O Ministro Luiz Fux nega Recurso do Procurador - Geral da República contra a decisão que anulou o processo da Operação Satiagraha

28/06/2015

Por Rômulo de Andrade Moreira - 28/06/2015

A chamada "Operação Satiagraha" deu mais um largo passo em direção à cova. O Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, negou seguimento ao recurso interposto pela Procuradoria-Geral da República contra a decisão que anulou toda a investigação por ilegalidade na coleta de provas. A decisão foi proferida no dia 24 de junho e ainda não foi publicada. Para o Ministro, "o recurso “manifestamente incognoscível”.

O pedido da Procuradoria Geral da República foi feito em um Recurso Extraordinário, cuja subida ao Supremo foi autorizada pelo Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, Fux considerou o recurso “manifestamente incognoscível” — ou seja, questões preliminares impedem o conhecimento do pedido.

O Recurso Extraordinário foi apresentado ao Supremo em 2012. Nele, a Subprocuradora-geral da República Lindôra Maria Araújo afirma que Superior Tribunal de Justiça, ao anular a "Satiagraha", “violou fortemente” a ordem jurídica, social e econômica do país “ao declarar a ilicitude das provas produzidas ao longo da operação satiagraha, sem sequer especificá-las e dimensionar o que seria, de fato, tal operação, anulando, também desde o início, a ação penal em que o banqueiro Daniel Dantas foi condenado por corrupção ativa".

Ainda em 2011, a defesa alertou para a perda de prazo para recorrer. Na época, a Procuradoria-Geral afirmou que não fora notificada da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e por isso o prazo não poderia começar a ser contado. Entretanto, o que aconteceu foi que o último a dar parecer no caso, o subprocurador Eduardo Dantas Nobre, aposentou-se, e o processo não foi redistribuído a tempo. Outra questão discutida na decisão do Ministro Fux é que o recurso trata de matéria infraconstitucional e, portanto, não pode ser recebido pelo Supremo.

Como se sabe, a "Satiagraha" foi anulada pela 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça em junho de 2011. Por três votos a dois, o colegiado seguiu o entendimento do Ministro Adilson Macabu, Desembargador convocado, segundo o qual a Polícia Federal violou princípios constitucionais durante a coleta de provas, entendendo que a convocação de agentes da Agência Brasileira de Inteligência, no caso foi feita de forma clandestina e extrapolou as funções do órgão. A Agência Brasileira de Inteligência existe para assessorar a Presidência da República e, na "Satiagraha", foi convocada informalmente pelo Delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz para ajudar a fazer escutas telefônicas e diligências.

O Superior Tribunal de Justiça também considerou nula a ação montada pela Polícia Federal, sob comando do Delegado Protógenes, com autorização do Juiz Fausto Martin de Sanctis, para provar uma suposta tentativa de suborno de um Delegado da Polícia Federal pelo investigado. A gravação da ação, em vídeo, foi feita por uma equipe da Rede Globo por encomenda do Delegado Protógenes. Além disso, constatou-se que a fita, usada como prova, foi editada.

O Delegado Protógenes também teria combinado com a TV Globo as datas em que prisões seriam feitas, para que elas pudessem ser filmadas. Por conta da manobra, a 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal condenou o Delegado à perda do cargo de Delegado da Polícia Federal e a prisão por quebra de sigilo profissional (Recurso Extraordinário nº. 680.967). Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-jun-25/fux-nega-recurso-pgr-decisao-anulou-satiagraha

Pois bem.

Antes desta última decisão, aplicando o Direito, especialmente "a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos", como afirma Geraldo Prado[1], a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por ausência de mandado judicial específico, já havia declarada a ilegalidade da apreensão, pela Polícia Federal, de computadores e o espelhamento de discos rígidos (HDs) do Banco Opportunity S/A, durante diligências das operações Satiagraha e Chacal. A decisão foi tomada na análise do Habeas Corpus nº. 106566, impetrado na Corte pela defesa do empresário Daniel Dantas. Os Ministros entenderam que as provas colhidas a partir dos HDs devem ser desconsideradas e determinaram, ainda, a imediata devolução do material apreendido à instituição financeira. A decisão unânime foi tomada nesta terça-feira, dia 16 de dezembro de 2014. No dia 27 de outubro de 2004, policiais federais cumpriam mandado de busca e apreensão expedido pelo Juiz da 5ª. Vara Federal Criminal de São Paulo no endereço profissional de Daniel Dantas, localizado no 28º. andar de um edifício comercial no centro do Rio de Janeiro. Ao serem informados que a sede do Banco Opportunity ficava no 3º. andar do mesmo prédio, os policiais comunicaram o ocorrido ao Juiz substituto, que autorizou, por meio de ofício sem maiores detalhes, o espelhamento [cópia] do disco rígido do servidor da instituição financeira.

O julgamento do caso começou na sessão do dia 09 de dezembro de 2014, quando o relator, Ministro Gilmar Mendes, considerou ilegal a diligência. Para ele, o Magistrado que despachou o caso no dia da busca e apreensão não foi alertado ou não percebeu que os equipamentos em questão estavam em local diverso do constante no mandado. “As provas obtidas pela busca e apreensão no terceiro andar do edifício da avenida Presidente Wilson, 231, no Rio de Janeiro, foram ilicitamente adquiridas, a meu ver, porque a diligência contrariou a regra constitucional de inviolabilidade de domicílio do artigo 5º, XI, da Constituição”, frisou o relator ao votar no sentido de que essas provas ilicitamente incorporadas ao processo devem ser excluídas do processo.

A Ministra Cármen Lúcia pediu vista dos autos na ocasião e apresentou voto na sessão do dia 16 de dezembro de 2014. Ao acompanhar integralmente o relator, a Ministra entendeu que procede o inconformismo da defesa quanto ao fato de a autorização do juiz substituto ter indicado endereço diverso do constante no mandado original, sem a mesma pormenorização. “Pelo que se tem nos autos, ao deferir o pedido de espelhamento do HD pertencente ao banco Oportunity, o magistrado ou não foi alertado ou não percebeu que a medida importaria em alteração daquele primeiro, especialmente em relação ao endereço e à necessidade do espelhamento ser feito na forma como foi”, concluiu a Ministra. O decano da Corte, Ministro Celso de Mello concordou com o relator. Segundo ele, mandados de busca e apreensão não podem se revestir de conteúdo genérico, nem ser omissos quanto à indicação, a mais precisa possível – a teor do artigo 243 do Código de Processo Penal – do local objeto dessa medida extraordinária. "Medidas que contrariam os comandos constitucionais e revelam-se inaceitáveis não podem merecer a chancela do STF, sob pena de subversão dos postulados constitucionais que definem limites inultrapassáveis do poder do Estado em suas relações com os cidadãos", concluiu o decano.

