Coordenador Giberto Bruschi
Os precedentes qualificados[1] servem de estrela polar no atual Código de Processo Civil, impondo-se como norte a ser observado por todos os juízes e tribunais, como explicita seu artigo 927[2].
O artigo 927 estipula o que se tem convencionado designar por vinculação horizontal e vertical ao precedente, ao que é estabelecido no mesmo. A vinculação opera perante os próprios julgadores do precedente pretérito (vinculação horizontal), como também aos que estão submetidos ao órgão prolator do precedente em virtude da hierarquia institucional do Poder Judiciário (vinculação vertical — tribunal inferiores e juízes de piso).
Logo, na normalidade dos casos, não havendo diferença significativa entre a questão apreciada no precedente e aquela que se apresenta no feito em trâmite, o precedente deve ser seguido pelos juízes e tribunais.
Porém, não raramente, o próprio tribunal donde proveio o precedente dá sinais de sua superação, como, por exemplo, quando seus membros integrantes deixam de segui-lo, comprometendo assim sua eficácia. Diversos são os exemplos, bastando lembrar os casos envolvendo a aplicação retroativa da lei da ficha limpa[3] e da pena de prisão antes do trânsito em julgado da condenação[4].
Justamente, em tais situações, temos que o juiz verticalmente vinculado ao precedente pode superá-lo por antecipação (anticipatory overruling), permitindo novo debate sobre o precedente então firmado.
Não é tarefa fácil “aplicar”[5] os precedentes no cadinho dos casos, que exige a extração dos motivos determinantes (ratio decidendi) da decisão de ontem (precedente), para que sua trama seja estendida para resolver temas similares que se apresentam no processo de hoje.
Essa atividade não se resolve com o mero etiquetamento do precedente ao caso, pois os motivos determinantes do precedente são textos que serão objeto de interpretação pelo juiz do caso subsequente, inclusive para eventualmente afastar sua regência.
E aí, o adequado funcionamento do regime de precedentes passa tanto por sua aplicação aos casos com identidade jurídica, quanto por seu afastamento se verificada diversidade significativa (distinguishing), como e principalmente por sua superação em situações que seu padrão decisório não seja mais adequado (overruling)[6].
Portanto, os precedentes podem ser superados[7] quando ocorra ruptura substancial da base jurídica, política, social ou econômica que sustentaram a construção de sua norma.
É exatamente na questão da superação do precedente que surge o problema de quem pode superá-lo e, como tema correlato, a possibilidade dos juízes vinculados aos mesmos verticalmente anteciparem tal superação.
Diferentemente da técnica de distinção (distinguishing) — que pode ser utilizada por qualquer juiz para afastar a aplicação dos precedentes qualificados (por assim dizer, pela não incidência) —, a superação do precedente qualificado, a rigor, somente pode ocorrer no e pelo tribunal que o pronunciou. Quem tem competência para formar e estabelecer o precedente qualificado é também o tribunal com competência para tolher sua eficácia.
Ainda que assim o seja, não se pode negar aos juízes e aos tribunais vinculados ao precedente de forma vertical a possibilidade de utilizarem técnica de superação do precedente, em situações excepcionais, antecipando sua provável superação (anticipatory overruling).
Tal se faz mediante juízo que prenuncia a potencial queda do precedente, haja vista que se apresentam fundamentos idôneos que levarão, em perspectiva, à sua superação pelo tribunal que o estabeleceu.
Obviamente, a utilização da técnica da superação antecipada deve ser utilizada em casos extremos, quando se verifique que o próprio tribunal competente, ou seus órgãos componentes, vem decidindo de forma diferente daquela propugnada pelo precedente. Também quando o tribunal que editou o precedente dá sinais de que irá superá-lo no futuro, haja vista sua inadequação atual (technique of sinaling).
Esse é sentido e alcance do artigo 489, § 1o, inciso VI, do CPC, no que permite aos juízes deixarem de seguir precedente qualificado mediante o apontamento do estado de superação do entendimento[8]. Raciocínio diverso importaria em expressar uma visão de que os precedentes são aplicados exclusivamente pela autoridade de quem os pronuncia e não, como sói de ser, pela autoridade do argumento enunciado.
Aliás, uma das únicas vias para discussão da superação do precedente e, consequentemente, para a oxigenação do sistema, abrir-se-á nas situações em que ocorra o anticipatory overruling.
Isso porque, a quase totalidade dos precedentes qualificados serão editados pelos tribunais de superposição (artigo 927), aos quais se acessa geralmente pelos recursos extraordinários e especiais. Tais recursos especiais e extraordinários são analisados previamente pelo tribunal de origem (artigos 1.030, § 2o, 1.035, § 7o, 1.036, § 3o, 1.037, § 13, inciso II, do Código), o qual, aplicando mecanicamente os precedentes qualificados, represará definitivamente os recursos especiais e os extraordinários, afastando assim a possibilidade de evolução no entendimento.
