O LINCHAMENTO VIRTUAL, A CULTURA DO CANCELAMENTO E O DIREITO AO ESQUECIMENTO

03/08/2020

Para a discussão do tema, deve-se pensar nas seguintes situações meramente hipotéticas: determinado perfil de rede social que sofre uma verdadeira campanha de repúdio e de cancelamento por veicular determinado pensamento ou utilizar determinada palavra considerada politicamente incorreta por determinada pessoa ou grupo de pessoas; certo cidadão que busca frustrar ato de ofício de agente público para exclusivo benefício pessoal; alguém que posta em sua rede social determinada fotografia e começa a ser ridicularizado por sua aparência ou forma de se vestir; um agente público que é flagrado abusando de suas prerrogativas funcionais. Basta que tais situações sejam flagradas por uma câmera de celular ou que certo comentário ou postagem de imagem sejam “printados”, numa sociedade cada vez mais informatizada e vigilante, que eles “viralizam” rapidamente nos grupos e perfis digitais, desaguando, após um tempo, na mídia tradicional.         

Vídeos da ocorrência, fotografias dos envolvidos e “prints” de postagens começam a circular horas após o ocorrido. São criados memes e figurinhas de aplicativos de mensagens instantâneas. Palavras de ódio, execrações, humilhações e até ameaças são proferidas nas redes sociais. Há a perda do emprego ou é rapidamente instaurado procedimento investigativo da conduta do agente público. Muitos perdem a sua vida social com medo de serem reconhecidos e sofrerem violência física. Cancelam as suas redes sociais. O alvo perde a sua reputação. Uma massa de indignados age contra os “vilões” da sociedade. Há um julgamento e uma condenação sumários no “tribunal virtual”.

Não será feito aqui qualquer juízo de valor sobre as condutas citadas que são objeto de repúdio no “cyberespaço”. Os exemplos hipotéticos são trazidos à baila para se constatar que, cada vez mais, o linchamento virtual e a cultura do cancelamento se fazem presentes nas redes sociais, não oportunizando qualquer contraditório, explicação ou, quem sabe, um arrependimento ou pedido de desculpas. E esse linchamento é cruel. Visa eliminar aquele eleito como oponente da “justiça”, dos costumes, do que se entende como politicamente correto.

De outra parte, há verdadeiras campanhas de linchamento de ideias que, muitas vezes, são personificadas em pessoas escolhidas como verdadeiros bodes expiatórios. Há campanhas do tipo “todos contra...” e lança-se o pensamento e a palavra que devem ser combatidos, sendo criadas “hashtags” que podem parar nos assuntos mais comentados de uma rede social.

O linchamento ou justiçamento popular é uma conduta tão antiga quanto a história humana. Os linchamentos, ao menos na contemporaneidade, são motivados por fatores culturais que variam conforme a nação, a região ou até mesmo a localidade em que são praticados. No Brasil, pode ser destacado o fator da descrença de parte da população com o sistema de justiça que, na visão popular (que não necessariamente corresponde à verdade) é lento e moroso. Assim, para se evitar a impunidade pelo passar do tempo, o coletivo atua para fazer justiça com as próprias mãos perante, por exemplo, um suspeito da prática de algum crime, mesmo que, em alguns casos, não haja provas cabais de incriminação.

Na internet o fenômeno do linchamento, apesar de imediatamente não envolver agressões físicas, é muito mais recorrente, pois 74,7% dos brasileiros possui acesso à internet[1]. E nesse ambiente virtual não há o contato face a face entre as pessoas que, muitas vezes, inibiria condutas ofensivas, antiéticas, discriminatórias e intolerantes. Muitas pessoas que ofendem pela internet jamais fariam isso pessoalmente. Mas, para muitos, a tela fria do computador parece ser o escudo perfeito para ofender numa horda de comentários agressivos, compartilhar aquela figurinha ou meme ofensivo, fazer circular fotos ou vídeos íntimos não autorizados por terceiro, assassinar reputações e até desejar toda sorte de desgraças ao alvo do linchamento. O linchador se sente um anônimo, mais um no coletivo de comentários agressivos do “cyberbullying”.

As práticas de linchamento virtual são muito semelhantes ao comportamento violento, de raiz tribalista, de algumas torcidas organizadas antes, durante e após uma partida de futebol, revelando uma faceta até mesmo primitiva da natureza humana. O indivíduo quer pertencer a um grupo, a uma tribo e ele se sente seguro, dentro do coletivo, para praticar toda sorte de atos violentos que não praticaria se estivesse sozinho. E, em razão da natureza humana competitiva e, algumas vezes, intolerante com o diferente, quer destruir o grupo rival.

Aliado a isso, há um corriqueiro sentimento de impunidade na internet que incentiva a prática dos linchamentos virtuais. Muito embora a legislação brasileira tenha avançado, com o advento da Lei dos Crimes Cibernéticos (Lei nº 12.737/12), do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/12) e da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/18), o Poder Judiciário e os demais órgãos que atuam no sistema de justiça ainda estão se adaptando à nova realidade, adaptação que, por vezes, não acompanha a velocidade da informação, das comunicações e das interações na “web”. O linchador não possui consciência que pode ser alcançado pela legislação quando age no mundo virtual justamente pela dificuldade de atuação do sistema de justiça nesta seara.

