O mito do não-intervencionismo ou ‘a face oculta’ do (ordo)liberalismo: notas para entender a intervenção no RJ

20/03/2018

Na opinião pública e nos cursos de Direito e Economia brasileiros, economistas como Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Joseph Schumpeter, Milton Friedman, Murray N. Rothbard, entre outros que – apesar de suas diferenças – podemos chamar, com referência em Michel Foucault, de ‘ordoliberais’, têm sido constantemente interpretados (o que não implica, necessariamente, compreendidos) e explorados como uma “nova via” (?) para analisar e tratar questões jurídicas, econômicas e - sobretudo – políticas e sociais.

A partir do patrocínio duvidoso do empresariado nacional, dissemina-se com base na “leitura” destes autores – e sob o signo ‘liberdade’ - a total submissão do direito à lógica da economia neoclássica; a restrição do conceito de direitos humanos aos direitos de propriedade, excluindo assim a força normativa de qualquer direito social ou transindividual; a absoluta rejeição do estudo de qualquer outra corrente econômica (como a marxista, a ecológica, a feminista etc.), que resta etiquetada e banida como ‘ideológica’; a redução da condição humana à de homo economicus, regido pelos axiomas da praxeologia – é como se a praxeologia fosse metafísica; e, por último, mas não menos importante: a instrumentalização completa do aparelho estatal à lógica do livre mercado.

E eles lançam mão de algumas estórias para chegar a estas propostas. Proponho expor e desmentir algumas delas, mormente as referentes às experiências de Weimar, do New Deal e do Nacional-Socialismo alemão.

Em um interessante artigo ‘Three New Deals: why the nazis and fascists loved FRD’, David Gordon comenta o livro ‘Three New Deals: reflections on Roosevelt’s America, Mussolini’s Italy and Hitler’s Germany, 1933-1939’, de Wolfgang Schivelbusch (Metropolitan Books, 2006, 242 pgs), ressaltando a tese do livro: a política econômica do new deal é uma política fascista.

Gordon destaca que Roosevelt recebeu amplos poderes do Congresso norteamericano para lidar com a Depressão ao entrar no poder em 1933. A imprensa nazista teria recebido entusiasticamente o new deal, propagando que a America, como o Reich, teria rompido definitivamente com o mercado especulativo. Nada obstante, segundo o livro de Schivelbusch, o presidente norteamericano trocava cartas com Mussolini. Antes da eclosão da Segunda Guerra, portanto, existia uma profunda admiração mútua entre Roosevelt e os ditadores da Alemanha e Itália.

O mesmo David Gordon, no artigo ‘Nazi economic policy’, defende que os registros do nacional-socialismo alemão durante os anos 1930 mostram o quão rapidamente a intervenção estatal na economia leva ao socialismo em total escala. Conta-se que quando o presidente Paul von Hindenburg apontou Adolf Hitler para Chanceler alemão em janeiro de 1933, não se sabia o que esperar da política econômica do novo regime. O partido nacional-socialista havia proposto um projeto nos anos 20 com 25 pontos, dentre os quais: abolição de todas as receitas não remuneratórias; nacionalização dos trustes; divisão dos lucros nas largas indústrias; reforma agrária de acordo com as necessidades nacionais; a ‘comunalização’ das grandes lojas e seu arrendamento aos pequenos comerciantes. Em 1932, Hitler havia demonstrado interesse em programas de criação de empregos.

Para Julian Adorney, existem milhares de lições a serem aprendidas do Terceiro Reich, dos males do totalitarismo aos perigos do racismo. Uma lição-chave econômica é que, ao invés de curar a Grande Depressão na Alemanha, o keynesianismo-militarista de Hitler em escala maciça deixou o povo alemão em situação de fome e miséria (2013). O que teria estabelecido o socialismo ‘de fato’ na Alemanha Nazista fora, assim, a introdução do controle de preços e salários em 1936, impostos como resposta ao aumento na quantidade de dinheiro na economia praticada pelo regime nazista desde a época da chegada de Hitler ao poder em 1933, diz George Reisman (2014).

As considerações dos autores trazidos à fala demonstram que, para o seu ordoliberalismo “os requisitos para a manutenção do sistema de controle de preços e salários trazem à luz a natureza totalitária do socialismo” (2014). Embora os autores citados sejam especialistas em economia ou outro domínio das ciências humanas correlato, os artigos citados não são propriamente ‘científicos’, mas jornalísticos – para não dizer publicitários. Não foi meu objetivo criticar os textos, apenas encontrar algum argumento constante ou “moral da história” destas narrativas.

