O longa “The Menu”: Gastronomia sem convicção esconde uma violência própria, ácida e explosiva

13/01/2023

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Assisti ao filme “O menu”, sob a direção de Mark Mylod, e saí da sala de cinema com algumas questões, relacionadas ao prestígio da “alta cozinha” e da autenticidade como experiências de valor estético. Durante o filme, me chamou atenção o investimento nos simbolismos, e de como a exclusividade da técnica formavam um meta-discurso sobre a comida. No filme, todas as decisões sobre a execução do jantar — até a demarcação dos lugares à mesa — são encarregadas ao cheff Wlowik. Ele detém a imaginação de tudo que passa pelo Menu, ou seja, o controle de tudo que acontece, antes e depois, reverenciam a sua autoridade. O chefe também faz o ajuste de expectativas do público usando o recurso do Storytelling, e, desta maneira, consegue arrancar conexões emocionais preparando o paladar dos convidados ao inesperado, além de antecipar a sensibilidade de todos antes de cada prato. 

No início do filme, uma certa sensação de improviso gera estranheza entre os convidados — algo que eles, adiante, não imaginariam como parte do prato principal. O entusiasmo, a decepção, o prazer e a dor também são representados como “condimentos existenciais”, que parecem perder o sentido e a validade, quando deixam de inspirar fortes emoções; tanto em quem come quanto em quem prepara.

Noutros termos; a razão crítica sobre a gastronomia se assemelha ao mercado da arte. A criatividade, não raras vezes, convive com o abuso profissional de quem trabalha em uma cozinha de alto requinte, bem longe do estado de glamour. Tudo isso está, intimamente, voltado ao consumo e ao hedonismo de classe. No filme, a sofisticação percebida pelo público não é a de apreciar boas ideias, reunindo técnicas e texturas aos alimentos. O elemento contemporâneo ali representado é o da exclusividade do espetáculo, que custa muito mais do que oferece. Assim, a sofisticação abusa do valor da boa comida.

No filme, tudo passa em uma ilha isolada do continente, onde todos os insumos são cultivados pelos próprios trabalhadores locais, em uma espécie de “refúgio alimentar”. A equipe de cozinheiros é quem executa as criações decepcionantes do cheff. Eles são treinados a obedecer a preferências por mantimentos frescos e com muitas etapas de preparação. O resultado é algo sem afeção, pois versa sobre a experiência conceitual do sabor, como algo que deve ser dominada pelo visual artístico-contemporâneo. Ou seja, é a visão que se sobressai entre as demais percepções dos sentidos. A verdade é a de que o sobre-excesso dessas substituições e releituras desnecessárias, nem sempre são bem-vindas ao público — os quais são quem verdadeiramente importa! Isso fica evidente quando deixam de oferecer certos alimentos por serem, demasiadamente, tradicionais. Não oferecer qualidade, como tendência de mercado, é uma proposta esnobe e, em alguns casos, é usado como justificativa para disfarçar a má qualidade técnica utilizada no preparo ou no serviço.

A exaustão criativa na gastronomia é um sintoma rendido pela exclusividade narcísica da clientela, e pelo poder de compra do seu dinheiro. Não há aberturas às necessidades orgânicas do público, que teme demonstrar toda a sua rejeição às escolhas do cheff. A nutrição é outro fator que se torna obsoleto, deixando de incorporar benefícios ao que comemos. À primeira vista, os pratos não são nada agradáveis ou apetitivos, porque fazem parte de um roteiro de hipervisibilidade nas redes digitais.

 A cozinha se mostra um lugar robótico, onde não há pausas para a afetividade. O Menu traz uma inspiração frígida e ácida, exigindo um olhar contemplativo sobre a angústia e a depressão (burnout) vivenciada pelo cheff e sua equipe. O conflito fundamental delata ‘o ritmo do desempenho’ como racionalidade neoliberal. Wlowik é o próprio sujeito do desempenho, acorrentado ao tempo do trabalho — um tempo sem aroma, sem final e sem vida. Wlowik busca recuperar a sua radicalidade apostando naquilo que perdeu, aos longos dos anos dedicados à profissão. A perda está na incapacidade de concluir, de capturar o propósito do tempo, de seguir em uma direção distinta. A conclusão do chefe é o abandono total à performance de si mesmo, forçando os seus convidados a fazer o mesmo também. 

 

A gastronomia idealiza o sacrifício como um percurso disciplinar.

