No mundo do Direito há o pensamento leguleio. Houaiss: “aquele que observa rigorosamente as formalidades legais, interpretando a lei sem atentar para o espírito que a norteia”. Eu não acredito nem em espírito da lei. Se há algum espírito nessa coisa toda, é o do juiz e ponto.
Esse pensamento leguleio acontece também no geral da Sociedade. Há quem acredite que a lei é, em si, a expressão eterna do bem geral. Quem pensa dessa forma, além de querer mais rigor na legislação existente, sobretudo na penal, reluta quando avanços nos costumes revogam legislações que caducaram.
Ora, para que serve uma lei? Algumas são de ordem prática: legislação de trânsito; sem ela as cidades não funcionariam. Outras são civilizadoras: as franquias civis que fazem o patamar da convivência humana. Há as ideológicas: leis antiaborto são pura pressão religiosa. Enfim, existem muitas leis por muitos motivos.
Agora, pra que serve uma lei que condena um sujeito que usa droga? No Direito Penal, para que se produza uma legislação, algumas coisas devem ser consideradas. Primeiro, o tema tem que ter alguma dignidade: não se deve, por exemplo, transformar em lei penal a deseducação de deixar uma bicicleta na calçada.
Outra coisa importante: a necessidade. Ainda a bicicleta na calçada. Bem, não se pode usar a calçada como estacionamento. Mas não caberia uma multa, ou um recolhimento forçado? O Direito Penal é um instrumento violento. Só se deve usá-lo quando outras esferas jurídicas são incapazes de dar conta do recado.
Por fim, a proporcionalidade. Deve sempre ser sopesado se compensa haver a intromissão estatal na assunto. Vale o Estado se meter, emprestando tratamento jurídico a certas questões? Imagine-se, dentre outras coisas, o custo de pôr o aparato governamental reprimindo penalmente ciclistas deseducados.
Toda lei move diversas coisas. A guerra legal às drogas tem movido danosamente mais coisas do que imagina o leguleio social. Quanto custa o policiamento? Quanto custa o sistema judicial? Quanto custa a defensoria pública? Quanto custam os cárceres? Quanto disso se desdobra em corrupção, em morte, em miséria?
Que dignidade jurídica tem “fulano usando droga”? É realmente necessário que fique no âmbito do Direito Penal o baseado que alguém carrega consigo? O custo de trazer a máquina pesada do Estado para este ato privado de usar uma droga de discutível dano não é mais danoso que o dano discutível da droga?
Essa briga contra as drogas está perdida. Há nove anos José Mariano Beltrame é secretário de segurança do Rio de Janeiro. É a única autoridade brasileira de alto escalão a apoiar a proposta de o país descriminalizar a posse e o consumo de drogas. Beltrame afirma: "O combate às drogas não está funcionando" (Trip, ago15).
Beltrame está sentado no foco do problema. Comandou invasões violentas a territórios de traficantes. “Enviou mais de 1.500 homens para uma região onde a polícia não entrava havia quatro anos. O resultado foram 21 mortos em confronto policial, de acordo com a versão oficial”. Mudou de opinião e de método.
Essa derrota não é da Polícia ou de algum governo. O que acontece é que drogas são produto de uso generalizado. O número de consumidores é incontável. Então haverá demanda, independentemente do que se faça. Com essa demanda, não faltará quem cuide da oferta. E não dá para prender todo mundo.
O meu posicionamento, diz Beltrame, “reflete o que vi em Portugal. Eles descriminalizaram o uso da maconha. Depois passaram para as drogas consideradas mais pesadas. Tiraram o problema da polícia e levaram para o Ministério da Saúde”. Claro, houve estruturação abrangente e anterior a essa decisão, como deve ser.
O Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a possível inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal. Julgará se a lei em vigor invade garantias constitucionais. Espero que o STF não leguleie, mas reencaminhe o debate. Droga enquanto consumo não é assunto de Direito Penal.
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