Neste aspecto, busca-se cancelar um indivíduo ou um grupo que pratica um comportamento tido por repulsivo ou professa uma ideologia ou pensamento que não agrada. As redes sociais converteram-se num “tribunal popular” que não permite a explicação, o contraditório, a defesa e cuja pena aplicada, o assassinato da reputação, é muito desproporcional à falta praticada e pode causar prejuízos psicossomáticos graves como transtornos de ansiedade, depressão e até mesmo levar ao suicídio. Se a massa de linchadores virtuais é controlada por algum influenciador digital é aí que a questão toma contornos mais graves, pois as agressões são bem mais direcionadas.

Hoje muito se quer falar. Mas pouco se quer ouvir. Os agressores preferem assassinar a reputação do adversário, do grupo do qual divergem no campo da ideologia política ou no espectro religioso, filosófico ou econômico, visto que é mais fácil denunciar, cancelar, humilhar e deixar de seguir do que argumentar de forma lógica. Até mesmo as redes sociais virtuais mais populares, que se converteram em verdadeiras praças públicas de discussão e divulgação de ideias e eram tidas como ambientes imparciais de discussão, vêm sendo acusadas de cancelarem contas ou excluírem postagens arbitrariamente. As acusações partem principalmente de movimentos de direita, dizendo que as atitudes das plataformas acima citadas impedem o debate público de ideias conservadoras. E mesmo os movimentos de esquerda também vêm sofrendo com o cancelamento de alguns perfis e exclusão de algumas postagens em redes sociais por, em tese, violarem as políticas da rede. Seriam as mais famosas redes sociais verdadeiramente imparciais? Ou haveria algum componente ideológico por detrás do algorítimo?

É importante dizer aqui que os perfis de redes sociais que espalham “fake news” para fins ilícitos, que fazem proselitismo a atividades criminosas e a outras condutas antijurídicas, principalmente os acobertados por perfis falsos (pois é vedado o anonimato e, por extensão, se esconder atrás de um “fake” – art. 5º, IV, CF/88), e aqueles que, fora da internet, cometem condutas reprováveis na sociedade merecem a devida reprimenda judicial ou mesmo uma cuidadosa e, por via de exceção, “autotutela” realizada pela própria plataforma digital com a exclusão do material, da postagem ou do perfil ilícitos. No entanto, deve ser rechaçado todo o tipo de censura na discussão de ideias, quaisquer que sejam, desde que a discussão seja lícita e ínsita à livre manifestação do pensamento e ao direito à informação (arts. 5º, IV e XIV e 220 da CF/88) que sempre devem respeitar o princípio da dignidade humana. Também deve ser rechaçado o linchamento virtual, visto que o castigo é amplamente desproporcional à "falta" praticada. O linchador, em verdade, quer censurar, calar e humilhar desproporcionalmente.

Um aspecto muito ligado aos linchamentos virtuais e à cultura do cancelamento é o direito ao esquecimento. A pessoa linchada na internet ou alvo de uma campanha virtual de exclusão possui direito de ser esquecida?

O Enunciado nº 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil cristaliza que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. O Superior Tribunal de Justiça já se debruçou sobre o tema do direito ao esquecimento, a exemplo do decidido nos recursos especiais nºs 1.334.097/RJ[2] e 1.335.153/RJ[3], ora reconhecendo-o, entendendo que a informação desabonadora reavivada não seria de interesse público e deferindo indenização por danos extrapatrimoniais ao ofendido, ora afastando-o, dizendo que a questão já teria caído no domínio público, não havendo direito ao esquecimento e negando a indenização pleiteada.

No entanto, independentemente da informação ser ou não de domínio público, estar ou não restrita aos foros da intimidade e da vida privada, o grande problema é que a internet “não esquece”, principalmente os “robôs” dos sítios eletrônicos de pesquisa que varrem a internet em busca de informações das mais variadas. Como se diz, “o print é eterno”! Fotos, vídeos, memes, figurinhas que relembram os linchamentos virtuais, a campanha de cancelamento e aquela postagem ofensiva poderão, a qualquer momento, ser “ressuscitados” para voltar a circular nas redes sociais. Os provedores de conteúdo podem estar hospedados em outros países, algo que pode dificultar a atuação judicial no sentido de obrigá-los a retirar do mundo digital as chaves de pesquisa de conteúdos desabonadores relacionados a determinada pessoa ou a certo grupo de pessoas originado de um linchamento virtual. Muitos dos memes, fotos, vídeos, "prints" ou figurinhas ficam salvas na galeria do celular de cada usuário que possui conta nos aplicativos de mensagens instantâneas, não havendo possibilidade de qualquer tutela coletiva sobre a questão.

