir a manifestação da vontade quando constitui negócio jurídico processual, as partes estão se submetendo às opções legislativas do CPC[xiv].
Há, ainda, outros elementos interessantes apontados por Flávio Luiz Yarshell. O autor inclui nos elementos existenciais a necessidade de o negócio jurídico ser necessariamente escrito, aludindo-se ao brocado jurídico: “o que não está nos autos não está no mundo”[xv], buscando defender a acessibilidade de tudo que foi produzido no processo para todos aqueles que possuem capacidade para tanto. Tal entendimento é interessante pois impediria a compreensão do negócio jurídico processual constituído por omissão, condição defendida como possível por grandes doutrinadores brasileiros como Leonardo Carneiro de Cunha[xvi].
Outro entendimento interessante apresentado pelo autor é a necessidade de observância ao Devido Processo Legal, consubstanciado na observação de diversos requisitos de validade, como a igualdade real das partes, a liberdade de escolha e a boa-fé, decorrentes da observação constitucional do art. 5°. Observa ainda que eventuais limitações bilaterais e isonômicas não são necessariamente inconstitucionais, posto que decorrente da autonomia da vontade das partes, devendo prevalecer o convencionado, desde que seja observado os requisitos supramencionados[xvii].
Adentrando o elemento de validade, o doutrinador também traz uma posição interessante sobre a convenção de termo, condição e cláusula penal pelas partes, admitindo-os em nosso ordenamento. A título de exemplo da convenção a termo, aponta a calendarização do processo, entendimento amplamente difundido. Conquanto a condição, tema mais polêmico em razão do entendimento de que os atos processuais não podem ser condicionais, esclarecendo que, na realidade, é o conteúdo e a forma de exercício das posições jurisdicionais que está sendo sujeitado a evento futuro e incerto. Por fim, quanto a previsão de cláusula penal, aponta que esta pode incidir no descumprimento das regras processuais impostas pelas partes (logo, vinculante a estes), não se restringido a litigância de má-fé[xviii].
Uma vez concluída a breve e superficial análise das condições de existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos processuais, matéria complexa e merecedora de estudo específico, faz-se necessária a análise específica do direito material possivelmente atingido pela convenção.
Na redação legal, o legislador optou por permitir a transação negocial de “direitos que admitam autocomposição” (art. 190, CPC), remetendo à discussão dos litígios passíveis de mediação, conciliação e arbitragem. Ao impor tal limitação restringiu-se a aplicação aos direitos que são passíveis de transação, renúncia ou submissão, sendo perceptível a tentativa de distinguir os conceitos de possibilidade de transação e indisponibilidade.
Contanto, percebe-se que a classificação restou um tanto quanto aberta, posto que a discussão dos direitos que admitem autocomposição por si é extremamente polêmica, sendo questionada a transacionalidade de direitos indisponíveis, tal qual as ambientais, e.g., inexistindo posição pacífica quanto a sua definição.
Por esta razão, Flávio Luiz Yarshell aponta como preferível a manutenção do vocábulo adotado pela lei 9307/96, que de forma mais objetiva referiu-se a “direitos patrimoniais disponíveis” (§1°, art. 1°, Lei de Arbitram). Conclui que o presente código buscou que a possibilidade do negócio jurídico processual não ficasse restrita aos litígios patrimoniais, podendo adentrar as discussões acerca do estado e da capacidade das pessoas, contanto que envolva pessoas capazes[xix].
Tal posição não é a mesma de Arruda Alvim Wambier, que aponta a intenção legislativa de ampliar a categoria de direitos passíveis de negociação, remetendo-se não unicamente aos direitos disponíveis, desfazendo qualquer relação de igualdade entre estes e os que admitem autocomposição, reconhecendo a submissão daqueles a este[xx].
