Dois fatos, sem qualquer relação aparente, chamaram a atenção na última semana. O festejado Japonês da Federal, tido como um dos personagens mais populares da Operação Lava-Jato, o servidor público Newton Ishii, está prestes a se aposentar. Como assim? Pois é, trata-se de figura ricamente veiculada pela mídia com fortes relações com a materialização da justiça, imbuído do espírito de colaborar de modo firme e implacável no combate à corrupção. Mas a história não foi bem contada, cujos detalhes escaparam ao veloz processo da Civilização do Espetáculo, para homenagear Mario Vargas Losa[1].
O nosso grande herói foi condenado, pasmem, por corrupção e a prática de descaminho, com decisão condenatória confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça. Aliás, no mundo dos fatos, Newton Ishii tão-somente era responsável pela condução de presos para a realização de exames no IML ou para comparecimento em audiências na Justiça Federal. O problema é que não há acesso direto aos fatos!
Com similares processos enunciativos, veiculou-se com alguma repercussão que o jogador de futebol Lionel Messi do Barcelona foi condenado a 21 meses de prisão por fraude fiscal na Espanha, cujos fatos ocorreram entre os anos de 2007 e 2009. A bagatela de dinheiro foi de 4,1 milhão de Euros, valor remetido sem o devido pagamento de tributos para paraísos fiscais, conforme as notícias da imprensa.
A surpresa consistiu na reação de alguns cidadãos, comovidos com a situação do pobre Messi, de criarem grupos de discussão na Internet para “elevar o moral” do jogador. Inclusive ouvi pessoalmente comunicador de importante emissora de rádio aqui da região sul dizendo: “o Messi agora precisa de carinho”!
Os dois acontecimentos revelam com propriedade os problemas relacionados com a construção do senso comum teórico, para utilizar a expressão de Luiz Alberto Warat[2], “designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas.”
Mais do que nunca, a autêntica cidadania exige a cotidiana vigilância hermenêutica, para que não sejamos vítimas da imprensa pobre ou de outros veículos de enunciação de sentidos, sem grande capacidade de discernimento, mas com grande repercussão para construir o imaginário social.
Como menciona Warat, de modo específico em relação ao Direito, mas cujas lições servem para a vida, todos estamos sujeitos às influências por um conjunto de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam de modo anônimo as decisões[3].
A carência de verdadeiros heróis infelizmente leva à fácil circulação e adesão de mensagens e ficções do simples condutor de presos, figura muito distante do que se poderia compreender como responsável pela significação de justiça. Também, mas por motivos diversos, jogador de futebol é rei, desde que seja craque!
A espetacularização da atual sociedade simplifica em demasia o mundo da vida.
Mas em outros casos, a leniência mistura-se com interesses corporativos de “gênios do jogo” que rendem milhões para patrocinadores, induzindo incautos a continuar no mundo real os aplausos dos campos de futebol.
O senso comum teórico referido é útil para bem compreender que em relação aos fatos há uma relação imaginária com eles, erigida por um campo de significações, por meio do qual se determina a aceitabilidade do real, como aduz Luiz Alberto Warat[4].
Certo, mas o que isso tem a ver com o Direito Administrativo, proposta desta coluna no www.emporiododireito.com.br?
A realidade é que no caso brasileiro, o nosso personagem impetrou o Mandado de Segurança nº 14.795, Rel. Min. OG Fernandes, j. em 23.05.2012, contra ato praticado pelo Ministro de Estado da Justiça.
Vejam como a Administração Pública brasileira é complicada em termos de gestão disciplinar, para dizer o mínimo.
Em virtude dos graves fatos, envolvendo o citado servidor público, foram expedidos atos administrativos demissionais. Ora, tão-somente se exerceu o poder administrativo disciplinar, ação administrativa absolutamente correta.
No entanto, além de outro motivo, foi requerida no mandado de segurança a nulidade do Processo Administrativo Disciplinar, pois a comissão processante instaurada não era permanente, conforme exige o artigo 53, §1º, da Lei nº 4.878/1965.
O dispositivo está assim redigido:
Art. 53. Ressalvada a iniciativa das autoridades que lhe são hierarquicamente superiores, compete ao Diretor-Geral do Departamento Federal de Segurança Pública, ao Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e aos Delegados Regionais nos Estados, a instauração do processo disciplinar.
§ 1º Promoverá o processo disciplinar uma Comissão Permanente de Disciplina, composta de três membros de preferência bacharéis em Direito, designada pelo Diretor-Geral do Departamento Federal de Segurança Pública ou pelo Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, conforme o caso
Como referido, houve também a alegação de incompetência da autoridade administrativa que instaurou o Processo Administrativo Disciplinar, mas tal argumento não foi acolhido. Relativamente à aplicação do citado §1º, os Ministros do STJ foram eloquentes ao firmarem o entendimento segundo o qual “a legislação veda taxativamente a constituição de comissão disciplinar ad hoc no âmbito da Polícia Federal, conferindo garantia funcional específica para o exercício da competência disciplinar.”
Em outra passagem do acórdão foi mencionado: “Anoto, mais, que a indicação de comissão temporária, singular para o fato, afronta o direito dos acusados à instrução do processo por comissão permanente, que é o juízo natural para esse fim, na forma do Regime Jurídico da Polícia Federal.”
Pois é, em virtude do erro primário da Administração Pública nosso personagem tupiniquim teve anulado o Processo Administrativo Disciplinar, tornando-se sem efeito a portaria de demissão.
Em outros campos, o colunista Rubén Amón, El País, escreveu artigo de opinião com fortes críticas ao episódio Messi, em especial contra a postura do Barcelona Futebol Clube. Disse de forma clara e retumbante:
Es la razón por la que escandaliza la campaña que el Barcelona ha organizado en simpatía al delincuente. Y el motivo por el que enternece la candidez de los hinchas adheridos, cuya obstinación en defensa del tótem parece hacerles olvidar que las cuentas de la evasión fiscal las pagan los contribuyentes honestos. Y que la insolidaridad de Messi no puede corresponderse con la solidaridad, menos aún incorporándose la turba a la inconsistencia de las teorías conspiranoicas. El Barcelona está encubriendo a un condenado. Y el Barcelona incurre en un ejercicio de irresponsabilidad, probablemente porque la devoción visceral a Messi y la irracionalidad de la campaña en su ayuda servirán de movimiento disuasorio o preventivo a los problemas que arrastra el propio club con la Justicia
Exageros ou não, o fato é que o jogador de futebol, juntamente com seu pai, foi devidamente condenado, com decisão ainda sujeita a recurso, mas a manifestação acima, de fato, vai contra o senso comum construído em outras esferas do imaginário social em Terra Brasilis!
São dois episódios emblemáticos das últimas semanas, capazes de mais uma vez comprovar o quanto as significações são instrumentos de poder, nas felizes palavras de Warat, por meio das vozes incógnitas da defesa dos vultosos interesses econômicos de setores ligados ao futebol ou nas ingênuas – nem tanto assim – marchinhas para homenagens ao Japonês da Federal: Ai meu Deus, me dei mal! Bateu a minha porta o japonês da Federal.
O importante é ter a capacidade do discernimento epistemológico, a final de contas, para quem você vai abrir a porta?
Notas e Referências:
[1] A Civilização do Espetáculo. Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
[2] Introdução Geral ao Direito, Volume I. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 13.
[3] Introdução Geral ao Direito, p. 13.
[4] Introdução geral ao Direito, p. 14.
WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito, Volume I. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994.
LLOSA, Mario Vargas. A Civilização do Espetáculo. Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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