No entanto, a internet não é “terra sem lei”. Com um trabalho investigativo e instrutório sério das autoridades, ao menos os principais perfis linchadores podem ser identificados na rede mundial de computadores, a exemplo de alguns influenciadores digitais que movimentam a turba de agressores e aqueles seguidores/usuários da rede social que realizam os principais comentários ofensivos. O linchador que está por trás de um perfil de rede social possui uma vida real. Possui família, trabalho, estudo e círculos sociais. E como grande parte das pessoas comentam com os seus perfis reais, muitos expondo na descrição de seu perfil informações necessárias para a sua correta individualização, não é tão difícil identificar um linchador e buscar a sua responsabilização. Mesmo os perfis “fakes” podem revelar os seus reais operadores por meio de rastreio de IP e de outros métodos de investigação.

No campo penal, a depender da conduta praticada, os linchadores podem ser responsabilizados por crimes tais quais calúnia (art. 138 do CP), difamação (art. 139 do CP) e injúria (art. 140 do CP), constrangimento ilegal (art. 146 do CP), ameaça (art. 147 do CP), extorsão (art. 158 do CP), estelionato (art. 171 do CP), invasão de dispositivo informático (art. 154-A do CP) e divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (art. 218-C do CP).

Na esfera cível, identificados os linchadores, eles podem ser acionados no Judiciário  para a compensação pelo dano extrapatrimonial à honra, à imagem, à vida privada e a qualquer outro direito da personalidade (art. 5º, V e X, da CF/88 e art. 21 e seguintes do CC/02). De igual maneira, pode ser vindicada a responsabilização por eventuais danos materiais sofridos pelo linchado causados pela conduta desproporcional realizada no ambiente virtual. A responsabilidade civil, solidária entre os ofensores, será subjetiva nos termos do artigo 186 do Código Civil.

Na ordem trabalhista, se a conduta for praticada pelo empregado em desfavor do empregador pode ocasionar a dispensa por justa causa por lesão à honra e boa fama do empregador ou de superiores hierárquicos (art. 482, "k", da CLT) ou contra qualquer pessoa se for praticada em serviço (art. 482, “j”, da CLT). Se praticada a conduta pelo empregador ou prepostos deste em desfavor do empregado é causa de rescisão indireta do contrato de trabalho pelos mesmos motivos (art. 483, "e", da CLT).

Quanto ao direito de ser esquecido, a questão vai depender do caso concreto, ou seja, se a informação que foi reavivada é ou não de caráter público, o que em se tratando de pessoas “não públicas” normalmente não é. Não sendo de caráter público a informação, cabem as medidas judiciais criminais, civis e trabalhistas contra aquele que, devidamente identificado, reaviva e propala o conteúdo desabonador oriundo de um linchamento virtual que já estava esquecido.

O que se deve ter em mente é que a conduta do linchamento virtual ou cultura do cancelamento deveria merecer maior e mais cuidadosa atenção do legislador nacional. De um lado, para a preservação da liberdade de expressão e da manifestação do pensamento, vedada a censura, conforme arts. 5º, IV e XIV e 220 da CF/88. De outro, para se punir exemplarmente aqueles que participam dos linchamentos virtuais, em evidente prática ilícita. Uma ideia, no campo penal, seria a criação de circunstâncias de aumento de pena (majorantes) ou de qualificadoras se o crime for praticado numa espiral de linchamento virtual. No entanto, soluções pouco discutidas com a sociedade civil, como as constantes no PL 2.630/20, aprovado em 30 de junho de 2020 no Senado Federal e já encaminhado à Câmara dos Deputados, podem mais estimular a censura do que verterem-se em verdadeiros instrumentos de combate às “fake news” e práticas de linchamento virtual, destacando-se aqui o artigo 12 do referido Projeto de Lei[4] que estabelece critérios para a moderação do que é discutido nas redes sociais.

Por fim, é importante dizer que dois elementos são importantíssimos para o avanço de uma maior civilidade e educação na web: a) a criação de uma cultura de respeito e conscientização de responsabilidade quanto às atitudes praticadas nas redes sociais. Isso poderia ser feito via escola regular; b) a adaptação e a capacitação cada vez maior do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos órgãos policiais para maior conhecimento do fenômeno dos ilícitos praticados na “web”, o que contribuiria para maior dinamismo na apuração das condutas e na responsabilização a contento dos linchadores virtuais. Essa capacitação poderia ser realizada nos cursos de formação inicial e continuada ministrados pelas escolas judiciais, escolas do Ministério Público e academias de polícia.

 

Notas e Referências

[1]      TOKARNIA, Mariana. Um em cada 4 brasileiros não tem acesso à internet, mostra pesquisa. Sítio eletrônico da Agência Brasil. Rio de Janeiro, 29 abr. 2020. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet#:~:text=Internet%20em%20casa&text=De%202017%20para%202018%2C%20o,%2C2%25%20na%20%C3%A1rea%20rural.>. Acesso em 29 jul. 2020.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097/RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 28mai. 2013. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=ATC&sequencial=31006510&num_registro=201201449107&data=20130910&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em 29 jul. 2020.  

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153/RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 28 mai. 2013. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=ATC&sequencial=31006938&num_registro=201100574280&data=20130910&tipo=5&formato=PDF >. Acesso em 29 jul. 2020.

[4]      BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 2630, de 2020. Disponível em <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944>. Acesso em 29 jul. 2020. 

 

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