O interesse recursal do “vencedor” e a impugnação da fundamentação da decisão recorrida – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

25/09/2017

O interesse recursal da parte está intimamente ligado à ideia de sucumbência. Em regra será a parte sucumbente (que não obteve tudo aquilo que pretendia obter com o processo) que terá interesse em recorrer, em razão de o recurso ser apto a melhorar a sua situação jurídica definida na decisão impugnada. Há, entretanto, situações em que a parte “vitoriosa” tem interesse jurídico para recorrer.

Essa discussão ganha relevo porque é comum a crença de que não se pode recorrer apenas para discutir o fundamento da decisão, seria preciso impugnar a conclusão (parte dispositiva) da decisão recorrida. Nesta linha, não haveria qualquer utilidade na discussão sobre os fundamentos da decisão, sem que essa discussão tivesse o condão de alterar a conclusão a que chegou o órgão jurisdicional, mesmo porque a fundamentação, em regra, não é acobertada pela coisa julgada material (art. 502 do CPC-15).

Duas são as análises a serem feitas: (i) se a parte vitoriosa (não sucumbente) tem interesse recursal; e (ii) se há interesse recursal na impugnação, tão somente, da fundamentação da decisão recorrida. Parece que as duas possibilidades se mostram viáveis no sistema processual brasileiro.

1. O interesse recursal do “vencedor”.

Além do denominado interesse recursal eventual, que surgirá com a interposição do recurso pela parte contrária (em sendo este recurso provido), há situações onde a parte “vitoriosa” tem interesse recursal.

Basta pensar numa sentença que nega a resolução do mérito (art. 485 do CPC-15) – de modo que o autor é derrotado, e o réu, em certo sentido, se sagra vencedor.[1] Tem o réu, neste caso, interesse recursal, objetivando um pronunciamento de mérito, uma sentença de improcedência do pedido, que lhe conferiria mais segurança jurídica em razão da coisa julgada material.[2]

Haveria ainda a configuração do interesse recursal do vencedor (não eventual), na interposição dos embargos de declaração, no recurso nos casos de coisa julgada secundum eventum probationis e na formação do precedente obrigatório, mas como, nestes casos, também é possível o recurso apenas contra a fundamentação da decisão, essas hipóteses serão tratadas no próximo tópico.

2. Interesse recursal e a impugnação da fundamentação da decisão recorrida.

Existem, ao menos, quatro situações onde se mostra latente o interesse de se recorrer para discutir o fundamento da decisão (i) a interposição de embargos de declaração; (ii) recurso nos casos de coisa julgada secundum eventum probationis; (iii) extensão da coisa julgada à resolução da questão prejudicial incidental; e (iv) formação do precedente obrigatório.[3]

2.1. Interposição de embargos de declaração.

Os embargos de declaração servem, como se sabe, para impugnar qualquer decisão que seja obscura, contraditória, omissa ou que tenha erro material (art. 1.022 do CPC-15), objetivando o esclarecimento ou a integração da decisão impugnada.

É perfeitamente possível, portanto, que se interponham embargos de declaração para se discutir somente a fundamentação (obscuridade, contradição), sem que eventual acolhimento implique qualquer alteração na conclusão da decisão impugnada. O interesse recursal, nestes casos, existe tanto para a parte sucumbente quanto para a que se sagrou vitoriosa.

2.2. Recurso nos casos de coisa julgada secundum eventum probationis.

Nos casos em que a coisa julgada é secundum eventum probationis (a regra nas ações coletivas), não há coisa julgada se a sentença for de improcedência por insuficiência de provas; no caso de improcedência por inexistência do direito, há coisa julgada (art. 103 do CDC).

Embora o réu se sagre vencedor da demanda em razão da improcedência por insuficiência de provas, ele terá interesse recursal para, impugnando a fundamentação, tentar obter uma improcedência pela inexistência do direito, tendo em vista que neste caso a decisão será acobertada pela coisa julgada material, o que lhe trará maior benefício.

2.3. Extensão da coisa julgada à resolução da questão prejudicial incidental.

A extensão da coisa julgada à resolução da questão prejudicial incidental, desde que observados certos pressupostos, prevista no § 1º, do art. 503 do CPC-15, possibilita que a coisa julgada abranja questão resolvida na fundamentação da decisão.[4] Cabe ao recorrente impugnar a resolução da questão prejudicial incidental, pois embora se trate de questão resolvida na fundamentação, se não o fizer a questão se tornará imutável pela coisa julgada.[5]

Deve se ter extrema atenção. Questão prejudicial incidental decidida (ainda que na fundamentação), mas não impugnada, é questão preclusa, não podendo o tribunal, no julgamento de recurso que não tenha impugnado especificamente esta matéria, reexaminá-la.[6]

2.4. Formação do precedente obrigatório.

Sabe-se que o atual sistema processual ampliou, consideravelmente, a utilização de precedentes obrigatórios do Brasil. Embora não se trate de uma novidade instituída pelo CPC-15, decerto a imposição da integridade e coerência prevista no art. 926, bem como o rol dos considerados “precedentes obrigatórios” do art. 927, não deixam mais espaço para se negar a adoção desse sistema de precedentes vinculantes no atual modelo processual.

