O “Juízo Moral Estatal” como atentado à Democracia

21/09/2018

Em um momento de alvoroço social e extrema conturbação política compondo um cenário eleitoral aflitivo, não restam dúvidas da necessidade de se falar sobre “Juízo Moral Estatal”.

Aqueles que se autointitulam “Cidadãos de Bem”, vem sugerindo que Têmis, a Deusa de olhos vendados em que se personifica a Justiça, a Lei e a Ordem, passe a se assentar num novo trono, e diferir entre os cidadãos, àqueles considerados bons e àqueles que não farão jus a tal estirpe.

Tornou-se comum, principalmente no atual cenário político, ouvir frases como: “Bandido bom é bandido morto” ou “Mas estava rezando?” ou até mesmo discursos eufóricos pró-pena de morte, vindo daqueles que apoiam discurso de ódio, (travestido de discurso político de extrema-direita).

Ora, é no mínimo curioso, que um cidadão, dotado dos mesmos direitos e deveres que eu autor e você leitor, se aventure a marcar entre nós, aqueles que merecem ser cidadãos e aqueles que não serão agraciados com a cidadania.

Convivemos com o atual risco de que alguns de nós, passem a não ser dignos dos direitos e garantias fundamentais, assegurados na própria Constituição da República promulgada em 1988. (Tratando aqui formalmente do tema, pois materialmente é sabido que alguns já não o são).

Trago neste momento o que nos ensina Friedrich Müller em “Quem é o Povo?”:

O mero fato de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo menos uma situação irrelevante. Compete-lhes, juridicamente, a qualidade de ser humano, a dignidade humana, a personalidade jurídica [Rechtsfähigkeit]. Elas são protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente, i.e., gozam da proteção jurídica, têm direito à oitiva perante os tribunais, são protegidas pelos direitos humanos que inibem a ação ilegal do estado, por prescrições de direito da polícia e por muito mais.[p.87]

Ou seja, o notável autor que aqui transcrevo, nos leciona que estamos taxativamente proibidos, pela norma maior que nos rege, de estabelecer dentre nós, àqueles que estarão acobertados por garantias e direitos. Todos o são e o serão.

Interessante salientar, ao “Cidadão de Bem”, que promove discurso de expurgo, que o expurgo já existe.

O atual sistema prisional brasileiro não trata, não trabalha a ressocialização, não ensina, não cuida, e ao contrário disto, agride, tortura e retira qualquer traço de dignidade conferido ao cidadão. A execução penal garantidora, atualmente no Brasil, é a completa exceção, o ponto mais fora da curva.

Ao “Cidadão de Bem”, que é enfático em dizer que é honesto, vítima do mal e merecedor do direito de possuir sua própria arma de fogo, deixando de lado o discurso sobre capacidade a tal, é necessário postular que existem incontáveis tipos penais hoje vigentes em nosso país, e que sem qualquer dúvida, diariamente, somos capazes de infringir vários destes.  

Em sendo criminoso, àquele que comete crimes, seja bem vindo ao rol do crime àquele que já bebeu três copos de cerveja e dirigiu.

Não pretende este escrito, equiparar a potencialidade lesiva entre um homicídio doloso e uma contravenção penal, mas tem como objetivo a propositura da seguinte reflexão:  Se o “cidadão de bem”, infringe a lei, tanto quanto o “bandido”, qual a justa medida de diferenciação entre este e aquele?  Quais os critérios utilizados pelo “bem” para definir e subjugar o “mal”?

Por avanço democrático, progresso legal e afastamento de militarismo, cidadão é cidadão, não sendo permitido ao Estado diferenciação moral entre eles.

 Sem dúvidas que o Estado, por suas personificações, ou seja, através de suas autoridades, já estabelece essa diferenciação, a exemplo de uma abordagem policial realizada num negro e em um branco, que são completamente diferentes. Entretanto combater o discurso de ódio propagado pelo dito cidadão de bem, é luta que se faz necessária.

Trago outro exemplo à baila. Exaustivamente tratado hoje em nosso país, é a situação do empreendedor, que não é possível a sobrevivência de uma empresa sem que seu dirigente não tenha em algum momento deixado de pagar algum tributo, ou trabalhado com certo “jeitinho brasileiro” em sua relação com o fisco.

Todavia, salta aos olhos de qualquer cidadão mais atento, que o mesmo empresário cidadão gerador de empregos e “de bem”, se dignifica a apontar para, por exemplo, um usuário de drogas, tratando-o como um bandido, como alguém que deve ser afastado do nosso convívio por intoxicar o meio social, por significar o “mal”.

Delitos devem ser apurados pelas autoridades policiais, denunciados pelo Ministério Público e julgados até o esgotamento das instâncias judiciais, deve haver luta contra impunidade. Se confirmado, num processo penal, em que fora garantido um Devido Processo Legal, deverá o réu ser considerado culpado e arcar com ônus de tal, sofrer a sanção penal com a necessária pretensão punitiva estatal. Este é o único caminho possível. Todavia, este é um tema legal, e não moral.

Qualquer cidadão, como dito, detentor de direitos e garantias, pode estabelecer seu juízo moral sobre determinada pessoa, instituição ou assunto, e, o faz, considerando sua própria trajetória de vida, seu meio social, sua condição econômica, seu engajamento político e até mesmo suas próprias crenças religiosas.

O juízo moral sobre algo, como a própria nomenclatura traz, envolve um conceito de moral, que é personalíssimo e subjetivo, sendo assim o juízo moral é pessoal e peculiar, o cidadão julga moralmente o seu próprio certo e seu próprio errado.

Entretanto, em âmbito Estatal, ou seja, em se tratando da mão mais pesada do Estado, a Pretensão Punitiva Estatal, esta deve necessariamente se ater a um Juízo Legal, Jurisdição, e em nenhuma hipótese se vender à Moral. Não é possível dizer que gozamos de um Estado Democrático de Direito, no momento em que um juiz leigo, trata algema uma advogada em uma audiência, sem qualquer razão, fundamentação ou necessidade.

O Estado estabelecer Juízo Moral entre seus próprios cidadãos jurisdicionados é um atentado sem precedentes à Democracia.

Portanto, devemos nos atentar ao votar e nos afastar de presidenciáveis que, estabelecem juízos morais estatais, que prometem a segurança pública pautados em discurso armamentista e que chegam ao limite de propor castração química como combate aos delitos de estupro.

Votar se traduz em legitimar, e assim, ter como Chefe de Estado alguém que defende ideais misóginos, homofóbicos, racistas e de propagação à violência, legitima este tipo de comportamento e pensamento, o que inconscientemente passa a autorizar o cidadão a incorrer em tal e propagar tal comportamento.

Portanto, é imperioso o afastamento de qualquer tipo de Juízo Moral Estatal, e a manutenção do Juízo Legal. Ao individuo compete sua opinião, ao Estado não.

Diferenciar o “bem” do “mal” numa sociedade altamente complexa e corrompida em todos seu níveis é hipocrisia vazia.

Referências:

Constituição da República, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm - Consulta realizada em 15/09/2018

MÜLLER, Friedrich – Quem é o Povo? – A questão fundamental da Democracia – 5º ed. – Revistas dos Tribunais

 

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