O juiz que nos habita

09/09/2017

Por Marcos Luiz Alves de Melo - 09/09/2017

Inicio afirmando, sem medo de errar, que todo o homem tem dentro de si um juiz, pronto para proferir uma sentença quando lhe oferecida a mais simples oportunidade, apto a julgar suas próprias ações, pensamentos e decisões mesmo sem que estas se exteriorizem no mundo físico, e com ímpeto de julgar seu semelhante por conta de fatos cotidianos, com base em axiomas próprios e subjetivos. É assim em casa, no trabalho, nos bares e botecos afora, afinal, a atividade do juiz (judicare), que consiste em formar conceito, emitir parecer, opinião sobre (alguém ou algo), e com base nisso deliberar e/ou tomar decisão. E essas são, sem dúvidas, atividades inerentes aos cidadãos inseridos em uma sociedade. Esse encargo de deliberar e decidir sobre vida de outrem, em análise estrita, se traduz em poder, e o poder, é fato, fascina aos homens.

Passando para o aspecto técnico, faz-se mister ressaltar que o encargo de exercer a jurisdição, ou seja, de dizer o direito, é basilar em um Estado Constitucional Democrático, afinal, o Judiciário é um dos Poderes da nossa República Federativa. Tanto sim, que nos últimos tempos, o Poder Judiciário assumiu um papel de protagonismo na condução desse momento social frágil e delicado em que vivemos.

Não raro hoje em dia, vemos decisões monocráticas concedendo medidas liminares que são derrubadas pouco tempo depois, mas que são amplamente noticiadas, compartilhadas e comemoradas. Os magistrados, que, a despeito do princípio da identidade física do juiz devem ser discretos por natureza (para não comprometer a imparcialidade que deve emanar de suas decisões), hoje, assumem papeis de herois e vilões, estampando jornais, capa de revistas, e sendo até, pasmem, retratados nas telas de cinema. Hoje, o juiz com prestígio e respaldo social é equiparado a um pop star, mas não pela qualidade jurídica das suas decisões, mas pelo posicionamento político-partidário ao qual essa mais se afilia.

O célebre autor da obra “As Misérias do Processo Penal”, Francesco Carnelutti, já advertia sobre os desafios que permeiam a tarefa jurisdicional: “Nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar um outro homem, aceitaria ser juiz. Contudo achar juízes é necessário. O drama do direito é isto. Um drama que deveria estar presente a todos, dos juízes aos judiados no ato no qual se exalta o processo”.[1] Independente do poder advindo do encargo de julgar a outrem, os julgadores não perdem suas condições de cidadãos e, antes de tudo, homens. A ver, Pôncio Pilatos, que, de acordo com os preceitos bíblicos, sucumbindo à pressão de decidir acerca da vida de um homem, lavou suas mãos e delegou a função ao povo.[2]

A despeito dos ensinamentos clássicos, hoje, em momento que vivemos indubitavelmente em um Estado de exceção (como bem listou o sempre pertinente Lênio Streck[3]), é nítido que alguns juízes se desviam de suas funções e as ultrapassam, imiscuindo-se na política partidária, politizando decisões judiciais e até mesmo pré-julgando publicamente processos pendentes de apreciação.[4]

E no meio disso tudo, o povo, não mais assiste a esse nefasto espetáculo “bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significa”[5], mas muitos adotam para si juízes de estimação, a quem emprestam roupagem de super herois, de paladinos da justiça lutando contra os males da sociedade moderna. Visão completamente deturpada, mesquinha e egoísta, buscando um punitivismo exacerbado e uma suposta justiça imediatista e inconsequente, para aplacar a ira, um dos quatro gigantes da alma do psicólogo Emilio Mira y Lopez.

Todavia, o que não se pode olvidar, é que todos nós estamos susceptíveis a enfrentarmos o famigerado banco dos réus, vez que (ao menos em teoria) nenhum homem está acima da lei, estando todos, por consequência lógica, sob a ponta da espada da deusa romana Iustitia, símbolo do Direito.

E quando o homem é submetido à condição de Acusado, aí sim, imediatamente refuta-se o juiz tirano que nos habita, passando a reivindicar um juiz que nos garanta o exercício do contraditório, o acesso à ampla defesa e todas as garantias insculpidas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, afinal, como já asseverava o filósofo espanhol José Ortega y Gasset: “o homem é o homem e a sua circunstância”.

Conclamo-vos, pois, a uma reflexão, através de algumas indagações: Até que ponto permitiremos que o juiz que habita em nós tome forma no plano real e molde as ações e os exercícios funcionais daqueles que foram legitimados para, de forma imparcial, dizer o direito? Até quando a sociedade civil, sobretudo a comunidade jurídica, irá aplaudir a politização do Poder Judiciário, a espetacularização do processo, e sobretudo, do processo penal? Será que não teremos mesmo uma insurgência contra o estado de coisa inconstitucional e esse escancarado estado de exceção no qual hoje nos encontramos?

E finalizo com o “Intertexto”, de Bertold Brecht (1898-1956), escrito do século XX e, ainda assim, mais atual do que nunca:

Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei

Agora estão me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo.


Notas e Referências:

[1] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal.

[2] Bíblia Sagrada, Livro de Mateus: 27, 22-24.

[3] http://www.conjur.com.br/2017-jun-29/senso-incomum-check-list-21-razoes-pelas-quais-estamos-estado-excecao

[4] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/07/presidente-de-trf-4-afirma-que-sentenca-de-moro-sobre-lula-foi-irretocavel/

[5] Referência a Aristides Lobo, autor da sentença: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada” (cf. artigo escrito no dia 15, e publicado no "Diário Popular" de 18 de novembro de 1889).


Marcos Luiz Alves de Melo. Marcos Luiz Alves de Melo é Especialista em Docência Universitária pela Universidade Católica do Salvador/BA, Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Professor em Penal e Processo Penal na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador/BA, Advogado Criminalista. E-mail: marcosl.melo@terra.com.br .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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