Há uma espécie de disciplina romântica exigida, que envolve a capacidade de resistir as dificuldades reais de uma cozinha profissional. A paixão pelo trabalho é afetada por essa discursividade neoliberal, que tensiona nossos limites, e nos obriga a cumprir com as metas da carreira escolhida. O investimento do tempo livre, também é incluso como parte da preparação para o sucesso. Assim, é muito comum que o talento e a consideração do público, não venham acompanhados de um retorno financeiro desejável. A gastronomia é um ofício descolado, desafiante, e que acompanha as tendências da modernidade. Uma forma lucrativa de capitalizá-la, e de estimular a sua circulação de uma maneira barata, é estagiando as condições para o seu aprendizado. Os funcionários mais dedicados demonstram um comportamento inteiramente emocional, pois, a sua persistência está alinhada a um projeto de vida.

No filme, a verdade é ilustrada como se o prato fosse uma grande tela, e a cozinha, como um vasto laboratório de experiências, que ganham tanto feitos originais, como reproduções artesanais. Outra palavra bonita e adesiva; artesanal. Além de desafiar o vocabulário da gente simples, dá um ar poético ao elevar a simplicidade como um valor contemplativo, quase espiritual. Assim, a gastronomia e seus bordões criaram uma economia emocional, ou um quintal cultural associado não propriamente a comida, mas, — ao consumo abstrato desta — como uma forma de elaboramos “positivamente” as nossas emoções. Até aí tudo bem, mas, e se tudo isso não for, tecnicamente, verdade? Como se mensuram valores tão singulares como o carinho; e a troca de experiências íntimas e pessoais, com o que comemos?

Toda essa pseudo “filosofia dos sabores” é estudada e desgastada pela “new gastronomia”. A comercialização de valores funciona como uma estratégia sinestésica, para envolver o público em sua ausência de conhecimento. A gastronomia profissional já aposta em elementos surpreendentes e em novas formas de compor designs de comida, mas a “emocional”, vai além disso. Ela promete reconciliar sabores já versados, com antigos laços afetivos; durante a escolha e a preparação dos ingredientes. A simplicidade é rebatizada como nova técnica, ou “A técnica é não ter técnica”. Será que isso é praticável, quando a força de trabalho em uma cozinha se concentra em reproduzir receitas para um grande público? A verdade é a de que por mais que a afetividade possa se tornar palatável, ela não pode ser decodificada por todos. É uma promessa muito difícil de cumprir porque exige coparticipação do público. Felizmente, o sentimento sobre o pão não substitui o seu sabor...

O filme é uma metáfora sobre a perda do sentido — o que faz da gastronomia, uma experiência única e divertida para cada um — pois; a qualidade está na produção de sensações, no prazer de deleitar-se com “água na boca”. É isso que desperta a nossa sensibilidade. O filme nos mostra através da figura dramática (a prostituta Margot) interpretada pela Anya Taylor-Joy, que a ordem estabelecida pela gastronomia pós-moderna (técnico-sensorial, molecular, minimalista e platinada com Ouro) coloca em dúvida o valor crítico da dissidência (de quem não é sommelier em restaurante, mas entende de comida). É por isso que a arte na gastronomia dificilmente encontra originalidade em nós, porque a satisfação atende a um desejo de perfeição e de exclusividade, o que justificaria qualquer preço, tradição ou crença.

 

O tempero comercial estraga as receitas

Esse texto é para você, que se sente mal por não apreciar a verdadeira “comida da avó”, ou não recebeu um “abraço quentinho no estômago”, enquanto terminava seu prato. Por fora, há uma discursividade que se beneficia da “valorização ambiental de comunidades subjugadas”, sem desistir de lucrar com uma linda Storytelling, inspirada na sua família. É por isso que culinária e gastronomia não atendem pelo mesmo nome. Ambas têm inventividade, mas a primeira é pertinente ao âmbito de casa, enquanto a outra trabalha em escala profissional e comercial. A consequência prática dessa confusão, incentiva os preços, a concorrência e o exagero criativo nos Menus, independentemente se você se beneficiou, ou não, das lembranças de quando era criança. Polêmicas à parte, vale a pena conferir o filme antes de sair para jantar, sem tantas esperanças críticas.

 

Notas e referências:

Bear-McGuinness. Reportagem BBC News Brasil: O trabalho dos sonhos que se transforma em Pesadelo. <Os 'trabalhos dos sonhos' que se transformam em pesadelos - BBC News Brasil>.

HAN, Byung- Chul Han. Favor Fechar os Olhos: em busca de um outro tempo; Tradução Lucas Machado – Petrópolis, RJ. Vozes, 2021. 

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Abstract // Foto de: Leon Fishman // Sem alterações

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