Há uma discussão muito antiga acerca do que seja ciência. A postura mais importante que os cientistas têm sobre a ciência é de que ela é precária, no sentido de suas conclusões estarem sempre, por princípio, sujeitas a revisão.
Ciência: “corpo de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos, e formulados metódica e racionalmente” (Houaiss).
No mesmo dicionário: ciência é o “conhecimento que, em constante interrogação de seu método, suas origens e seus fins, obedece a princípios válidos e rigorosos, almejando especialmente coerência interna e sistematicidade”.
A primeira definição está mais adequada às nomeadas ciências exatas, digamos, ao estudo do mundo concreto. A segunda põe-se apropriada aos saberes do espírito, está sob a rubrica filosofia; pensa os pensamentos.
Há uma ciência das ciências: a epistemologia. Ela reflete sobre o conhecimento humano. É o “estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico, ou das teorias e práticas em geral”.
As conclusões teóricas e as práticas são continuamente “avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história” (Houaiss).
Nas teorias e práticas científicas prevalece uma preocupação: o cientista sabe que nas relações que se estabelecem entre o sujeito indagativo e o seu objeto de estudo permeiam os referidos paradigmas estruturais.
A dicotomização da relação entre o estudante e objeto do estudo científico nessas duas polaridades tradicionais das teorias do conhecimento já é coisa superada pela fenomenologia (Husserl). Mas resta a questão da ideologia.
Ideologia é um sistema de ideias que está subjacente em todo grupo social; é a matéria que compõe as mentalidades, racionalizando e justificando a defesa de posições de ordem moral, religiosa, política, econômica etc.
O rigor do método científico procura neutralizar no cientista as incidências ideológicas, mas a sociedade em geral, ao formar compromissos e deliberar atitudes, não está imune às ideologias. Antes, pensa e age a partir delas.
Não obstante compromissos ideológicos, todos, cientistas ou não, temos um mínimo de discernimento. Sabemos, pois, que nas áreas da saúde há profissionais com formação adequada e há os charlatães.
Charlatão: “que ou quem, ostentando qualidades que não possui, procura auferir prestígio e lucros pela exploração da credulidade alheia; mistificador, trapaceiro, impostor” (Houaiss). O charlatão vende o que não entregará.
Ora, decide um juiz de Direito (Waldemar Carvalho) determinar ao Conselho Federal de Psicologia interpretação tal da Resolução nº 001/1990 que permita a psicólogos atender queixosos de sua sexualidade a busca de cura.
Seja: “não interpretá-la de modo a impedir os psicólogos a promoverem estudos ou atendimento profissional […] pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria”.
Data venia, o magistrado não garantiu liberdade científica. O que fez foi avalizar uma prática charlatã, a de que alguns psicólogos, sabidamente permeados por ideologia cristã, passem a vender um serviço que não entregarão.
A Resolução 001/1990 funda-se em posicionamento da Organização Mundial da Saúde adotado, em decorrência de estudos iniciados por Nicholas Cummings desde 1975, pela Associação Americana de Psicologia. Conclusão:
“A homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade humana, não podendo ser, portanto, considerada como condição patológica.” Se situação sexual não é doença, não há que se falar em tratamento, pois.
“Uma corrente forte da sociedade expressa abertamente o conservadorismo. Direito a ser conservador, qualquer um tem. Mas quem entende a sociedade de forma religiosa pouco acredita em direitos individuais.
Religiosos que levam ao extremo suas convicções não são diferentes na questão moral. Há uma lei divina a ser implementada” (Walcyr Carrasco, Época, 27jun16). O Estado declarado laico vive de ceder a conservadores.
O Direito, como o faz a boa ciência, deveria saber o que não sabe. Um juiz não está preparado para medir dores emocionais. Talvez o magistrado nem tenha percebido a batalha ideológica que subjaz essa contenda.
“O que está em jogo é o enfraquecimento da interpretação da Resolução do CFP pela disputa da sua interpretação. O Judiciário se equivoca ao desconsiderar a diretriz ética que embasa a resolução.
Terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico” (CFP, https://is.gd/958Ntj).
Sobra que o magistrado já sabe que errou, mesmo que responsabilize terceiros por tão só entenderem o que escreveu: “Considerando a interpretação e a propagação equivocada acerca da decisão proferida […]
Considerando que em nenhum momento este magistrado considerou ser a homossexualidade uma doença ou qualquer tipo de transtorno psíquico passível de tratamento” (https://is.gd/R4SVu0).
A questão, porém, escapa ao que o magistrado interpreta de si para consigo. Ela está no que se consubstanciou como a autorização de um juiz para o exercício da cura gay. Epistemologicamente, uma vergonha para o Brasil.
Imagem Ilustrativa do Post: Manchester Pride 2012 // Foto de: Emma // Sem alterações
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