O mito da descoberta da verdade por meio das investigações policiais

18/05/2016

Por David T. Queiroz de Souza - 18/05/2016

As práticas adotadas pela Igreja católica nos procedimentos canônicos durante o chamado período inquisitório, entre os séculos XII e XVIII, foram recepcionadas por diversas legislações laicas da Europa continental e, por influência ibérica, absorvido por países da América Latina, como o Brasil[1].

Mesmo com o declínio da inquisição, a partir do século XIX, é fácil encontrar, ainda nos dias atuais, um legado de práticas típicas do período inquisitorial na persecução penal brasileira. Basta ver que a doutrina, quase que de forma uníssona, conceitua o inquérito policial como um procedimento inquisitório e lhe atribuí características típicas do sistema processual inquisitivo, como, por exemplo, o sigilo, a inexistência de contraditório e o tratamento do investigado como mero objeto da investigação[2].

A sobrevivência da cultura inquisitorial, como consequência, deposita na investigação preliminar a expectativa e responsabilidade de extração da essência plena do fato investigado, da verdade. A ideia de verdade constitui um mito que se encontra atrelado à estrutura do sistema inquisitivo[3].

A verdade, como suporte à arquitetura inquisitória, mantem-se vigente mesmo dentro do contexto de um Estado Democrático de Direito, “o qual por excelência não deveria comportar espaço para o florescimento de sensibilidades inquisidoras”[4].

Nesse contexto, mesmo que desprovida de contraditório e com ínfima participação do suspeito, ou seja, mesmo adquirindo conhecimento sobre o fato delituoso de maneira unilateral e limitada à hipótese formulada pelo próprio investigador, a investigação preliminar ainda carrega, para muitos atores nela envolvidos, a expectativa da descoberta da verdade sobre os fatos investigados. Espera-se que por meio da investigação policial seja realizada a perfeita e plena reconstrução do passado, o que se mostra inverossímil e acaba por justificar práticas autoritárias. Entretanto, há uma inerente e intransponível limitação para a reconstrução plena do passado por meio da investigação preliminar e até mesmo do processo.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho preleciona que com o predomínio da Filosofia da Linguagem sobre a Filosofia da Consciência, mostra-se impossível, a partir da relação sujeito-objeto, chegar-se a uma verdade única. Segundo o autor seria possível chegar a parte dela, que, todavianão é o Todo e, portanto, é de outra coisa que se trata”[5]. “A verdade será na melhor das hipóteses contingencial”[6]. “Nem com magia é possível transportar a totalidade fática circunstancial aos autos. Os humanos estão desprovidos (pelo menos até onde se alcança) de poderes divinos e sobrenaturais para operar tais milagres”[7].

A ideia de que a investigação preliminar é apta a revelar a verdade é típica do sistema inquisitivo, cuja lógica esta centrada na verdade absoluta, sempre intolerante, sob pena de perder seu caráter “absoluto”[8].

Além de não haver, de forma geral, “mecanismo capaz de eliminar os inúmeros impedimentos à obtenção de uma verdade correspondente ao real, possibilitando que o historicamente verificável possa ser obtido sem qualquer espécie de deformação”[9], não se pode descurar que em um Estado Democrático de Direito as investigações para o esclarecimento de um crime devem ser realizadas de acordo com os limites estabelecidos pela lei. Assim, a verdade não pode ocupar um lugar hegemônico no processo, devido à existência de uma série de limites à atividade probatória, como a recusa da prova ilegal[10].

Certamente, a ambição de trazer à tona a suposta verdade dos fatos, somada à deletéria e fantasiosa ilusão de que incumbe à polícia resolver os problemas da criminalidade, são fatores que estimulam práticas ilícitas em nome de um suposto nobre ideal: a solução de um crime. “A obsessiva ambição de verdade legitima um poder que não conhece freios e que acaba quase que invariavelmente sendo utilizado de forma arbitrária”[11].

Imaginar a investigação concretizada no inquérito policial como apta a revelar a ilusória verdade seria o mesmo que transformar esse instrumento em uma panaceia, e o policial num messias, capaz de indicar as causas e soluções de todos os males. Como alerta Alexandre Morais da Rosa, “a tentação de ocupar esse lugar é permanente, afinal, não seria maravilhoso poder reparar o mundo, reformar as coisas, ajudar as pessoas a andarem no caminho certo e do bem?”[12]

Assim, a investigação, inexoravelmente, não representa meio hábil para se chegar à verdade do fato ocorrido, pois esta diz respeito à realidade do já ocorrido, ou seja, uma realidade histórica[13] que ao ser reconstruída, certamente ganhará nova roupagem. A verdade real é imaginária e não pode ser atingida, pois como o crime está no passado, a verdade do presente não é real. Preleciona Luigi Ferrajoli que “a verdade certa, objetiva ou absoluta representa sempre a expressão de um ideal inalcançável”[14]. “‘A’ verdade, no singular, será sempre incompleta, necessariamente contingente e dependente de referenciais (tempo, espaço e lugar”)[15].

Com a assunção do sistema acusatório, cuja busca é, precipuamente, pela eficácia do sistema de garantias constitucionais, e diante da consciência de que a verdade certa, objetiva ou absoluta representa a expressão de um “ideal inalcançável, uma ingenuidade epistemológica”[16], a ideia de que a investigação preliminar (inquérito policial) tem como fim a descoberta da verdade, deve ser enterrada.

A investigação não é capaz de trazer o tempo de volta. A investigação cria, por meio de um conhecimento construído a partir de rastros, um presente que simula um suposto e imaginário passado. A investigação produz; não desvenda o passado. O tempo que escoou se foi em definitivo, para além de quaisquer possibilidades de ressurreição. A verdade correspondente não se coloca à disposição do investigador[17].

Dessa forma, necessário se faz pensar a persecução penal desprovida da responsabilidade da “verdade”. A verdade deve ser contingencial e não fundante[18].


Notas e Referências:

[1] BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Batos, 2000. p. 363.

[2] Por todos, GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 99-100.

[3] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 580.

[4] KHALED JÚNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 11.

[5]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema inquisitório e o processo em “O Mercador de Veneza”. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.); Direito e Psicanálise: Interseções a partir de “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 155.

[6] KHALED JR, Salah H. . A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 591.

[7] GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente à constituição: deveres e limites em face do princípio acusatório. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 226.

[8] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 100.

[9] KHALED JR, Salah H. . A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 173.

[10] KHALED JR, Salah H. . A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 169.

[11] KHALED JR, Salah H. . A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 172.

[12] ROSA, Alexandre Morais da. Variáveis ocultas e efeito borboleta na decisão penal. Consultor Jurídico. Março 2014. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-mar-22/diario-classe-variaveis-ocultas-efeito-borboleta-decisao-penal. Acesso em 29.03.2014.

[13] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 281.

[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 42.

[15] ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: A prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 1.

[16] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 42.

[17] KHALED JR, Salah H. . A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 346, 347.

[18] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 120.


David T. Queiroz de Souza. David T. Queiroz de Souza é Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Pós-graduado em Direito Público. Pós-graduado em Gestão de Segurança Pública. Professor de Direito Processual Penal da Academia de Polícia do Estado de Santa Catarina e de outras instituições de ensino. Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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