Ao aferir tratamento mais reflexivo do tema, preliminarmente deve perceber-se que a autocomposição é vista como técnica para a solução dos conflitos, não existindo direito aprioristicamente infenso a ela. Percebe-se que houve a intenção de utilizar-se de rol aberto e exemplificativo, ainda não delimitado, que permite a interpretação do instituto e sua adequação a realidade, razão pela qual posiciona-se ao lado de Arruda Alvim Wambier.
A perceptível confusão é, na realidade, relacionada com a diferença entre a titularidade e o exercício de determinado direito. Os direitos indisponíveis são as garantias e que não possuem cunho patrimonial[xxi]. Todavia, a doutrina clássica tutele pela sua intransacionalidade, a defesa tornou-se inócua em face da realidade cotidianamente embatida e das consequências legais da determinação, considerando ainda que o legislador permite indiretamente a sua negociação.
Simplesmente categorizar certos direitos como indisponíveis e, portanto, não sujeitos a negociação, é como ignorar ou esquecer da liberdade individual de cada um, é como considerar qualquer ato rotineiro que prescinda da autonomia privada das partes não possui qualquer força legal[xxii].
Nessa toada, temos o posicionamento do Fórum Permanente de Processualistas Civis, em seu Enunciado 135, permitindo claramente a celebração de negócios jurídicos processuais sobre direito material indisponível.
Portanto, percebe-se um aceno positivo da doutrina atual em relação a transacionalidade de direitos disponíveis, corroborados pela interpretação constitucional, não prevalecendo mais o entendimento clássico de que direitos indisponíveis não podem ser negociados/disponibilizados nem mesmo por seu titular.
Inclusive, pode-se aferir entendimento similar pelo legislador, posto que usou o vocábulo “direitos que admitem autocomposição” ao invés de “direitos patrimoniais disponíveis”, com desejo óbvio de remeter-se a esfera mais abrangente. Desta forma, há a compreensão que pode ser feito negócio jurídico processual também de direitos indisponíveis, desde que observada a autonomia privada das partes, inclinando positivamente a aplicação da Clausula de Non Petendo em nosso ordenamento jurídico.
Notas e Referências
[i] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2003.
[ii] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed., São Paulo: Malheiros, 2006.
[iii] CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. 2. ed., São Paulo: Lemos & Cruz, 2004.
[iv] DIDIER JR, Fredie. Sobre dois importantes, e esquecidos, princípios do processo: adequação e adaptabilidade do procedimento. Revista de Direito Processual Civil 2010/530-541, Curitiba.
[v] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Op. Cit.
[vi] WATANABE, Kazuo. Cognição no Processo Civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva. 2012.
[vii] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000.
[viii] CAMBI, Eduardo. Flexibilização procedimental no Novo Código de Processo Civil. Revista de Direito Privado | vol. 64/2015 | p. 219 - 259 | Out - Dez / 2015. DTR\2016\130.
[ix] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
[x] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.
[xi] MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit. p. 95.
[xii] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. Cit. p. 42.
[xiii] NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios jurídicos processuais: análise dos provimentos judiciais como atos negociais. Salvador: Tese de Doutorado da UFBA, 2011.
[xiv] Ibidem.
[xv] YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual. In: CABRAL, Antônio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (org.) Negócios Processuais. Tomo 1. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. DIDDIER JR, Freddie (coord. Geral). 4. Ed. Salvador: JusPodovim, 2019.
[xvi] CUNHA, Leonardo Carneiro. Negócios Jurídicos Processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antônio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (org.) Negócios Processuais. Tomo 1. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. DIDDIER JR, Freddie (coord. Geral). 4. Ed. Salvador: JusPodovim, 2019, p. 43-78.
[xvii] YARSHELL, Flávio Luiz. Op. Cit.
[xviii] Ibidem.
[xix] Ibidem.
[xx] ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa et al. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[xxi] SILVA, José Afonso da. Op. Cit.
[xxii] CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3° ed. Coimbra; 1993.
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