Como é sabido, a expressão popular acima citada significa, mais ou menos, o seguinte: "o que inicia errado acaba errado." É isso aí! Acertou o Supremo Tribunal Federal...

Aliás, buscas e apreensões ilegais, afrontando o Código de Processo Penal, os Pactos Internacionais (o de Costa Rica - art. 8º. e o de Nova York - art. 14) e a Constituição Federal, tornaram-se lugar comum em nosso País, especialmente em operações policiais "espetaculosas" e ridiculamente apelidadas.

A propósito, ainda que se faça referência especialmente aos casos de tráfico de drogas (portanto, mutatis mutandis), Ana Fernanda Ayres Dellosso e Pierpaolo Cruz Bottini, em artigo publicado no Boletim nº. 263 (outubro de 2014), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, anotaram com muita propriedade:

"As medidas de buscas e apreensões sempre ensejaram diversas discussões quanto a seus limites constitucionais, como se tem observado nos Tribunais pátrios. Entre tantas que poderiam ser tratadas, merecem contínua atenção e crítica algumas práticas policiais de buscas sem mandado judicial que parecem ter se “normatizado”, especialmente em casos de suspeita de prática do delito tráfico de drogas.Como se sabe, o art. 5.º, XI, da Constituição da República, entre os direitos fundamentais, protege a casa, como asilo inviolável do indivíduo. O mesmo dispositivo estabelece exceções ao direito fundamental. Logo, por expressa previsão constitucional, as seguintes situações autorizam a violação do domicílio, sem o consentimento do morador: (i) flagrância delitiva; (ii) necessidade de prestar socorro; e (iii) autorização judicial.No entanto, em muitos casos, policiais adentram residências particulares, sem que presentes quaisquer destas situações excepcionais, sob o pretexto de terem obtido o consentimento do morador. Ainda, há situações corriqueiras de buscas domiciliares, em que se aponta ser desnecessário o consentimento do morador e autorização judicial, especialmente em casos de tráfico de drogas, pois a situação de flagrância se protrai no tempo (a exemplo, v. acórdãos do TJSP: Ap 0017747-27.2011.8.26.0050, 15.ª Câmara de Direito Criminal, rel. Des. Nelson Fonseca Júnior, j. 07.08.2014; Ap 0018623-29.2011.8.26.0099, 10.ª Câmara de Direito Criminal, rel. Des. Rachid Vaz de Almeida, j. 14.07.2014; Ap 0000127-84.2012.8.26.0270, 3.ª Câmara de Direito Criminal, rel. Des. Cesar Mecchi Morales, j. 06.05.2014; HC 2025400-94.2014.8.26.0000, 12.ª Câmara de Direito Criminal, rel. Des. Paulo Rossi, j. 16.04.2014. V. acórdãos do STJ: AgRg no REsp 1398920/RS, rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 17.02.2014; RHC 39530/PR, rel. Min. Jorge Mussi, DJe 18.09.2013).Dessa forma, sob a alegação de que o tráfico de drogas é crime permanente ou de que houve o consentimento da pessoa investigada, convalidam-se ações policiais e provas que merecem análise mais cautelosa, pois muitas vezes são ilegais em sua origem. Frise-se a importância da discussão sobre a inviolabilidade do domicílio nessas duas situações, especialmente sob o prisma das provas ilícitas. Embora o Código de Processo Penal discipline o tema no título destinado às provas, a medida de busca e apreensão não configura propriamente meio de prova, mas meio de obtenção de prova.Mediante medidas de busca e apreensão se conservam elementos de provas, de tal forma que, se nulas as medidas, devem ser anuladas as provas obtidas por meio delas (CPP, art. 157, § 1.º).Ainda em considerações iniciais, de se ver que a busca e apreensão já inicia, em sua previsão constitucional, como medida excepcional, vale dizer, como exceção ao sistema de proteção dos direitos fundamentais, o que ganha denotada importância para interpretação e aplicação das regras processuais nos casos práticos.Posto isso, importante analisar a situação do dito “consentimento” do morador, apto a excepcionar a regra da inviolabilidade do domicílio e autorizar a busca sem mandado judicial. Sabe-se que, nas buscas domiciliares, há um conflito de interesses em jogo – a busca da verdade, para realização da justiça criminal, e a preservação da intimidade e da inviolabilidade do domicílio."

