O JUSTO EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS — O USO DE SISTEMAS DE DISTRIBUIÇÃO E DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA — COVID 19

21/05/2020

O presente texto tem como foco contextualizar uma evidência: de um lado o reconhecimento de motivos que se encaixam no conceito de “força maior” e, de outro, a possibilidade de flexibilização contratual em um processo natural de “ganha – ganha” e não de “perde – ganha”.

Vive-se em um momento de incertezas em razão da pandemia motivada pelo COVID-19 que justificou, no Brasil, a declaração de estado de calamidade, por força do Decreto Legislativo Federal nº 06, publicado no D.O.U. em 20/03/2020, que “Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020”.

Pauta-se na possibilidade de revisão contratual dos Contratos de Uso do Sistema de Distribuição (CUSD) e daqueles de Fornecimento de Energia Elétrica, formalizados entre a Companhia fornecedora e o Estabelecimento Comercial/Industrial. Sabe-se que a energia é um dos insumos mais onerosos à empresa, que impacta sobremaneira na formação de preços e na escala de produção x consumo.

Em um cenário pandêmico, como no caso, que vem afetando o consumo mundial, consequentemente, a produção e a utilização da energia, quer-se identificar a viabilidade ou não de se alterar as condições originariamente pactuadas, para que o faturamento passe a ser realizado pela demanda medida/utilizada pelo uso do sistema de distribuição de propriedade da Companhia e da energia disponibilizada.

Acompanhando o cenário prático de arguição e contra arguição, tem-se observado que as Companhias fornecedoras buscam refúgio no conteúdo da Resolução n. 410/2010 da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), segundo o qual o faturamento dos clientes do “Grupo A” deve ser feito com base no maior valor entre a demanda contratada e a demanda medida.

Cabe esclarecer, neste contexto, tratando-se de direito obrigacional, que a argumentação baseada na Resolução da ANEEL não prevalece frente à ocorrência de fato imprevisível e inevitável, que não poderia ser impedido pela parte. A pandemia Covid-19 é tão grave e excepcional, ao ponto de infectologistas renomados observarem que “(...) o mundo nunca viveu algo tão parecido com esta situação atual (...)”[i] .

A demanda da Indústria e do Comércio pelo equilíbrio contratual, aí incluídos os Shopping Centers (fechados por determinação do Poder Público), tem por objetivo invocar e demonstrar que a ocorrência da pandemia declarada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 11 de março de 2020, enquadra-se, fundamentadamente, na hipótese de força maior descrita pelo art. 393 do Código Civil, que dispõe: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.

Nenhuma das partes da relação contratual, mesmo em contratos interempresariais, poderia prever as consequências trazidas pelo COVID-19 em um mundo de tecnologia avançada, pois se presumia existirem formas de enfrentamento no curto prazo e de não disseminação, a ponto de não bloquear as atividades produtivas de forma generalizada. Mas não é isso que se tem evidenciado.

A demora pela cura e por uma vacina tem surtido efeitos nefastos na economia e nos contratos. Como o empreendedor (proprietário de um Shopping de porte considerável), por exemplo, suportaria um custo de R$ 400 mil mensais (conta de energia), sem os recursos derivados dos seus contratos com os lojistas, capazes de fazer frente às despesas incorridas? A saída para o caso é rever os contratos de distribuição e de fornecimento de energia, para que, em um período transitório, cobre-se pelo consumo e não pela demanda contratada, uma vez que o estabelecimento fechado e a queda da produção industrial repercutem no consumo, infinitamente menor, sendo ponderável, portanto uma discussão sobre os custos de fornecimento, condicionada a um contexto de total transparência.

Enquanto a ANEEL não traz uma solução linear, e nem sabemos se isso será possível ou recomendável, pois as realidades empresariais são diversas, cabe a cada prejudicado socorrer-se, individualmente, a partir de uma negociação razoável ou por meio de um pedido de intervenção judicial no tipo/espécie de contrato. Da leitura de alguns contratos do gênero, percebe-se a existência de cláusula de revisão contratual nas hipóteses de reconhecimento de casos fortuitos e ou de força maior, no entanto, tem-se negado vigência automática a tais dispositivos, conduzindo-se para uma solução jurisdicional (judicial ou arbitral), ressalvando-se a importância da mediação e da negociação em um período em que deveria prevalecer a cooperação.

A possibilidade de revisão contratual aponta para dois cenários: a) a cobrança apenas pelo consumo e não pela demanda contratada enquanto durar o período de afetação pelos motivos de força maior (calamidade pública); b) a cobrança pelo consumido, com a adição dos custos de disponibilidade, caso não embutidos no preço de consumo. Duas variações, então, justificáveis, mas para a segunda hipótese haverá necessidade de transparência plena em relação aos custos de disponibilidade, abrindo-se a planilha da Companhia.  

Lembre-se que por meio do Decreto Legislativo n. 06, de 20 de março de 2020, houve o reconhecimento da ocorrência de estado de calamidade pública, com efeitos até 31/12/2020, como já tivemos oportunidade de abordar nesta mesma coluna, por ocasião do tema “O empresário e a pandemia (coronavírus/covid-19): como decidir? a chave é otimismo”[ii].

Naquela mesma ocasião tratamos deste caso em particular, sustentando a importância do espírito colaborativo, de cooperação e comparticipação, sem a necessidade de judicialização, pois, obviamente, pautadas situações congêneres em juízo, em razão dos conhecidos motivos de força maior e de caso fortuito, o resultado não poderia ser outro, que não o da abstenção do pagamento pelo que não foi consumido, pois a paralisação da atividade decorre de decreto governamental e não de ação voluntária.  Esse cenário é construído levando-se em conta as características das companhias de energia elétrica, mais suscetíveis de socorro governamental, mas os demais contratos interempresariais estarão na dependência do entendimento do caso concreto e do compartilhamento das perdas, pois os motivos de força maior aplicam-se nos dois polos da relação contratual, diante dos compromissos assumidos previamente, de parte a parte.