A conclusão apressada que o ordoliberalismo retira é a de que a intervenção econômica governamental conduz, necessariamente, ao totalitarismo. Isto rende ao ordoliberalismo – ele mesmo o professa – o título de corrente teórica (quando não ideológica) autenticamente libertária. Em suma: a representação da liberdade. Para sermos livres, afirma o ordoliberalismo, o esvaziamento da dirigência econômica e dos direitos fundamentais sociais e transindividuais da Constituição[1] é condição de possibilidade.

Contudo, o problema do ordoliberalismo, destaca Foucault, é o de “saber como se pode regular o exercício global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado” (2008, p. 181). Isto requer, portanto, fazer o liberalismo clássico passar por uma transformação radical, consistente na “dissociação entre a economia de mercado, o princípio econômico do mercado, e o princípio político do laissez-faire” (2008, p. 182). A partir do momento em que os ordoliberais apresentam uma teoria da concorrência pura dada como uma estrutura com propriedades e lógica formais que podem assegurar a regulação econômica pelos mecanismos de preço – uma estrutura amiúde fragilizada e deteriorada pelas influências do poder público, afirmam -, e não mais um dado primitivo da natureza a redescobrir e fazer emergir, o problema da política liberal passa a ser 

o de organizar de fato o espaço concreto e real em que a estrutura formal da concorrência podia atuar. Uma economia de mercado sem laissez-faire, isto é, uma política ativa sem dirigismo. O neoliberalismo não vai portanto se situar sob o signo do laissez-faire, mas, ao contrário, sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma intervenção permanente (FOUCAULT, 2008, p. 182, grifo meu). 

Foucault em O nascimento da biopolítica trabalha sobre um texto central, o resumo das intervenções feitas no ‘Colóquio Walter Lippman’, realizado em 1939, do qual participou o próprio Walter Lippman, liberais de tradição clássica,  e os ordoliberalistas. “É neste colóquio”, diz Foucault, 

que temos Ropke, que temos Rustow, que temos Hayek, que temos Von Mises. […] É no decorrer deste colóquio que se definem […] as propostas específicas e próprias do neoliberalismo. É nele que um dos participantes […] propõe como nome para esse neoliberalismo que se estava procurando formular a expressão bem significativa ‘liberalismo positivo’. Esse liberalismo positivo e, portanto, um liberalismo intervencionista. […] E vocês encontram em todos os textos dos neoliberais essa mesma tese de que o governo num regime liberal é um governo ativo, é um governo vigilante, é um governo intervencionista, e com fórmulas que nem o liberalismo clássico do século XIX nem o anarcocapitalismo americano poderiam aceitar (FOUCAULT, 2008, p. 182-184). 

Neste colóquio, Leonard Miksch, economista alemão da escola de Friburgo, afirma ser possível que na política ordoliberal as intervenções econômicas sejam tão grandes quanto na política planificadora, mas a natureza delas é diferente. Aqui, de fato, se representa a mudança do ordoliberalismo para o liberalismo clássico, cujo problema era definir e delimitar que ações  deviam ser executadas e que ações não deviam ser executadas, “entre as áreas que se podia intervir e as áreas em que não se podia intervir”, pelo governo. Esta é uma posição muito ingênua aos ordoliberais, diz Foucault, para quem o problema governamental se resume em como mexer, como intervir – sem intervir na lógica da estrutura do mercado (FOUCAULT, 2008, p. 184).

Enquanto numa economia de bem-estar a política social “estabelece como objetivo uma relativa repartição de acesso de cada um aos bens de consumo”, no ordoliberalismo “só há uma política social verdadeira e fundamental: o crescimento econômico”. É ele quem por si só deve permitir aos indivíduos “um nível de renda que lhes possibilitasse os seguros individuais, o acesso à propriedade privada, a capitalização individual ou familiar, com as quais poderiam absorver os riscos” (FOUCAULT, 2008, p. 194-198).

Foucault desmente, assim, a tese segundo a qual o totalitarismo depende da intervenção do governo na sociedade. A intervenção governamental do ordoliberalismo não é menos densa, frequente ou ativa que a das políticas de bem-estar social destinadas a corrigir os déficits do mercado. Ela só não precisa justamente buscar corrigir estes defeitos, mas servir “para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores”. Nâo é um governo do mercado, mas que assegura o domínio da sociedade por este, sob os mecanismos de concorrência inspirados pelo ordoliberalismo. A sociedade passa, assim, do modelo do supermercado para o modelo empresarial (FOUCAULT, 2008, p. 199-204).

