O juiz de garantias e o sistema acusatório no Brasil

19/03/2020

Dois grandes sistemas (de) marcaram a história do processo penal no mundo. O sistema inquisitorial e depois o acusatório. O primeiro surgiu no centro da Igreja Católica em 1215 no IV Concílio de Latrão, sob o papado de Inocêncio III. Nele não existia o respeito ao contraditório e a ampla defesa, as provas ilícitas eram admitidas e existia a concentração das funções de acusar, defender, investigar e julgar na mesma pessoa.

Já o segundo nasceu na Inglaterra, sob o reinado de Henrique II, a partir da instituição do trial by jury (1166). Tal sistema se caracteriza pelo pleno respeito ao contraditório, ampla defesa e o devido processo legal. As provas ilícitas não são admitidas e há uma radical separação entre as funções de acusar, defender, investigar e julgar. O sistema acusatório seria uma forma de fazer com que as cenas do filme Sombras de Goya não sejam mais repristinadas.

Vale ressaltar que a Constituição Federal de 1988 adotou o sistema acusatório, agora institucionalizado no artigo 3º-A, pela Lei 13.964/2019: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.[1]

Na fase de investigação e recebimento da acusação, atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior, já que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhados. O restante deverá permanecer acautelado no Juiz das Garantias (CPP, art. 3-B, § 3º), com acesso às partes (CPP, art. 3-B, §4º), acabando-se com o uso manipulado de declarações da fase de investigação, porque só vale o produzido oralmente perante o Juiz de Julgamento.[2]

O Juiz das Garantias é responsável (civil, penal e administrativamente) pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (reserva de Jurisdição).[3]

Ademais, incompatível com o artigo 3º-A, a regra do artigo 385, do CPP, porque se não há pedido de condenação ou de condenação parcial, descabe ao Juiz decretar a condenação. Condenar sem pedido é abuso de autoridade.[4]

Por fim, a interpretação prevalecente do artigo 212, do CPP, também não poderá mais subsistir, porque juiz não pergunta porque, desenhando: a) quem pergunta são as partes; b) se o juiz pergunta, substitui as partes; e, c) o artigo 3º-A proíbe que o juiz substitua a atividade probatória das partes.[5]

Nessa perspectiva, só faltou o legislador revogar expressamente o artigo 156, I do CPP, pois não mais pode subsistir (está tacitamente revogado), até para evitar a resistência inquisitória. Dizia o artigo 156, I, do CPP: “Artigo 156.  A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:  I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”.[6]

O juiz de garantias é uma figura já consolidada em países de primeiro mundo como os europeus. É preciso levar a sério a sua existência no ordenamento jurídico. A lei positivou o sistema acusatório, porém é preciso que haja uma mudança de mentalidade também dos operadores do Direito. A mentalidade inquisitória precisa ser abandonada de fato.

Já estava mais que na hora de apostarmos no sistema acusatório, pois este é a via mais pavimentada para radicalizar a democracia em países cuja raízes inquisitórias ainda tendem existir com tanta insistência. Que o velho inquisitivismo não mais perdure em terras tupiniquins e que o sistema acusatório prospere e deixe marcas profundas em nossa era constitucional pós-88.

 

 

Notas e Referências

[1] STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Jorge Behron. A batalha: o velho inquisitivismo não quer morrer — mas o novo nascerá. Conjur, jan. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-06/opiniao-velho-inquisitivismo-nao-morrer-nascera>. Acesso em: 12 jan. 2020.

[2] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal. Conjur, dez. 2019. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal>. Acesso em: 12 jan. 2020.

[3] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal. Conjur, dez. 2019. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal>. Acesso em: 12 jan. 2020.

[4] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. A "estrutura acusatória" atacada pelo MSI - Movimento Sabotagem Inquisitória. Conjur, jan. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem-inquisitoria>. Acesso em: 12 jan. 2020.

[5] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. A "estrutura acusatória" atacada pelo MSI - Movimento Sabotagem Inquisitória. Conjur, jan. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem-inquisitoria>. Acesso em: 12 jan. 2020.

[6] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. A "estrutura acusatória" atacada pelo MSI - Movimento Sabotagem Inquisitória. Conjur, jan. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem-inquisitoria>. Acesso em: 12 jan. 2020.

 

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