Comumente se afirma que o elemento normativo do precedente, ou seja, a ratio decidendi encontra-se na fundamentação da decisão.[7] Não é o lugar para se discutir se o precedente confunde-se realmente com a ratio decidendi, tampouco se ele teria mesmo força normativa.[8] De que forma for, é na fundamentação da decisão precedente que o juiz do caso futuro buscará a ratio decidendi, que será utilizada como razão de decidir em outros casos análogos (treat like cases alike), notadamente se esta for extraída de um dos pronunciamentos judiciais insertos no art. 927, do CPC-15.

Mesmo que a parte seja vencedora da demanda, pode acontecer que as razões que levaram a sua vitória não sejam as melhores, podendo desaguar na formação de um precedente que, analisando-se os casos futuros a serem afetados pelo precedente, traga prejuízos concretos à parte em casos análogos. A utilidade do novo julgamento (interesse recursal) pode estar caracterizada mesmo que inexista pretensão de alteração do dispositivo da decisão, mas exista possibilidade de alteração da fundamentação, se a mudança for mais benéfica ao recorrente, seja para evitar a formação de um novo precedente ou por ensejar a superação do precedente existente.[9]

A pretensão da reforma da fundamentação objetiva, nestes casos, a revogação de um precedente formado (overruling); evitar que se forme um precedente que seja desvantajoso à parte; evitar que ocorra uma superação do precedente, diante de uma sinalização (signaling) de uma mudança de entendimento a ser adotada no futuro (prospective overruling). Em todos estes casos não há qualquer pretensão na modificação do dispositivo, mas apenas da fundamentação da decisão recorrida.

O Supremo Tribunal Federal já admitiu Recurso Extraordinário com a finalidade de rediscutir um overrulingprospectivo (STF, RE nº. 647.651/SP, rel. Min. Marco Aurélio), ou seja, um Recurso Extraordinário que discute, apenas, a fundamentação da decisão do TST num caso de despedida coletiva. O TST, no caso, embora tenha reconhecido que não houve abusividade na dispensa coletiva, pois até aquele momento não havia qualquer restrição a este tipo de conduta empresarial, na fundamentação da decisão fixou a premissa de que, em relação aos casos futuros, a negociação coletiva seria requisito essencial para a despedida em massa de empregados. A parte vencedora interpôs recurso extraordinário para o STF, objetivando a rediscussão da premissa fixada em sede de fundamentação, buscando, assim, evitar a formação de um novo precedente vinculante que lhe atingiria em outros casos futuros.

Com efeito, pode-se afirmar que há interesse recursal na impugnação apenas da fundamentação da decisão nestes casos, seja pela parte vencida (que, naturalmente, poderá impugnar também o dispositivo da decisão), seja pela parte vencedora, que tem interesse em evitar que aquela fundamentação possa lhe causar prejuízos concretos em outros casos futuros, evitando-se a formação de um novo precedente ou a superação do precedente existente.


Notas e Referências:

[1] Embora a doutrina elenque esta hipótese como de apelação do vencedor, não parece correta esta interpretação. O réu, quando citado, passa a ter pretensão à tutela jurídica (julgamento de improcedência do pedido do autor), e caso não obtenha o julgamento de improcedência do pedido, não obteve tudo aquilo que poderia obter com o processo, logo também será sucumbente.

[2] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2 [livro eletrônico]: cognição jurisdicional: processo comum de conhecimento e tutela provisória. 5ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 241.

[3] No mesmo sentido, elencando as quatro hipóteses, DIDIER, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 117.

[4] DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 533. Contra, entendendo que a questão prejudicial tem que ser decidida na parte dispositiva para ser acobertada pela coisa julgada: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p.331; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 634.

[5] DIDIER, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 118.

[6] Idem. ibidem. p. 118.

[7] DIDIER, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 118.

[8] Defendendo a existência de precedentes normativos, ZANETI JÚNIOR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes judiciais: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2. ed. Salvador: Juspodivm, p. 201; contra, LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 281-282.

[9] LIPINI, Júlia. Reconstrução do interesse recursal no sistema de força normativa do precedente. In: Civil procedure review. 2014, v.5, p. 16.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Columns // Foto de: Paul Haahr // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/haahr/11763067384

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura