O homem como a “cidade da natureza”

19/08/2018

 

Introdução.

A partir da filosofia de Santo Agostinho[1], que considera o homem um ser “intermediário entre os animais e os anjos”, discute-se a humanidade do Ser Humano e os valores éticos relacionado com o respeito à vida, sob todas as formas, na sociedade moderna.

É indene de dúvida ou discussão que dentre todos os seres vivos do planeta terra, o Ser Humano é o maior predador e degradador do meio ambiente natural. O Ser Humano, dadas as condições sociais e econômicas, degrada o meio natural para sobreviver ou para auferir proveito de ordem financeira, sempre tratando a natureza de forma utilitária, como um bem a serviço do homem.

A relação do Ser Humano com a natureza ainda se reveste da visão antropocêntrica, uma forma de pensamento filosófico ou de crença religiosa que atribui ao Ser Humano uma posição de centralidade em relação a todo o universo, ou seja, o homem é o ser que está no centro do universo, sendo que todo o restante gira ao seu redor. Nessa perspectiva, a natureza é “preservada”, porém, subjugada pelo Ser Humano como um instrumento a seu serviço e disponível para uso e fruição.

O presente artigo retoma o debate sobre as teorias éticas de relacionamento do Ser Humano com a natureza e introduz a discussão sobre a humanidade do Ser Humano na perspectiva de que o homem é a “casa da natureza” e, por esse motivo, é fonte de bondade.

O contraponto ao antropocentrismo.

A revisão da relação entre o homem e a natureza foi alinhada, basicamente, sob a base ecocentrica e biocentrica.

O ecocentrismo defende o valor não instrumental dos ecossistemas e determina que para o equilíbrio do ecossistema, o Ser Humano deve limitar determinadas atividades agrícolas e industriais, assumindo o seu lado biológico e ecológico como parte da natureza. Pelo ecocentrismo há o fortalecimento da política ambiental relacionada com o licenciamento de atividades com impacto no meio ambiente, sejam atividades de ordem urbana ou rural, industrial, comercial ou agraria.

Já o biocentrismo, por sua vez, vincula-se a lógica biológica de valoração dos seres vivos, independentemente da existência do Ser Humano. Pela teoria, a vida é considerada um fenômeno único, tendo a natureza valor intrínseco, e não instrumental, gerando uma consideração de respeito para os seres vivos não integrantes da raça humana.

A teoria biocentrica é o fundamento da defesa dos direitos dos animais, movimento que vai de encontro a coisificação dos animais ou sua utilização para práticas desportivas e culturais, chegando a colocá-los como sujeitos de direitos. Sob o ponto de vista normativo, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da UNESCO, datada de 27/01/78, que influenciou a elaboração de inúmeras leis, inclusive no Brasil e, ainda, tipificou como crime a pratica de maus-tratos de animais, conforme art. 32, da Lei n.º 9.605/98 e o banimento das práticas de crueldade, considerando que os animais irracionais possuem direito à vida.

A inovação legislativa mais contundente envolvendo o biocentrismo ocorreu na Constituição do Equador, atribuindo à natureza o status de sujeito de direitos, ou seja, aquele a quem se pode imputar direitos e obrigações através da lei.

As concepções éticas ambientais na constituição federal de 1988.

A Constituição Federal de 1988 adota a teoria antropocêntrica, porém, há mitigações envolvendo o ecocentrismo e o biocentrismo. Assim, embora o caput do art. 225 seja antropocêntrico, instituindo que o meio ambiente é um direito fundamental de todos os Seres Humanos (presentes e futuros), submetendo a natureza à condição utilitarista e prescrevendo que o meio ambiente é um bem de pertencimento do Ser Humano; é possível ver a presença do ecocentrismo e do biocentrismo no dispositivo do inciso VII, §1º do art. 225, quando há determinação para o Poder Público proteger a fauna e a flora.

A presença das três teorias no ordenamento jurídico, embora possa parecer esdrúxulo, representa o período de transição vivido pelo legislador Constituinte no ano de 1988, servindo atualmente de fonte para o debate legislativo e para a busca da harmonia, do equilíbrio e da sustentabilidade do planeta.

O homem como a “cidade da natureza”

A vida moderna e todas as usas vicissitudes atravessa o Ser Humano ao meio, embaraçando hábitos, costumes, culturas e comportamentos éticos de forma que acaba por promover um esvaziamento da essência do homem pelo homem. A filosofia de Santo Agostinho, ao tentar decifrar o enigma do homem, descreve que o homem não é apenas um corpo racional ou uma alma racional, ao contrário, tudo indica que o “homem não é só corpo ou apenas alma”, mas constituído de alma e de corpo, fixando que a alma não é todo o homem, nem todo o homem é o corpo, mas a porção interior do homem e, “quando as duas estão juntas, temos o homem” um Ser que compreende a morada de Deus e, ampliando a visão de Santo Agostinho, é possível dizer que o homem representa a morada da natureza.

O homem, sendo a “morada” e a “cidade da natureza”, não pode ser o transmissor ou executor da maldade, da destruição e da violência, ao contrário, segundo Santo Agostinho, “o corpo é matéria, criação de Deus, e por isso é bom”; portanto o homem é um Ser cuja essência, além de boa, encontra-se preparada para fazer o bem e para viver em harmonia com os demais seres do planeta terra.

As mazelas praticadas pelo Ser Humano, em desfavor da natureza, são fruto da corrupção da essência do homem que obscurece e inibe a ascensão da humanidade imanente que deveria exalar nas relações sociais, políticas, econômicas e ambientais. O corpo humano, na vida moderna, transporta o ódio, a violência, o desprezo e a insensibilidade; expressões de um modelo de vida e de sociedade que despreza o âmago da vida através do vilipêndio da dignidade e pela cultura que corrói a paz social. Assim, muito embora as práticas indiquem o contrário, o Ser Humano não é o cárcere e muito menos o carcereiro da perversidade, pois é um Ser bom, cujo corpo foi corrompido pelas agruras e pelos sofrimentos provocados pela vida em uma sociedade capitalista do consumo e da individualidade.  

Para estancar o processo de corrupção do Ser Humano, é necessário realizar uma completa revisão dos paradigmas de organização social, revendo de forma especial o modo de vida dos Seres Humanos em sociedade. Aspectos relacionados com a divisão da sociedade em classes sociais, que representa verdadeiro estamento de injustiças; o combate e a redução da miséria e da fome, minorando a crueldade da sociedade de consumo; a repartição da terra de forma justa, reduzindo a força especulativa no meio rural; a busca pelo pleno emprego, fortalecendo a dignidade do Ser Humano e o respeito as diferenças compõem importantes políticas públicas e privadas que podem colaborar para o bem estar do homem e, por via de consequência, permitir que a humanidade seja a marca de expressão do homem nas relação sociais. Lado outro, sem que se altere o modelo de desenvolvimento social excludente, iníquo e violador dos direitos humanos, será pouco provável que o Ser Humano exteriorize a face da humanidade nas relações socioambientais, expressão indissociável de quem deve ser a cidade ou a morada da natureza.

Conclusão

A perspectiva maniqueísta, impondo que toda natureza material é essencialmente perversa e má, enquanto que a bondade é algo distante, relegada ao mundo espiritual; precisa ser revisada, pois, o Ser Humano é bom por essência, sendo o mundo responsável por alterar as bases do equilíbrio entre os seres vivos, relegando o Ser Humano ao plano da miséria social e corrompendo a natureza da bondade humana.     

O homem, representando a “cidade da natureza” deve ser respeitado em sua dignidade para que a lógica biocentrica da convivência entre os seres vivos seja uma realidade ética e global, com isso, no dizer de Boff (2000, pg. 105)[2] o homem externa o Ser do cuidado com os Seres Humanos e com a Terra, abandonando o Ser da razão mercadológica. 

    

Notas e Referências

[1] Disponível em https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_o_livre-arbitrio.pdf. Acesso em 17 de ago. 2018.

[2] BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: Letra Viva, 2000.

 

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