Parafraseando Maria Rita Kehl, preciso admitir que adoro polêmicas. Não consigo entender a dificuldade que tantos parecem ter em dialogar ou o desgosto de debater. No entanto, o que mais me intriga é o repúdio que vislumbro em relação às diferenças.
Vivemos em um país que, como disse Luiz Ruffato, ainda está na periferia do mundo. Em terras povoadas por machistas, racistas e violentos, reina uma desigualdade brutal, reproduzida por uma sociedade exclusivista e que sufoca aqueles que ousam falar algo distinto do senso comum.
Deixam-se de lado os escrúpulos, para nutrir sonhos de pequenez manifesta, desde que continue a haver um abismo entre os diferentes. O diálogo é impossível, pois faria com que se percebessem as incongruências do sistema e se vissem os marcantes traços distintivos.
Étienne, personagem da obra O Germinal, de Émile Zola, já questionava:
Será que Darwin tinha razão: o mundo se tornaria um campo de batalha, com os fortes comendo os fracos para a melhoria e a continuação da espécie? [...] Se fosse preciso que uma classe destruísse outra, não seria o povo, cheio de vida, que devoraria a burguesia, enfraquecida com tanto luxo?[1]
Mas, enquanto uns aguardam o despertar da “verdade” e da “justiça”, outros estão na sua zona de conforto. E lhes é extremamente incômodo, quiçá ofensivo, simplesmente insinuar um outro tipo de posição.
No ano de 2010, Maria Rita Kehl publicou no jornal O Estado de São Paulo uma coluna intitulada Dois Pesos, de onde se extrai o seguinte trecho:
A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria?
O que há nos meandros da mente humana que enseja tal involução? Por que o diálogo é cada vez mais ausente? Ausente desde a mais estrita – escutar verdadeiramente o outro – até a mais ampla concepção – interlocução de ideias, com o objetivo de se manter a harmonia.
Se em outras épocas se falava em absolutismo do direito divino, favorecimento à nobreza e sufocação da pequena burguesia, por exemplo, não se pode dizer que vivemos uma história muito diferente. Sufoca-se o pobre, o negro, a mulher, o transexual... e por que, ao contrário do que dizia Étienne, a burguesia não se enfraquece? Por que não sucumbe a uma maioria numérica?
Certamente, não é uma pergunta que apresente resposta objetiva ou incontroversa. Mas ouso dizer que a mantença do poder nas mesmas poucas e sujas mãos se dá também por uma razão: pela crença na bondade dos bons. E, como disse Agostinho Ramalho Marques Neto, quem nos salva da bondade dos bons?
Sobre o assunto, interessante é o excerto da obra “Diálogos Impossíveis”, de Luís Fernando Veríssimo, em que Drácula e Batman estariam conversando em uma clínica geriátrica na Suíça. Batman invejava a imortalidade do colega morcego, enquanto este gostaria de poder trocar de lugar quando a Morte chegasse:
- Somos completamente diferentes! - rebate Batman. - Eu sou o Bem, você é o Mal. Eu salvava as pessoas, você chupava o seu sangue e as transformava em vampiros como você. Somos opostos.
- E no entanto - volta Drácula com um sorriso, mostrando os caninos de fantasia – somos, os dois, homens-morcegos... [...]
- A diferença é que eu escolhi o morcego como modelo. Foi uma decisão artística, estética, autônoma.
- E estranha - diz Drácula. - Por que morcego? Eu tenho a desculpa de que não foi uma escolha, foi uma danação genética. Mas você? Por que o morcego e não, por exemplo, o cordeiro, símbolo do Bem? Talvez o que motivasse você fosse uma compulsão igual à minha, disfarçada. Durante todo o tempo em que combatia o Mal e fazia o Bem, seu desejo secreto era de chupar pescoços. Sua sede não era de Justiça, era de sangue. Desconfie dos paladinos, eles também querem sangue. [2]
Talvez, quando usem roupas de morcegos, os paladinos da justiça se satisfaçam um pouco em sua sanha por sangue. O perigo é quando continuam a vestir pele de cordeiro e a destilar seus atos “bondosos”, pois nesse caso conseguem convencer – e geralmente convencer aqueles que não conseguem enxergar além da doutrina midiático-sensacionalista.
Devemos ser realistas, sem fugir à luta. Precisamos nos mover no sentido da proximidade, da democracia e da igualdade substancial. Nada melhor que um dia de eleições para refletir sobre nosso papel nesse sistema e rever as medidas que adotamos no anseio de um mundo mais justo.
Notas e Referências:
[1] Ed. Cia. das Letras, p. 235.
[2] Editora objetiva. p. 174.
Imagem Ilustrativa do Post: Conversation // Foto de: Tobias Zils // Sem alterações
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