É falso, portanto, que o ordoliberalismo é uma corrente libertária porque prega a não-intervenção estatal. Ele apenas aspira a uma intervenção mais fundamental, que se dirige  “a campos não exclusivamente ou não primordialmente econômicos”, como o “caso da família e da natalidade [...] da delinquência e da política penal” (FOUCAULT, 2008, p. 439).

Trocando em miúdos: o ordoliberalismo possui uma outra face, nem sempre clara.

De um lado, ele é libertário – essa é a face que se mostra. Afirma que a intervenção governamental na sociedade produz um futuro necessariamente totalitário, como ocorreu nos regimes nazistas, fascistas e socialistas, responsável pela inflação e criação de mercados negros.

Por outro lado, grande parte do ordoliberais – dos quais poderíamos excluir somente (e talvez) Ludwig von Mises (tão incompreendido quanto seu algoz Karl Marx) – defende – mesmo que veladamente - uma intervenção governamental muito mais profunda que a simples econômica. Sim, o controle dos preços deve ser banido. Mas o que merece controle agora são as condições que regem a concorrência, a fim de maximizá-la. O que merece controle governamental agora é a própria vida das pessoas.

Parece urgente alertar aos novíssimos (em idade, sobretudo) entusiastas da liberdade que a intervenção governamental do ordoliberalismo não é menos densa, frequente ou ativa que a das políticas de bem-estar social destinadas a corrigir os defeitos do mercado apresentadas no Estado Social. Ela só não visa justamente buscar corrigir estes defeitos, mas servir aos mecanismos concorrenciais. Nâo é um governo de mercado, mas do mercado; que assegura o domínio da sociedade por este, sob os valores de concorrência inspirados pelo ordoliberalismo.

Os arautos da liberdade, num passe de mágica, revelam-se servos num mundo mesquinho e limitado.

A concorrência, assim deixa de reger somente o mercado, e se torna a matriz de toda a sociedade, sobrando nenhum espaço para uma autêntica cultura dos direitos humanos. A questão da intervenção federal (ou seria militar?) no Rio de Janeiro (porque só no Rio?) - apoiada por exemplo pelo MBL-Rio – ganha novas cores. Afinal, - dado que o problema da violência Brasil à fora tem muito mais a ver com saúde e educação que com fuzis e tanques - a quê(m) servirá essa intervenção do governo federal no Estado? Que vidas serão afetadas por ela? A resposta qualquer bípede com dois neurônios possui.

  

REFERÊNCIAS:

ADORNEY, Julian. Starvation and Military Keynesianism: Lessons from Nazi Germany. Mises Institute. História mundial. Tradução livre. 16 de dezembro de 2013. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em: https://mises.org/library/starvation-and-military-keynesianism-lessons-nazi-germany.

DILORENZO, Thomas. O New Deal ridicularizado (novamente). Portal eletrônico Mises Brasil. Economia. 16 de maio de 2008. Acesso aos 12 de dezembro em: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=97.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no College de France. edição estabelecida por Michel Senellart. Tradução de Eduardo Brandão; São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GORDON, David. Nazi Economic Policy. Mises Institute. História mundial. Tradução livre. 16 de dezembro de 2013. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em https://mises.org/library/nazi-economic-policy.

___.Three New Deals: why the nazis and fascists loved FDR. Mises Institute. História mundial. Tradução livre. 16 de dezembro de 2013. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em https://mises.org/library/three-new-deals-why-nazis-and-fascists-loved-fdr

NORTH, Gary. O dia em que Roosevelt e Keynes se encontraram. Portal eletrônico Mises Brasil. Economia. 26 de outubro de 2009. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=436.

CHRISTOFF-KURAPOVNA, Marcia; FRENCH, Douglas. Quando a moeda morreu na Alemanha. Portal eletrônico. Mises Brasil. Economia. 17 de abril de 2015. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2077

OHANIAN, Lee; ROQUE, Leandro. Sobre a crise de 1929 e a Grande Depressão - esclarecendo causa e consequência. Portal eletrônico Mises Brasil. Economia. 16 de junho de 2017. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2594

REISMAN, George. Por que o nazismo era socialismo e por que o socialismo é totalitário. Portal eletrônico Mises Brasil. Economia. 24 de fevereiro de 2014. Acesso aos 12 de dezembro de 2017 em: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=98.

 

[1]             Afinal, como destaca Reisman, “em qualquer tipo de estado socialista – nazista ou comunista -, o plano econômico do governo é parte da lei suprema do país” (Reisman, 2014).

 

Imagem Ilustrativa do Post: Complexo do Alemão em Guerra - Rio de Janeiro - Brasil. // Foto de: Bruno Itan // Sem alterações

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