Tais argumentos reforçam a viabilidade de eventual medida neste sentido, para revisar o contrato, em caráter de urgência, alterando-se a forma de faturamento enquanto perdurar os efeitos da pandemia e até mesmo suspendendo a exigibilidade para ulterior definição.

Em que pese à existência do princípio da autonomia privada, que rege tradicionalmente os contratos, principalmente os interempresariais, há situações excepcionais, que, uma vez caracterizadas, podem e devem flexibilizar determinadas normas contratuais, inclusive, para permitir a própria continuidade da relação. Some-se a isto o fato de que é comum que as Companhias, no caso em análise, mesmo com a redução do uso da demanda contratada, não tenham prejuízos por suposta perda de energia gerada, já que as empresas compram no “Mercado Livre de Energia”.

Em recentíssimo precedente, em caso análogo (de contrato ‘CUSD’), o Desembargador Saulo Henriques de Sá e Benevides, do Tribunal de Justiça da Paraíba, deferiu o pedido liminar, em sede de Agravo de Instrumento: “DEFIRO (...) o pedido liminar para que a agravada proceda com a cobrança da fatura de energia elétrica do agravante com base na leitura medidor e no consumo efetivo, e não pela demanda contratada, enquanto perdurar a pandemia”[iii].  

No mesmo sentido é a decisão datada de 23 de abril de 2020 da lavra do juiz paranaense, Guilherme de Paula Rezende, da 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, ao reconhecer os efeitos drásticos da pandemia e sua relação com o consumo de energia. Confira-se:

Assim, porquanto evidente que tais medidas, externas à pessoa jurídica autora, trouxeram como efeito a redução drástica no consumo de energia elétrica no centro comercial administrado pela demandante e, ainda, perda significativa na arrecadação de receitas pela demandante, é de ser reconhecida a situação de força maior apta a justificar a suspensão da obrigação de pagamento na forma como anteriormente pactuado pelas partes.

Veja-se que a força maior é circunstância que decorre de forças físicas da natureza, cujo obstáculo é invencível, inevitável. Logo, evidenciada, ao menos nesse momento processual, situação caracterizadora da força maior e, sendo evidente o perigo de dano caso não adotadas a medida pleiteada antecipadamente pela demandante e, ainda, a possibilidade de reversão da medida, outra não é a alternativa senão possibilitar a reestruturação, ainda que temporária, das obrigações constituídas pelas partes por meio do contrato de uso do sistema de distribuição de energia elétrica[iv] (sem destaque no original).

Com relação à natureza da ação a ser proposta, por envolver relação contratual pré-constituída que visa revisar parcial e temporariamente, aliada à possibilidade de discussão probatória – em certa medida –, entende-se que a providência judicial mais adequada deva envolver a revisão, permitindo-se, em última análise, o reequilíbrio financeiro do pacto ou a restruturação das obrigações constituídas, nos termos da afirmação feita pelo juiz acima citado. Adicione-se a isso, a possibilidade da adoção de providências urgentes, pois nada impede, por exemplo, a utilização das tutelas inibitórias para o fim de suspender a exigibilidade das obrigações correntes e impedir a negativação cadastral pelo tempo da pandemia, e depois, reavaliar o caso hipótese segundo a realidade do caso concreto.

Considerando-se, assim, que a urgência é contemporânea à propositura da ação, entende-se viável o uso do procedimento relativo a tutela antecipada em caráter antecedente ou cautelar, visando a obtenção de liminar que determine a alteração dos parâmetros de faturamento imediatamente, com a manutenção dos efeitos enquanto durar os reflexos da pandemia Covid-19. 

Ressalve-se, porém, que a proposição da medida judicial referida deva ocorrer após a tentativa de uma solução consensual, por meio do diálogo com a Companhia distribuidora, até porque, como bem observado pelo Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro João Otávio de Noronha, a mediação é fundamental, neste momento, para que possamos superar a crise"[v], confirmando-se, assim, a importância da cooperação e da comparticipação, que emanam de incentivos e interesses recíprocos canalizados para uma solução dialogada, obviamente mais eficiente e com menos custos de transação envolvidos.

 

Notas e Referências

[i] Disponível em: <https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/saude-e-bem-estar/2020/03/5602510-coronavirus---nunca-vi-algo-igual-a-esta-pandemia---diz-infectologista-do-huoc.html.>Acesso em: 19 maio 2020. Entrevista com Vicente Vaz, da Universidade de Pernambuco.

[ii] Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/o-empresario-e-a-pandemia-coronavirus-covid-19-como-decidir-a-chave-e-otimismo. >Acesso em: 19 maio 2020.

[iii] Disponível em: <http://www.tjpb.jus.br. 3ª Câmara Cível, Processo/Agravo de instrumento n. 0803890-22.2020.8.15.0000>. Acesso em: 19 maio 2020.

[iv] Dispohttp://www.tjpb.jus.br. 3ª Câmara Cível, Processo/Agravo de instrumento n. 0803890-22.2020.8.15.0000nível em: <https://projudi.tjpr.jus.br/projudi/. 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba do Foro Central, autos n. 0001494-66.2020.8.16.0004.>Acesso em: 19 maio 2020.

[v] Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Mediacao-e-fundamental-para-enfrentar-a-crise--afirma-ministro-Noronha-em-debate-na-internet.aspx.>Acesso em: 19 maio 2020.

 

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