Por Carla Joana Magnago - 13/08/2016
Chegou a hora de o machismo descer do pódio.
A todos os Rica Perrone do Brasil.
"Não é machismo, é alvo do rumo natural das coisas" disse Rica Perrone em artigo publicado em seu blog esta semana na tentativa de (se) explicar a respeito da subvalorização das mulheres no esporte.
É o que também diziam na época em que não podíamos votar, era a realidade. No período escravagista comprar negros e tratá-los como animais também era natural. Na Alemanha nazista da raça pura ariana, os campos de concentração eram naturais. Nas prisões da Europa e do Brasil de Lombroso, era natural condenar e punir pelo julgamento “biológico”, em vez de jurídico. Qualquer cultura discriminatória, misógina, racista ou preconceituosa é sempre a realidade enquanto vige.
Pior: ao tratar como “natural”, valendo-se de argumentos biológicos deterministas, faz-nos crer que sempre foi assim e sempre será, dando contornos de imutabilidade a discursos que são puramente construídos. São dogmas criados às custas da submissão e marginalização dos únicos indivíduos que poderiam questioná-los, e se rompem justamente quando alguns ousam desobedecer as forças políticas e econômicas e transpor os pactos sociais vigentes – então “eternos”. É o caso da mulher hoje, que não mais se cala, que não tem como única função de vida possível ser mãe ou esposa, dona de casa, enfim.
Afirmou ainda o colunista que relacionar o abismo entre os baixos salários das mulheres e dos homens no esporte é “sem noção”, sendo tal referência realizada normalmente por pessoas que se fazem de burras para parecerem engajadas.
Acontece que, às vezes, ou muitas, as pessoas se fazem de burras para terem milhões de acesso em seus sites, onde escrevem milhares de linhas sobre assuntos que nunca leram nenhuma.
As leis do mercado não obedecem às demandas humanas, a escravidão não acabou porque os senhores de engenho pararam de procurar por escravos para comprar. A procura ou a evasão em relação a certos serviços não respeitam vontades sociais, mas imprimem isso na população. O sistema capitalista não respeita vontade humana alguma, mas atribui vontades, impõe necessidades e, sendo um sistema político e econômico também machista nada mais coerente do que estruturar-se de tal forma.
Todos queremos que nossos atletas ganhem o ouro, sabemos que em várias modalidades femininas isso está, hoje, mais palpável, vide que a única medalha dourada do Brasil foi ganhada por uma mulher. Mesmo assim, continuamos a depositar a torcida prioritariamentenos homens: Simone Biles, a gênia da ginástica, precisou lembrar à mídia, sem margem para dúvidas, que mulheres têm seu próprio brilho, “não sou a próxima UsainBolt ou Michael Phelps, sou a primeira Simone Biles”. Não há racionalidade suficiente que justifique esse comportamento, é machismo, impregnado e alimentado por sistemas políticos e econômicos.
O machismo no esporte não se inicia ou tem seu fim nos salários das atletas, passa pela torcida também. “Mas você é mulher e gosta de futebol, então me diga o nome de cada jogador da seleção?” perguntam os homens que sempre, numa discussão sobre futebol, têm passe livre para proferir qualquer imbecilidade e ser o pior entendedor do assunto, enquanto a mulher é sempre sabatinada por simplesmente gostar do esporte.
Nós estamos sendo sabatinadas há séculos. Há muito nos perguntam, em outras palavras “mas você é mulher, por que acha que pode fazer o que eu faço? Você vai ter que me provar que é tão boa quanto eu!”.
Hoje isso está mais que provado, mas parece ainda não ser o suficiente. Na sociedade machista uma mulher nunca é suficiente, nem mesmo quando ela ganha medalha de ouro. Ainda tem dúvidas? Basta olhar os dados mais recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo os quais o Brasil ainda remunera suas mulheres em 30% menos do que os homens, ainda que elas tenham a mesma (ou até superior) qualificação e formação.
Rica Perrone afirma que não há machismo na diferença de tratamento, salário e reconhecimento das mulheres e que tudo isso tem um valor estabelecido pela procura.
O Iraque tem hoje mais mulheres na política do que o Brasil, não é porque não votamos em mulheres, não é porque não estamos demandando, acabamos de eleger uma para a presidência[1]. Talvez muitos não se lembrem dela porque acabamos de sofrer um golpe de estado, por um homem, inclusive. Uma mulher ser ouro nas olimpíadas não é o bastante para que seu salário seja igual ao dos homens. Uma mulher na presidência não foi aceita, mas como primeira dama parece perfeito.
Nós estamos demandando há muito tempo e, quem nos dera, uma camisa da Marta fosse a maior das exigências das mulheres no Brasil. Nietzsche, em “Assim falou Zaratustra”, disse que “aqueles que foram vistos dançando foram taxados de loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música”. Rica, talvez minha burrice seja falta da (sua) capacidade de assumir enxergar o machismo.
Notas e Referências:
[1] Presidenta, inclusive, que, após firmar compromisso com a jogadora Marta, assinou a Medida Provisória 671/2015, que expressamente exigiria como contrapartida para o refinanciamento das dívidas dos clubes brasileiros o investimento nas categorias de base e no esporte praticado pelas mulheres. Curiosamente, os clubes se endividam justamente pagando milhões aos “meninos de ouro”, que supostamente têm exorbitantes salários por, vejam só, darem retorno aos clubes, pela “elevada procura”. A conta não fecha, não é mesmo? Mas há quem a utilize para parecer engajado.
. . Carla Joana Magnago é Advogada Criminalista. . . .
Imagem Ilustrativa do Post: Medalha de ouro para o Brasil // Foto de: Ministério de Defesa // Sem alterações
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