Logo, o "consentimento do morador aparece como primeira forma de solução desse conflito. No entanto, é preciso cautela na sua análise, sempre diante das circunstâncias de obtenção da prova e da atuação da autoridade policial.Como pontua a doutrina processual penal, durante o dia ou à noite, o morador pode permitir a entrada em sua casa e, nessa situação, dispensa-se mandado judicial para realização de busca domiciliar. O consentimento, porém, deve ser real e livre, despido de vícios como o erro, violência ou intimidação.Evidentemente que, em cada caso concreto, o consentimento do morador deve ser analisado com cautela e nunca presumido, especialmente para que se evitem abusos da autoridade policial. Sobre o cenário de muitos casos brasileiros, Cleunice Pitombo destaca: “Infelizmente, no Brasil e em outros lugares, em que o miúdo desconhece os próprios direitos, o abuso policial surge manifesto. A polícia invade casas e o morador, temeroso, tímido, não lhe coarcta o passo”.O TJRS recentemente destacou a invalidade do consentimento de pessoa investigada por tráfico de drogas. Na ocasião, o Desembargador relator pontuou: “Não existe previsão legal para a busca domiciliar a partir da permissão informal do proprietário. Do consentimento a que se refere o art. 5.º, XI, da CF não se infere que poderão ser realizadas buscas sem determinação judicial, apenas sob a anuência do morador. Se assim fosse, veríamo-nos diante de um quadro temerário, no qual os mandados de busca e apreensão seriam dispensáveis, já que polícia sempre poderia conseguir, extrajudicialmente, o “consentimento” do proprietário. Afinal, é de se ter em conta que, nas circunstâncias descritas nos autos esse aval foi dado sob constrangimento” (Ap 70058172628, rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, DJ 24.06.2014). Dessarte, se há o consentimento do morador para buscas domiciliares, algumas questões devem ser bem refletidas: (i) forma do consentimento; (ii) pessoa que consente e seu grau de esclarecimento sobre as implicações da medida.Sobre a forma do consentimento, deve ser expresso e jamais presumido, sendo que não há previsão legal de forma especial. Relevante destacar doutrina portuguesa que pontua a necessidade de documentação do consentimento, por qualquer forma, mesmo gravada: “Relativamente à forma do consentimento, parece-nos resultar da lei que o mesmo não pode ser dado de forma tácita, nem por via de presunção. A exigência de consentimento expresso pode retirar-se da circunstância de a lei impor obrigatoriamente a documentação do mesmo. (...). Já no que respeita à forma de documentação do consentimento, o Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Janeiro de 2000 veio pronunciar-se no sentido de que a lei processual penal não exige forma especial (pode ser verbal), bastando que o mesmo seja prestado anteriormente à busca e fique, de qualquer forma, documentado. A documentação do consentimento verbal pode ser efectuada, por exemplo, através de gravação sonora”.No tocante à pessoa que consente, deve ser aquele titular do direito à inviolabilidade do domicílio. A doutrina destaca que a permissão deve ser do próprio sujeito da medida de busca e apreensão ou de outra pessoa que possa, legitimamente, representá-lo. Ressalvas são feitas, ainda, às habitações coletivas, em que o consentimento por um dos moradores não autoriza a busca na casa ou aposento de terceiros.No entanto, maior relevo tem a questão do grau de esclarecimento do morador que consentiu na realização da busca e apreensão."

Para este impasse, ou seja, para "que se solucione o conflito de interesses – busca da verdade para realização da justiça e inviolabilidade do domicílio – por via consensual, é necessário que aquele que consente tenha pleno conhecimento das circunstâncias e consequências da realização da busca domiciliar, bem como que isso seja documentado. No ponto, não há previsão legal. Contudo, tratando-se de medida que pode implicar a produção de prova contra o próprio morador que consente com a busca, para que ele decida de forma justa e válida se franqueará a entrada em sua residência, necessário que no mínimo lhe sejam esclarecidos seus direitos e o alcance da inviolabilidade do domicílio, bem como as consequências da realização da busca domiciliar. A mesma lógica e o mesmo cuidado são observados nos procedimentos de interrogatórios, tanto judicial quanto policial, a fim de garantir o direito da pessoa de não produzir prova contra si (deriva das previsões constitucionais – art. 5.º, LVII e LXII – e consagrado do Pacto de São José da Costa Rica, art. 8.º). Nesse aspecto, surpreendem a doutrina e a jurisprudência espanhola, já sensibilizadas com a questão, ao sustentarem que o consentimento deve ser prestado em circunstâncias que garantam uma decisão consciente e ponderada pelo morador. Defendem, em resumo: “a) que o consentimento deve produzir-se em condições de serenidade e liberdade ambiental necessárias para autorizar a invasão de um direito fundamental como a inviolabilidade de domicílio; b) que, atendendo ao caráter fundamental do direito tutelado, a diligência se inicie com a informação do visado sobre o alcance do direito à inviolabilidade do domicílio e de seus limites, e com uma pergunta clara e concisa sobre se o visado tolera ou não a intromissão; c) a presença de um ‘letrado’, para garantir a autenticidade da manifestação de vontade, evitando perguntas capciosas ou sugestivas, bem como qualquer forma de coação ou ameaça; d) que entre a solicitação do consentimento e a resposta, por parte do visado, medeie um pedido de tempo suficiente para este medite com calma sobre o assunto e compreenda o significado e alcance da sua resposta”.Ao lado da questão do consentimento, importa tratar de outra situação em que muito se alega a desnecessidade de mandado judicial – a situação de flagrante delito em tráfico de drogas. Diversos julgados sustentam que, no delito de tráfico, por seu caráter permanente, há situação de flagrância que se protrai no tempo, o que autoriza ações policiais de busca e apreensão sem mandado judicial.Nesses casos, lamentavelmente, observa-se a admissão judicial irrestrita de narrativas policiais da existência de mera suspeita de tráfico de drogas, que acaba culminando em medidas invasivas, sem que se proceda à competente análise judicial.De fato, em muitas ocasiões, os relatos policiais costumam apresentar os seguintes elementos: (i) a partir de informações anônimas ou de usuários, policiais decidem adentrar determinada residência, sem autorização judicial, por haver notícia de ser local conhecido como ponto de tráfico de drogas; (ii) apreendem quantidade de substâncias entorpecentes e, algumas vezes, outros petrechos supostamente utilizados para comercialização dessas substâncias.Nesse quadro, em primeiro lugar, importa notar que a permanência ou instantaneidade do delito são características irrelevantes para convalidar a invasão do domicílio. No plano teórico, quer o crime instantâneo, como um homicídio, quer o crime permanente, diante de situação de flagrância, autorizam a invasão domiciliar. O ponto relevante para determinar a possibilidade ou não da entrada no domicílio está nos elementos do caso do concreto que permitiram à autoridade policial concluir pela situação de flagrância e relativizar o direito fundamental (CF, art. 5.º, XI). A exemplo, no homicídio pode haver gritos, enquanto no caso de tráfico de drogas, haverá muito provavelmente silêncio.A esse respeito, interessante frase de recente julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Dizer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita da prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio” (TJRS, Ap 0105880-83.2014.8.21.7000, rel. Des. Jayme Weingartner Neto, 3.ª Câmara Criminal, DJ 08.08.2014). No mesmo sentido, há julgados do TJRS que anularam buscas domiciliares, por não haver situação de flagrância apta a excepcionar a regra do art. 5.º, XI, da CF (Ap 03377639820138217000, rel. Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, j. 07.08.2014; Ap 70051270478, rel. Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, DJ 24.01.2013; Ap 70051282796, rel. Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, DJ 24.01.2013)."

