Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Escrevi um texto para esta coluna, intitulado “Teoria do Evento Abençoado”, no qual referi que os Tribunais de Justiça brasileiros ainda adotam a Teoria do Evento Abençoado1, para negar a existência de dano extrapatrimonial ou patrimonial no caso de uma concepção indesejada ou indevida. Segundo a teoria do “evento abençoado” o nascimento de uma criança sempre é um acontecimento feliz, é sempre uma benção ou um “evento abençoado”, especialmente na vida de uma mulher, motivo pelo qual não pode ser considerado um dano que enseje reparação2.
Me ocorreu que seria oportuno relembrar o tema neste momento politico do Brasil, em que um dos candidatos à presidência, vocifera em alto e bom tom, que “algumas mulheres são competentes” ou “não te estupro porque tu não merece” ou “mulher merece ganhar menos porque engravida”.
Na oportunidade em que escrevi a coluna sobre a Teoria do Evento Abençoado, mencionei que em reiterados julgados, envolvendo casos de wrongful conception, que pode ser literalmente traduzida como “concepção indesejada ou indevida”3, os julgadores deixaram de conceder indenização por danos extrapatrimoniais às mulheres, sob o argumento de que o nascimento de uma criança é sempre um evento feliz na vida do casal, especialmente da mulher, que pode ter, então, sua sonhada família.
Eis as palavras do Desembargador José Luiz Gavião de Almeida do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Já se disse que ser mãe é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ ser mãe é padecer num paraíso (Henrique Maximiliano Coelho Neto). Não se duvida da dor de ser mãe. Mas ela é compensada, e com sobras, pela vinda do filho que, por isso, não pode ser motivo para justificar dor moral. O sofrimento do torcedor durante o jogo de seu clube é compensado quando da vitória. A dor de curta duração, especialmente quando antecedente de alegria que a suplanta em intensidade, não tem preço (...)4
No entanto, o que eu não referi naquele texto é que em casos análogos, quando há uma gestação indesejada ou não planejada, mas agora fruto de uma cirurgia de vasectomia inexitosa, estes mesmos Tribunais têm concedido a reparação por danos extrapatrimoniais aos homens.
Mas por que o diferente entendimento?
Simples. Os julgadores entenderam que estes homens tiveram sua honra ofendida em virtude da suspeita de adultério. Uma vez que submetidos a cirurgia de vasectomia, não poderiam engravidar suas esposas ou companheiras e, portanto, a única explicação para a gravidez seria a traição!
Em 2005, o Desembargador Luiz Ary Vessini de Lima, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, concedeu dano moral a um homem, submetido a cirurgia de vasectomia malsucedida, por conta do clima de desconfiança gerado entre o casal:
(...)No caso presente, o dano moral mais se consubstancia, porque surgiu no seio da entidade familiar o clima de desconfiança de que a terceira criança que veio a nascer, gestada pela segunda autora, não fosse filha do primeiro autor, face à segurança de infertilidade que o casal pensava ter, como resultado da vasectomia. Há prova, pertinentemente referida na sentença, sobre os comentários desairosos ocorridos na pequena comunidade onde vivem os autores(...)5.
No mesmo sentido, o Desembargador Tasso Caubi Soares Delabary:
Afora isso, no caso específico dos autos, impende destacar que a gravidez objeto da controvérsia foi a quinta do autor que buscou o procedimento justamente porque não teria condições de sustentar outro, e a terceira da autora o que potencializa os danos diante do inesperado exame positivo para a gestação. Ademais, a prova testemunhal dos autos evidencia os transtornos experimentados pelo casal, pela suspeita de adultério.6
A ofensa a honra do homem que acreditou ter sito traído, também serviu para amparar a concessão de reparação pelo dano extrapatrimonial no voto proferido pelo Desembargador Jorge Luiz Lopes do Canto:
(...)Alegou que em outubro de 2006 sua mulher descobriu que estava grávida de 07 (sete) semanas, fato que ocasionou uma grave crise conjugal, passando o autor a duvidar da fidelidade e lealdade de sua esposa, além de ser alvo de chacotas de todo gênero. Destacou que após esses fatos realizou um novo espermograma, onde restou constatado que não estava estéril.(...)
(...)Ressalte-se que o dano moral ora deferido não advém de eventual erro médico, mas em razão da propaganda enganosa veiculada pelo réu, que garantia a eficácia do procedimento, o que gerou inúmeras desconfianças no autor acerca da fidelidade de sua esposa, fato este incontroverso nos autos.(...)7
Assim, enquanto de um lado uma mulher que tem a liberdade e autodeterminação8 violadas por conta de uma concepção indesejada, não faz jus a reparação pelos danos extrapatrimoniais experimentados, o homem “traído” aos olhos dos vizinhos, sim, merece reparação. Afinal, pensem no desprestígio a que foi submetido este homem que duvidou da fidelidade da sua esposa!
Às claras, as palavras vociferadas pelo referido candidato à presidência estão implícitas nestes julgados, proferidos por Tribunais, ainda, majoritariamente compostos por homens. Certamente, o pensamento refletido nestes julgados será legitimado caso chegue a presidência aquele que prega o menosprezo às mulheres. Estamos mesmo dispostas a permitir o retrocesso?
Por fim, apenas para que fique claro, não se pretende aqui sustentar que o nascimento de uma criança seja um dano9.
Notas e Referências
1Nos anos cinquenta a Corte da Pennsylvania, ao julgar improcedente o pedido de reparação pelos danos advindos do nascimento de uma criança não desejada, formulado pelos pais em face do médico responsável (caso Shaheen v. Knight), considerou que o nascimento de uma criança, em qualquer hipótese, deve ser considerado um “evento abençoado”, colocando-se fora da moldura do conceito de dano indenizável.
2 SILVA, Rafael Peteffi da. RAMMÊ, Adriana Santos. Responsabilidade Civil pelo nascimento de filhos indesejados: Comparação jurídica e recentes desenvolvimentos jurisprudenciais. Revista do CEJUR/TJSC, Florianópolis, v. 01, n. 01, dez. 2013. Disponível em: https://revistadocejur.tjsc.jus.br/cejur/article/view/28. Acesso em: 23/06/2017.
3 NARDELLI, Eduardo Felipe. DE SÁ, Priscila Zeni. Concepção indesejada (wrongful conception), nascimento indesejado (wrongful birth) e vida indesejada (wrongful life): Possibilidade de reparação na perspectiva do Direito Civil – Constitucional Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, Curitiba, v. 2, n. 2, jul./dez., 2016.
4 Apelação Cível 2097364700, Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Antônio Vilenilson.
5 Apelação Cível Nº 70012464111, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ary Vessini de Lima, Julgado em 15/12/2005)
6 Apelação Cível Nº 70042848481, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em 20/07/2011)
7 Apelação Cível Nº 70034402461, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 28/05/2010
8 NARDELLI, Eduardo Felipe. DE SÁ, Priscila Zeni. Concepção indesejada (wrongful conception), nascimento indesejado (wrongful birth) e vida indesejada (wrongful life): Possibilidade de reparação na perspectiva do Direito Civil – Constitucional Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, Curitiba, v. 2, n. 2, jul./dez., 2016.
9 Nesse sentido, Marcos Catalan afirma que no caso de uma gravidez indesejada, o dano ata-se não apenas a violação a projeto de vida, mas aos custos econômicos que surgem antes mesmo do nascimento de uma criança e ao custo ligado ao seu sustento e educação. CATALAN, Marcos. Um pequenino ensaio acerca de contraceptivos ineficazes e da reparação de danos atados à violação de projetos de vida. Empório do Direito, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/um-pequenino-ensaio-acerca-de-contraceptivos-ineficazes-e-da-reparacao-de-danos-atados-a-violacao-de-projetos-de-vida/ Acesso em: 23/06/2017.
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