Assim, a existência de decisão contrária ao precedente emanada pela origem (anticipatory overruling) será uma daquelas válvulas que permitirá a rediscussão do precedente pelo órgão que o editou (artigo 1.030).
Todavia, a antecipação da superação não deve servir de mote para que o juiz rivalize com o entendimento estabelecido no precedente pelo tribunal competente. Ao revés, a técnica supõe que o juiz dialogue com o tribunal, já que, por meio dela, ele expressa propriamente o que se tem como o futuro entendimento do último. Quando utiliza o anticipatory overruling, o juiz serve propriamente de porta voz, sem mandato, do tribunal competente para superar o precedente qualificado, já que prenuncia a alteração do entendimento antes firmado pelo mesmo.
Não se pode diminuir o papel dos precedentes enquanto norteadores do entendimento a ser aplicado pelos juízes e tribunais, vitalizando a segurança jurídica e a isonomia. Agora, quando tais precedentes não mais apontarem o melhor caminho, outra deverá ser a jornada.
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[1] Utiliza-se a expressão precedentes qualificados para designar os atos do Poder Judiciário listados no artigo 927 do Código de Processo Civil, porquanto designação eleita pelo Superior Tribunal de Justiça em seu regimento interno (art. 121-A incluído pela Emenda Regimental 24, de 2016) e que bem retrata e representa o referido sistema.
[2] Os precedentes têm papel central no atual Código de Processo Civil, costurando e colmatando o regramento processual, sendo decisivos na estruturação processual (abstrata) e, consequentemente, no desenvolvimento do processo (em concreto). A maior parte da disciplina processual sofre influência decisiva, quando não única, do sistema de formação e aplicação de precedentes qualificados. A este respeito, podem ser lembrados inúmeros dispositivos que sofrem a influência dos precedentes: a ordem cronológica (artigo 12), a cooperação jurisdicional (artigo 68), a tutela de evidência (artigo 311), a improcedência liminar do pedido (artigo 332), a sentença (artigo 489), a remessa necessária (artigo 496), a caução (artigo 521), a extensão dos poderes do relator (artigo 932), a técnica de julgamento diferenciada (artigo 942), o incidente de assunção de competência (artigo 947), o conflito de competência (artigo 955), a ação rescisória (artigo 966), o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 976 a 987), a reclamação (artigo 988), os recursos (artigo 998), a apelação (artigo 1.011), o agravo de instrumento (artigo 1.019), os embargos de declaração (artigo 1.022), os recursos especiais e extraordinários (artigos 1.030, 1.035 a 1.041), o agravo em recurso especial e/ou extraordinário (artigo 1.042).
[3] Disponível: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=333114&caixaBusca=N Acesso: 15-out-2017.
[4] Disponível: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=355453&caixaBusca=N Acesso: 15-out-2017.
[5] O precedente entra no processo interpretativo como texto. Sua aplicação no futuro envolve nova aplicação. O horizonte da aplicação anterior permite e possibilita a aplicação do precedente posteriormente, com a fusão dos horizontes. “(...) o ato de ‘seguir o precedente’ é também uma decisão judicial, é uma atribuição de sentido; não é uma mera imitação nem uma obediência cega.” (RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação dos precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. P. 81). Sobre o tema, escrevemos com mais vagar em: GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Execução e recursos: comentários ao CPC 2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 567 e seguintes.
[6] O sistema de precedentes exige indispensavelmente tais aberturas sistêmicas, no que possibilitam sua oxigenação e consequentemente sua própria manutenção. A rigidez na aplicação do sistema de precedentes levaria à sua ruptura, porquanto se mostraria incapaz de absorver e moldar as novas exigências do devir. Os precedentes, portanto, não podem servir de obstáculo ao desenvolvimento do direito, tornando o presente refém perpétuo do passado, projetando um futuro já desbotado.
[7] Os precedentes somente são superados em situações singulares, já que, quando levados a sério, mormente pelo procedimento previsto para sua formação, são dotados de base factual-jurídica sólida, visualizada por diferentes perspectivas, que os protegem contra flutuações. Sobre o perigo na aceleração do processo para formação do precedente, veja-se: https://jota.info/colunas/novo-cpc/precedentes-no-novo-cpc-fast-food-brasileiro-02112015 Acesso: 15-out-2017.
[8] A aplicação da técnica de antecipação da superação exige fundamentação específica por parte do juiz, a fim de que explicite as razões pelas quais o precedente qualificado está em fase de superação (vide GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Execução e recursos: comentários ao CPC 2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 594).
Imagem Ilustrativa do Post: Martelo do juiz // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações
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