E concluem: "a autorização para a violação do domicílio, nos casos de flagrante delito, depende de um estado de flagrância claro, constatado antes da invasão do domicílio e passível de demonstração posterior. As suspeitas, fundadas em relatos declarados ou ocultos, devem ser submetidas a prévia autorização judicial, mediante representação.Frise-se que, mesmo nos casos em que há autorização judicial, é ilegal a busca domiciliar excessiva, como o STF já assinalou (HC 95.009/SP, rel. Min. Eros Grau, DJe 19.12.2008).Portanto, diante do que se expôs, parece-nos que é necessária uma análise mais acurada das situações que dispensam autorização judicial para invasão domiciliar, em exceção à proteção constitucional (CR, art. 5.º, XI). Ainda que haja crime permanente, a invasão domiciliar, sem mandado judicial, diante de suspeitas de tráfico de drogas requer motivação idônea e segura quanto à necessidade, adequação e indispensabilidade da medida.Além disso, no ponto do consentimento, necessária observância de cuidados, a fim de assegurar que este seja consciente e válido. Frise-se que o consentimento não se presume e requer prova, cujo ônus é do Estado (TRF 2.ª Região, RSE 200551015058355, DJ 22.10.2008). Mais do que isso, parece-nos essencial que sejam esclarecidos, ao sujeito da medida e de forma documentada, os seus direitos, o alcance da inviolabilidade do domicílio e as consequências de sua decisão por franquear a entrada de policiais para a busca domiciliar. Trata-se de medidas mínimas para coibir abusos da autoridade policial e fazer valer um Estado Democrático de Direito."

Também sobre o assunto e os casos de reiterados abusos policiais (e também mutatis mutandis), vejamos trecho do artigo "Desconstruindo mitos: sobre os abusos nas buscas domiciliares ao pretexto de apuração do delito de tráfico de drogas", escrito por Arion Escorsin de Godoy e Domingos Barroso da Costa e publicado no mesmo Boletim, em junho de 2013 (nº. 247):

"Algumas práticas policiais normalizadas Brasil afora reclamam aprofundada crítica e contínua fiscalização, a impedir que a persistente reiteração torne-as imunes à invalidação por parte das autoridades responsáveis pelo sustento de nosso Estado de Direito. Dentre tantas que poderiam ser citadas, neste trabalho chama-se a atenção para as buscas domiciliares realizadas sem mandado judicial, sob o pretexto de se autorizarem pela situação de flagrância que se protrai no tempo no que concerne ao delito de tráfico de drogas.  Ou seja, a partir da alegação já desgastada e oca de que o tráfico de drogas é crime permanente, esquentam-se convalidam-se ações policiais que muitas vezes são ilegais em sua origem. (...) Por essa realidade, que assim se constitui a partir da reiteração incontrolada de práticas iguais e incontidas, explicita-se uma situação que se deve sempre temer, por menor e mais pontual que seja, à medida que coloca em risco todo o Estado de Direito. Diz-se da situação em que, pela atuação de agentes públicos, o poder supera o saber, e a violência conservadora do Direito estabelecido ameaça transpor os limites normativos que fazem legítimo seu emprego para a (re)afirmação do sistema que inaugura, tornando-se, assim – ao transpor os limites que se autoinstitui –, violência potencialmente destruidora da própria estrutura jurídica que a reverte para sua conservação."

Com base no pensamento de  Jacques Derrida sobre apontamentos de Pascal e Montaigne, chamam a atenção para "o chamado fundamento místico da autoridade, que remete à possibilidade de a violência originária canalizada para a conservação do Direito posto e da autoridade romper os frágeis limites que a contêm e, dessa forma, reverter-se, com todo seu potencial destruidor e caótico, contra a estrutura que a regulava.Pelas mesmas razões, pode se referir a uma dialética ao afirmar que nos subterrâneos do Estado de Direito vive em potência o Estado de polícia, que ameaça vir à tona e impor-se pela violência incontida por cada fresta que se abre à superação do saber pelo poder, o que se verifica especialmente nos casos em que a autoridade detentora da violência legítima a emprega abusivamente, em contradição às normas que lhe autorizaram o uso da força máxima justificante de sua própria autoridade.“Por isso, o Estado de Direito histórico i.e., o Estado de Direito concreto realizado no mundo – não pode ser nunca igual ao ideal, porque conserva em seu interior, encerrado ou encapsulado, o Estado de polícia, tal como Merkl observou, com grande acerto, muitos anos atrás, quando recomendava que não fossem escritos obituários ao Estado de polícia, porque ele estava bem vivo dentro do Estado de Direito. É por isso que o modelo ideal do Estado de Direito, no qual todos estão submetidos da mesma forma perante a lei, embora seja indispensável como farol do poder jurídico, não é nada além de um elemento orientador para o aperfeiçoamento  dos Estados de Direito históricos ou reais, mas que nunca se realiza plenamente no mundo. Sabe-se, outrossim, que a realização desse ideal será sempre impedida pelas pulsões que atuam para que todos estejamos simplesmente submetidos à vontade arbitrária de quem manda, que é a regra do Estado de polícia, permanentemente tentado a chegar ao Estado absoluto, ou seja, à sua máxima realização. Por isso, existe uma dialética contínua no Estado de Direito real, concreto ou histórico, entre este e o Estado de polícia."

Continuam os autores:

"O Estado de polícia que o Estado de Direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e romper os muros que o Estado de Direito lhe coloca. Quanto maior é a contenção do Estado de Direito, mais próximo se estará do modelo ideal, e vive-versa, mas nunca se chegará ao modelo ideal porque para isso seria preciso afogar definitivamente o Estado de polícia e isso implicaria uma redução radical ou uma abolição do próprio poder punitivo ”.Não são poucos e irrelevantes, portanto, os riscos que envolvem a chancela judicial irrestrita e acrítica às buscas domiciliares realizadas pela polícia independentemente de mandado judicial o que chama a atenção especialmente nas suspeitas de tráfico de drogas. Essa conivência judicial põe em risco o próprio Estado de Direito.Sabe-se que o flagrante autoriza a violação de domicílio, mas essa relativização do direito fundamental previsto no inc. XI do art. 5.º da Constituição não significa abertura a ações policiais que mais se assemelham a apostas lotéricas, em que o prêmio dependente da sorte do jogador é o encontro de indícios da prática de tráfico de drogas e a consequente prisão de quem possa ser seu autor. (...) Porém, como em um passe de mágica juridicamente insustentável, por uma convalidação judicial, a apreensão de objetos ou substâncias que sejam proibidos ou indicativos da prática de crime e a prisão daquele(s) a quem pertença(m) travestem de legalidade uma ação essencialmente e originariamente violadora de direito fundamental. (...) A intenção de incriminar alguém ou a possibilidade de sofrer as mais diversas sanções em razão do abuso na invasão de domicílio são apenas dois dos múltiplos fatores que podem determinar a produção artificial de circunstâncias que, se reais fossem, ensejariam a convalidação da ação, ante a constatação de uma situação de flagrância. Tratando-se de ação autoexecutada sem prévio controle judicial, nada mais simples em termos logísticos do que plantar papelotes, plásticos, notas de pequeno valor, aparelhos de telefonia celular e alguma quantidade de droga. E ainda que não se presuma má-fé ou dolo, certo é que más práticas, ainda que movidas pelas melhores intenções, estão arraigadas em nosso cotidiano policial e mesmo judicial. (...) Caminhando para o encerramento, é, portanto, fundamental salientar que o que autoriza a invasão domiciliar é tão somente a flagrância escancarada, passível de demonstração posterior. Suposições ou suspeitas, ainda que fundadas e baseadas em investigações prévias declaradas ou ocultas, devem ser submetidas ao prévio crivo judicial. E o fundamento é evidente: a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Afinal, como bem assentou o Desembargador Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, a “lei não permite atalhos” e, se diferente fosse, a residência não seria asilo, nem inviolável (TJRS, 70051270478, j. 13.12.2012). Nessas circunstâncias, os abusos repetem-se e reclamam pronto controle, para que a violência criminosa não mude de mãos e se institucionalize a ponto de fazer ruir o Estado de Direito, realizando mais uma vez o pesadelo do Estado de polícia. Por isso são tão válidos e sempre atuais os pensamentos aqui abordados de Derrida e Zaffaroni, ao alertarem para o cuidado que se há de ter em relação aos mínimos abusos por quem detenha autoridade. E, diante dos riscos que representam tais abusos especialmente quando institucionalizados, já é hora de se reconhecer que, ainda que seja crime permanente, a invasão policial de um domicílio sem mandado judicial ante a suspeita de tráfico de drogas requer motivos comprováveis e motivação segura no que tange à necessidade, adequação e urgência da medida. Do contrário, criminosos são os agentes policiais."

Aliás, a busca e apreensão indevida em residência como se o local fosse uma "boca de fumo" por erro na constatação do endereço é uma mácula à intimidade e à honra das pessoas que moram no local. A afirmação é da 5ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que manteve sentença que condenou o estado a indenizar um casal que teve sua residência invadida indevidamente por policiais militares. Cada um receberá R$ 20 mil por danos morais.Os policiais militares estavam cumprindo um mandado de busca e apreensão para confiscar entorpecentes e produtos de roubos e furtos. Porém, eles entraram em um imóvel diferente do apontado no documento, fazendo a busca indevida na residência do casal, que entrou com a ação pedindo indenização.Após ter sido condenado em primeira instância, o estado recorreu alegando que não foi comprovado o dano moral. Além disso, afirmou que o ocorrido não é causa suficiente para ocasionar dano, “pois os policiais não agiram com excesso ou abuso e estavam atuando no estrito cumprimento do dever legal”. O Estado alegou ainda que a abordagem e detenção nessas circunstâncias não podem nem devem gerar indenização, sob pena de se inviabilizar a própria atividade policial investigativa. Ao analisar o caso, o relator, Desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, concluiu que o dano é evidente. Para ele, apesar de o estado alegar que os policiais estavam cumprindo seu dever legal, não há como negar a existência do ato ilícito, porque houve erro no cumprimento do dever.“Evidentemente, a busca e apreensão indevida em residência como se o local fosse 'boca de fumo' por erro na constatação do endereço consiste em mácula à intimidade e à honra das pessoas que moram no local, representando, pois, sofrimento na alma, no espírito, abalo insuscetível, portanto, de comprovação, bastando a demonstração do ato ilícito para ensejar a indenização por dano moral”, registrou o juiz em sua decisão (Processo 0801859-33.2013.8.12.0008). Fonte: Consultor Jurídico - Acesso em 28 de outubro de 2014, 16h26.

A propósito, diante das controvérsias surgidas quando das diligências efetuadas pela Polícia Federal em dois gabinetes da Câmara dos Deputados, autorizadas por Ministro da Suprema Corte a pedido do Procurador-Geral da República, afirmou, em nota, o então Presidente, Ministro Gilmar Mendes:

"Cumpre esclarecer que: a) a ordem de busca e apreensão fez-se à luz dos procedimentos de praxe, estando respaldada inteiramente pelas boas práticas do devido processo legal; b) entre as expressas cautelas ressalvadas no cumprimento da decisão, o ministro determinou, primeiramente: I) Ciência prévia, mediante ofício, do Exmo. Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, cuja presença será facultada no acompanhamento das diligências em todas as dependências da Câmara; II) Para evitar repercussões inúteis, mas danosas ao prestígio das instituições e, até, ao bom sucesso das operações, estas devem ser realizadas, de preferência, antes do horário de início do expediente e pela autoridade ou autoridades e agentes policiais descaracterizados, sem informação prévia à imprensa e com toda a discrição que comporte a realização das diligências; Tais excertos demonstram às escâncaras o respeito absoluto aos preceitos constitucionais e processuais compatíveis com o pleno Estado Democrático de Direito vigente no país, restando bem preservada a relação institucional entre os Poderes da República."

Aliás, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal anulou sentença do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou S.A.C.V. por vários crimes de estelionato e falsificação de documento particular, em concurso material. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 90376. O relator do caso, Ministro Celso de Mello, contou que as provas consideradas ilícitas pelo Juiz de primeiro grau da 19ª. Vara da Comarca do Rio de Janeiro foram colhidas pela polícia quando S.A.C.V. estava sendo preso por outra condenação. Para o ministro Celso de Mello, o Juiz de primeiro grau deixou explícito que agentes policiais invadiram o quarto de hotel de S.A.C.V. contra a vontade dele, quando estavam cumprindo um mandado de prisão expedido por motivo de outro processo condenatório. Entretanto, tal mandado de prisão não viabilizaria a busca e apreensão de objetos que se encontravam no apartamento e que serviram de prova em processo criminal. Ao prover o recurso constitucional, Celso de Mello citou princípio constitucional segundo o qual as provas obtidas por meios ilícitos devem ser repudiadas pelos tribunais por mais relevantes que sejam os fatos por elas apurados (inciso LVI do artigo 5º. da Constituição Federal), uma vez que contaminam a ação penal. Fonte: STF (03/04/2007).

Certa vez, durante um debate acadêmico, perguntado se poderia o Juiz decretar a busca e apreensão de documentos alocados em um dispositivo eletrônico, consignando que o seu cumprimento deva ocorrer por meio da utilização de um malware, assim respondeu Luiz Augusto Sartori de Castro:

"Na ocasião, ainda sem muito refletir sobre o tema, respondi negativamente, pois não se mostraria crível conferir legitimidade a uma ação – disseminação de malware com o fim de acessar dispositivo eletrônico – cuja prática não é recomendada pela Convenção de Budapeste (esta expressamente sugere que ela seja obstada), embora o Brasil não seja um de seus signatários. À época não vigorava em nosso ordenamento jurídico a Lei 12.707/2012 (Lei Carolina Dieckmann), que, ao acrescentar ao Código Penal o art. 154-A, tentou criar – mesmo que pecando na técnica – um tipo penal que criminaliza o acesso a sistemas computacionais mediante violação indevida de mecanismo de segurança (tal como ao utilizar um malware), bem como a disseminação destes a qualquer título. Passados alguns meses deste debate – donde restou prejudicado o aprofundamento do tema dado o contexto em que se inseria – e procedendo a uma análise mais acurada a este respeito, concluí que, de fato, a realização de uma busca e apreensão em um dispositivo eletrônico por meio da utilização de malwares seria absolutamente ilegal. (...) Conforme cediço, a busca e a apreensão, embora possuam natureza jurídica diferente, em suma, são ´em nosso direito processual penal, meio de obtenção de prova, de natureza acautelatória e coercitiva, consubstanciado no apossamento de elementos instrutórios, quer relacionados com objetos, quer com as pessoas do culpado e da vítima, quer, ainda, com a prática criminosa que tenha deixado vestígios´. Com efeito, segundo dispõe o art. 240 do CPP, existem duas modalidades de busca e, consequentemente, de meios para se apreender a prova desejada, quais sejam, a domiciliar e a pessoal. Ambas as modalidades, não se nega, impõem a expedição de mandado judicial para viabilizar o seu cumprimento, posto ser inegável que estas, levadas a efeito, restringem garantias fundamentais, a saber, aquelas previstas no art. 5.º, III, X e XII, da CF. É bem verdade que o próprio Código aceita a possibilidade de se proceder à busca e apreensão sem a expedição do competente mandado judicial, ex vi os arts. 244 e 245 do CPP. Contudo, como se viu, trata-se de verdadeira exceção, somente aceita em casos específicos e, ainda assim, mediante obediência a certas condições, sob pena de se macular a busca e, consequentemente, a apreensão com a pecha da nulidade. Cite-se, a esse respeito, a possibilidade de se proceder à busca e apreensão domiciliar sem o mandado judicial, notadamente quando o seu morador permite a entrada do executor da medida no local para a realização desta. Nestes casos, contudo, como bem adverte Cleunice Bastos Pitombo, a anuência ´há que ser real e livre. O consentimento deve ser expresso. Inadmissível a simples autorização tácita, a menos que de modo muito inequívoco se possa constatá-la, seja pela prática de atos de evidente colaboração; ou de ostensiva não oposição à entrada. Ocorrendo dúvida, melhor entender que inexistiu o consentimento, pois ele não se presume´. No mesmo sentido é a exigência do próprio Código de Processo Penal para o cumprimento de mandado de busca e apreensão, em especial os parágrafos de seu art. 245. A este respeito, impende, novamente, citar a lição de Cleunice Bastos Pitombo ao advertir que o executor da busca (autoridade judiciária, policial ou seus agentes), antes de iniciá-la, deve: (1) declarar a sua qualidade e objetivo da diligência (art. 245, § 1.º, do CPP); (2) exibir e ler o mandado de busca, tirante a autoridade judiciária; (3) intimar o morador: (a) abrir a porta (art. 245, caput) e (b) mostrar o que se procura (§ 5.º). Tal forma de proceder é de extrema relevância para validade do ato procedimental. O cuidado importa, também, a polícia, à polícia judiciária. Dessa forma, como conclui a citada autora em sua primorosa obra sobre o tema, “o morador deve, previamente, saber quem pretende entrar-lhe na casa e qual o objeto do varejamento”, não podendo “a autoridade ou agente entrar em casa alheia e iniciar a procura sem oferecer a oportunidade ao morador de exibir e entregar ou apresentar a coisa procurada, sob pena de invalidar a busca, conclui a autora. Como se vê, assim, para que uma busca e apreensão seja considerada válida, mister se atentar para diversos requisitos, não apenas relacionados à fundamentação da decisão judicial que expede o mandado como também àqueles de ordem prática, que dizem respeito ao seu cumprimento. E daí o porquê de assentar pela ilegalidade da realização de busca e apreensão tendo como meio a utilização de um malware. Registre-se que, como já aqui exposto, nestes casos, diversamente do quanto ocorre nas tradicionais buscas e apreensões, dar-se-ia azo à possibilidade – para não dizer regra – de se executar a medida de maneira velada, sem a ciência do acusado. Ter-se-ia, em referida hipótese, a insólita situação de o acusado sofrer uma busca e apreensão em seus dispositivos eletrônicos sem nunca ter ciência de sua ocorrência ou, ainda e, mais grave, não ter ciência do conteúdo analisado pelos agentes executores, que por certo somente consignariam em auto próprio aquilo que eventualmente viesse a ser apreendido/copiado. Em consequência, teria o acusado e seu defensor que conviver com a dúvida acerca do quanto de informação de seu dispositivo eletrônico tornou-se de conhecimento das autoridades. Sim, porque a depender do grau de sofisticação do código malicioso, a sua detecção torna-se quase impossível aos antivírus e demais programas dedicados a combater a ação desses programas."

