No Mercador de Veneza, William Shakespeare alerta-nos que “o demônio pode citar as Escrituras para justificar seus fins”. Nada mais correto, assevera Pablo Bezerra Luciano, para quem: “Não há nenhuma norma mais elevada ou ideia democrática que não possa ser usada com alguma técnica mais ou menos sofisticada pelo autoritarismo”. [1]
Não é de hoje que os atores da Operação “Lava Jato” vêm - em nome da perversa e maquiavélica lógica de que “os fins justificam os meios” - atropelando direitos e garantais fundamentais. Quando os condutores da “Lava Jato” defendem e insistem no emprego de “métodos especiais de investigações”, “medidas judiciais fortes” e “remédios excepcionais” para combater o crime, especialmente a corrupção, como fez o ex-juiz Federal e agora ministro da Justiça Sergio Moro, operam, sem qualquer parcimônia, defendendo métodos empregados pelo “Estado de Exceção”, como o aniquilamento do “inimigo”, elegido pelo soberano nos moldes de Carl Schmitt e Günther Jakobs.
No julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) do decreto presidencial do indulto editado em dezembro de 2017 pelo presidente Michel Temer - que foi interrompido na sessão da última quinta-feira (29) com pedido de vista do ministro Luiz Fux quando já havia sido atingida a maioria de 6 votos pela constitucionalidade - os tentáculos da “Lava Jato” voltaram a entrar em ação.
Os procuradores da “Lava Jato” mobilizaram a mídia e a opinião pública vociferando aos quatro cantos que caso o decreto de indulto fosse considerado constitucional a famigerada Operação “Lava Jato” e o combate a corrupção estariam ameaçados.
Nesta seara, um procurador da República gravou um vídeo defendendo os métodos empregados pela Operação “Lava Jato” e a inconstitucionalidade do decreto presidencial de indulto.
Em plenário, o ministro relator Luiz Roberto Barroso, inconformado com o resultado que se avizinhava desfavorável, chegou à imprudência de afirmar que “todo mundo sabe o que está acontecendo aqui e todo mundo sabe o que eu penso”. No dia anterior (28) o ministro Barroso já havia afirmado que “não dá para dizer que é contra a corrupção e ficar do lado dos que o praticam”.
A fala do ministro relator provocou reação de quase todos que votaram pela constitucionalidade do decreto presidencial. Desde o excelente voto do ministro Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, até o sempre culto voto do decano, ministro Celso de Mello.
Dizer que aqueles que votaram, acertadamente, pela constitucionalidade do indulto em nome da separação dos poderes, do poder discricionário do Chefe do Poder Executivo e da sua própria soberania, são “favoráveis” a impunidade ou mesmo a corrupção constitui afronta ao próprio STF.
Os magistrados precisam compreender, na esteira de Geraldo Prado, que “as garantias do processo penal são, relativamente às liberdades públicas afetadas pela persecução penal, garantias materiais dos direitos fundamentais”.[2] Mais adiante, o sempre lúcido processualista, afirma que: “O processo penal, pois, não deve traduzir mera cerimônia protocolar, um simples ritual que antecede a imposição do castigo previamente definido pelas forças políticas, incluindo-se nesta categoria os integrantes do Poder Judiciário”. [3]
No que se refere ao instituto do indulto, não é despiciendo dizer que, além de não ser recente, também, não é uma exclusividade brasileira. No Brasil foi inicialmente previsto pela Constituição de 1824, art. 101, VIII.
O indulto pode extinguir a totalidade da pena ou apenas parte dela, neste último caso é chamado indulto parcial ou comutação. Contudo, comutação em sentido técnico-jurídico é a substituição de uma pena, por outra, mais leve.
O Código do Império brasileiro já contemplava várias hipóteses de comutação, movidas pelo sentimento de benevolência. Assim às mulheres, não se aplicava a pena de galés (prevista no Código de 1830), mas sim a pena de prisão, considerada mais leve que aquela, “em lugar e com serviço análogo ao seu sexo”. De igual modo, os menores de 21 anos e os maiores de 60 teriam a pena de galés substituída pela de prisão com trabalho.[4]
Assim como no Brasil, nos Estados Unidos, Canadá e França, o indulto é um exercício do poder discricionário do soberano, no caso, o Presidente da República.[5]
Pelo fato de ser ato exclusivo e privativo da presidência da República (art. 84, XII da CR) alguns autores chegam a sustentar que o indulto é um instituto que guarda resquício absolutista. Neste particular valiosa e pertinente as críticas apresentadas por Leandro Gornicki Nunes[6], segundo o citado autor “a concessão de indulto (individual ou coletivo) pelo presidente da República não caracteriza um ato absolutista, muito menos uma violação da democracia (procedimental ou substancial)”.
De acordo com Gornicki Nunes, “sob o enfoque procedimental: a) é mantida a soberania popular (CR, art. 1º, parágrafo único) e a igualdade de todos perante a lei, com a manutenção da liberdade de pensamento, consciência, crença, expressão intelectual, artística, científica, comunicação, e convicção filosófica ou política (CR, art. 5º); b) há limites constitucionais para a concessão de indulto (CR, art. 5º, XLIII); c) o presidente da República é escolhido em sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (CR, art. 14); d) a competência do presidente da República para concessão do indulto e comutação de penas foi definida pelo poder constituinte originário (CR, art. 84, XII), ficando preservado o checks and balance; e) há previsão de responsabilidade criminal do presidente da República, seja em razão de crimes de responsabilidade (Lei 1.079/50, arts. ) ou de crimes comuns (CR, art. 85 e 86); f) o Ministério da Justiça, por intermédio do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária), permite a participação popular na elaboração do decreto de indulto natalino, por meio do envio de sugestões, como ocorreu em 2012; e, finalmente, g) não há qualquer registro histórico comprovado a respeito do uso dessa competência constitucional para atender interesse pessoal do presidente da República”.
Defenestrar o indulto que beneficiará milhares de presos e presas que vivem encarcerados, em situação degradante e desumana, porque neste ou naquele decreto meia dúzia de presos considerados “inimigos” serão eventualmente beneficiados, é desprezar a história do instituto como redutor dos males da prisão.
Por tudo, é preciso que a sociedade compreenda – goste ou não – que combater o crime, notadamente a corrupção, atropelando direitos e garantias fundamentais, é como jogar o bebê fora junto com a água suja do banho. O direito não pode ser desprezado em nome da perversa lógica de que “os fins justificam os meios”.
Notas e Referências
[1] http://www.conjur.com.br/2013-jun-11/pablo-bezerra-dever-constitucional-obriga-juiz-fundamentar-decisoes?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+ConsultorJurdico+%28Consultor+Jur%C3%ADdico%29
[2] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
[3] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos... ob. cit.
[4] CARVALHO FILHO, Aloysio. Comentário ao Código Penal, v. VI, arts. 102 a 120. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
[5] OLIVEIRA e SILVA, Thiago de. Ensaio sobre o Indulto: Impacto das teorias das Representações Sociais e dos Sistemas (http://www.ibccrim.org.br/site/artigos/_imprime.php?jur_id=10526)
[6] NUNES, Leandro Gornicki. Indulto é uma forma de corrigir erros históricos. (http://www.sedep.com.br/artigos/indulto-e-uma-forma-de-corrigir-erros-historicos/)
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