 Ora, diz o autor, "trata-se, sem titubear, de rematado absurdo. Admitir que assim se proceda configura violenta infração a direitos fundamentais, na medida em que estar-se-ia negando a garantia da ampla defesa e do contraditório. Seria o mesmo que retroagir aos regimes ditatoriais, em que os algozes dos acusados escondiam provas sorrateiramente, justamente para neutralizar suas defesas. Hoje, porém, o Pretório Excelso já sedimentou que quod non est in actis, non est in mundo. Como orienta a melhor doutrina, as garantias do ‘devido processo legal’ não admitem prova secreta, sendo aberrantes e inconstitucionais disposições que assim determinarem.Isto para não dizer que, ao se conceber que uma busca e apreensão seja realizada sem o conhecimento do acusado, abre-se margem para que provas sejam coletadas, sem que sejam consignadas em termo próprio, ficando a sua utilização a cargo do acusador, ferindo de morte o princípio da paridade de armas. Some-se a tudo isso, outrossim, que o eventual aceite desse meio de busca e apreensão, sem qualquer dúvida, mitigaria do princípio da não autoincriminação, cuja origem, como cediço, remonta à Quinta Emenda que compõe o Bill of Rights norte-americano, de 1791, baseando-se no fato de que ninguém será constrangido a confessar a prática de crime ou produzir prova contra si próprio. Vale salientar que atualmente a garantia contra a autoincriminação já está consagrada como elemento do devido processo legal (Suprema Corte dos Estados Unidos da América, Miranda vs. Arizona, 1966). Aliás, o conteúdo em comento é texto literal do art. 8, 2, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, e, sendo assim, equivale, nos termos do art. 5.º, parágrafos 2 e 3, da Carta Magna, a emendas constitucionais, sobrepondo a qualquer interesse processual secundário entabulado no Diploma Penal Adjetivo. Diga-se isso pois, como explicitado no “item 2” do presente, em razão de inexistir meio de um malware infectar um sistema eletrônico sem que o seu legítimo usuário, de algum modo, ainda que inconsciente, permita, resta mais do que evidente que permitir a busca e apreensão por meio de código malicioso faz letra morta o princípio da não autoincriminação. Isso mesmo, pois como bem pondera João Cláudio Couceiro, “o direito ao silêncio integra um direito maior de todo homem a não colaborar na produção de qualquer prova que procure prejudicá-lo. (...) e não tem o juiz o poder de determinar a realização do ato contra a vontade do acusado”.E nem poderia ser diferente, já que, como advertido por Cleunice Pitombo, a colheita da prova na busca e apreensão, embora prescinda da presença do acusado, caso seja necessária a sua ação (anuência), não pode ser obtida senão de modo voluntário e consciente deste. Veda-se, por conseguinte, o uso de meio fraudulento ou artificioso visando reduzir a percepção do acusado quanto à efetiva realidade dos fatos, justamente o que ocorre quando se usa um malware para propiciar a realização de uma busca e apreensão. É que os códigos maliciosos são sempre escamoteados, e.g. em e-mails, links etc., sem alardear a sua existência, até porque, do contrário, infere-se que, se o acusado conseguisse ter a certeza de que o acesso ao e-mail ou link fosse propiciar o meio para que se procedesse uma busca e apreensão em seu dispositivo móvel, este possivelmente agiria de modo diverso."

E, conclui: "inexiste espaço em nosso ordenamento jurídico para sequer cogitar a realização de uma busca e apreensão em dispositivos eletrônicos por meio de malwares, na exata medida em que aceitar o contrário coloca em xeque toda a lógica constitucional das garantias do acusado no processo penal, resumindo-as a letra morta, algo inconcebível em um Estado Democrático de Direito como o Brasil, que inclusive as eleva a cláusulas pétreas. (Boletim do IBCCRim – Ano 21, n. 251, outubro de 2013)

Veja-se que o Superior Tribunal de Justiça não chancela a demora o excesso na medida cautelar; neste sentido:

“Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº. 21.453 - A medida de busca e apreensão atende, no presente caso, aos requisitos legais que disciplinam sua realização (art.240 e seguintes do CPP). Contudo, há que se reconhecer que a medida excede prazo de duração recomendável, pois realizada há mais de 7 (sete) anos, sendo que não foi deflagrada, até o presente momento, ação penal referente aos fatos em apuração.II - O princípio da razoabilidade, vetor constitucional, embora implícito no texto magno, recomenda que situações como a presente não sejam chanceladas pelo Poder Judiciário, pois se mostram desarrazoadas e divergentes do Estado de Direito.Recurso ordinário provido.”

Comentando a respeito das medidas cautelares aplicadas à investigação dentro do sistema integral de direito penal e, mais propriamente acerca da busca e apreensão, Jacson Zilio, afirma:

"Esta cautelar tem função importante na configuração do conteúdo do processo, já que na maioria das vezes pode servir de forma fundamental para a colheita de elementos de prova. Mas uma questão problemática surge aqui. É verdade que o delito de posse de objetos ilícitos é sempre crime permanente e que, em razão disso, é possível efetuar a prisão em flagrante independentemente de autorização judicial. Nessa linha de raciocínio, se o crime está ocorrendo dentro de uma residência, a autoridade policial e até o particular podem fazer cessar tal delito, mesmo que sem autorização judicial. Trata-se, portanto, de um argumento que permite relativizar o direito individual de inviolabilidade do domicílio. Tal ensinamento, muito citado pela jurisprudência brasileira, parece consequência básica da natureza dos tipos permanentes, que se prolongam no tempo e que mantêm constantemente o bem jurídico sob ameaça ou lesão. Entretanto, tais conclusões não são tão óbvias e lógicas quanto parecem. É que, se forem levadas ao extremo, podem banalizar o direito individual de inviolabilidade domiciliar previsto no inciso XI do art. 5.º da CF. Como asseverou o ex-ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do HC 76.336-0-SP, a licitude de uma invasão de domicílio não pode ficar na dependência do êxito ou não da diligência que se resolva empreender. É dizer: a entrada no domicílio não pode, de forma alguma, converter-se num jogo de sorte ou azar. Ademais, tal fundamento é extremamente perigoso, porque pode levar a permitir que particulares assumam funções públicas de polícia, ingressando em domicílios alheios, sempre que “desconfiarem de algum delito”. E se nesse jogo resultasse a sorte, encontrando algo que configurasse um tipo permanente, toda essa ação absurda seria considerada legítima. Também as ações da própria polícia nesse sentido podem subtrair o poder que é apenas do juiz, de relativizar, com controle e fundamentadamente, o acesso aos domicílios privados. É evidente que tal posição extrema ofende o sentimento de justiça e a tranquilidade social que deve proteger a norma. A banalização do direito individual de inviolabilidade domiciliar pela radicalização do discurso fundado na ideia de tipo permanente configura um dos mais graves ataques ao Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual deve o Poder Judiciário tomar partido nessa solução. Uma interpretação conforme a Constituição do inciso XI do art. 5.º da CF só é possível como já fez o STF no HC 76.336-0-SP, da seguinte forma: se é verdade que qualquer um do povo pode efetuar prisão em flagrante, somente o agente do Estado pode efetuar busca e apreensão, assim mesmo desde que munido de mandado judicial se a medida de natureza cautelar tiver que se efetivar dentro de casa em situação de não urgência. Em suma, a busca e apreensão tem, sempre, que se pautar dentro dos parâmetros do devido processo legal, o que permite concluir que, havendo tempo hábil para buscar a prestação jurisdicional da flexibilização do direito constitucional de inviolabilidade do domicílio, não se pode admitir o ingresso ali nem mesmo da polícia. No corpo dessa decisão consta como fundamentação uma decisão interessantíssima do TJSP, da lavra do Des. Dante Busana, que considerou como prova ilícita a buscar domiciliar realizada por Delegado de Polícia sem mandado judicial, mesmo que, como no caso, o resultado tenha sido deveras significante: na ocasião concretamente narrada, o Delegado de Polícia, que ingressara na residência, insuflado por telefonemas anônimos que davam conta de tráfico de entorpecentes, efetivamente apreendeu maconha e cocaína. No julgamento mencionado, o TJSP asseverou corretamente que não podia, assim, entrar na casa a pretexto de fazer cessar o crime e prender o seu autor e muito menos, para investigá-lo e prová-lo, mercê de busca não autorizada judicialmente.Trata-se aí de prova ilícita, que viola cláusula constitucional due process of law, pois colhida com violação das normas e princípios da Constituição e das leis, que são criadas para proteção das liberdades públicas e dos direitos da personalidade. Assim, não havendo cumprido a regra da necessidade de mandado judicial, mesmo em se tratando de crime permanente, tudo que fora produzido decorre da transgressão à garantia constitucional prevista no inc. XI do art. 5.º da CF. Tal ilicitude traduzida na apreensão de drogas e arma de fogo nas residências contamina todos os atos posteriores, como expressão da teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), firmada e desenvolvida na prática jurisprudencial da Suprema Corte dos EUA.. Enfim, não se quer questionar a crença numa investigação eficiente e que respeite as garantias e os direitos fundamentais. Esse tipo de investigação pode se valer das medidas cautelares existentes, sem quebrar as bases do Estado de Direito. Quando o Estado de Direito responde às demandas delitivas com os seus aparatos legítimos, dentro da normalidade de suas leis e suas instituições, mostra que entre quem viola a lei e quem a faz cumprir há uma fronteira ética que os separa. Como disse o Lord Nicholls de Birkehhead, quando a Câmara dos Lordes inglesa analisou a lei antiterrorista patrocinada pelo governo conservador de Blair, que permitia a prisão sem limite temporal de estrangeiros suspeitos de terrorismo, “a verdadeira ameaça para vida desta Nação, entendida como um povo que vive de acordo com suas tradições e seus valores políticos, não vem do terrorismo, mas sim de leis como esta”. Entretanto, se as circunstâncias processuais mostram desrespeito às regras do jogo preestabelecidas, então elas devem ser incluídas na categoria do injusto culpável e merecedor de pena, no injusto culpável e necessitado de pena e nas causas de exclusão da pena. Como medida de Justiça, essas graves intervenções ilegítimas podem excluir ou reduzir a culpabilidade do autor, dentro de uma visão integral do sistema de direito penal."

Ademais, “a finalidade da apreensão deve ser bem definida, ou seja, o objeto deve ser relevante ou imprescindível para a elucidação, prova ou mesmo defesa do réu." (Tribunal Regional Federal da 1ª. Região - Apelação nº. 2004.36.00.002911-8/MT (DJU 17.06.05, SEÇÃO 2, P. 37, J. 24.05.05).

Para concluir, conta-se que por volta do ano de 1340, o sucessor da Coroa Portuguesa, D. Pedro I, filho do Rei Afonso IV, se enrabichou com a dama de companhia de sua esposa. O nome dela era Inês de Castro. Como os pais do futuro soberano lusitano não aprovaram a diversão amorosa do filho, mandaram Inês para longe da corte, confinando-a em um castelo perto da Espanha. E para aumentar o drama, a esposa de D. Pedro I, Constança, morreu em 1345. O Príncipe, saudoso das carícias da antiga amante, desobedeceu ao Rei e mandou buscar Inês de Castro, que ficaram juntos por mais de dez anos (tiveram, inclusive, quatro filhos). Nada obstante "a união estável", o Rei mandou três de seus conselheiros matarem Inês e a prole. D. Pedro I, apesar de irado, conformou-se. E assim se passaram mais dois anos, quando o Rei Afonso IV morreu. A partir daquele momento, o Príncipe havia se tornado o Rei de Portugal. Um de seus primeiros atos foi mandar matar os assassinos de sua amada (um deles conseguiu fugir). Logo depois, desenterrou o corpo decomposto de Inês e a posicionou no trono, obrigando toda a corte lusitana a beijar a mão da Rainha. D. Pedro I, finalmente, havia feito justiça (exercício arbitrário das próprias razões?), mas isto não adiantava para trazer Inês de volta a vida.

Daí vem a expressão “agora a Inês é morta”, como referência à solução de uma situação, cujo desastre já aconteceu e, portanto, de nada mais serve, ainda que eivado de boas intenções. Serve, portanto, para que, doravante, a Polícia obedeça a lei quando realize uma busca e apreensão, pois se corre o risco de, ao final, todo o trabalho realizado "virar água" ou "dar em pizza".


Notas e Referências:

[1] Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos, São Paulo: Marcial Pons, 2014.


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Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.                                                                                   


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