O GRITO DO MUDO INVISÍVEL. Uma breve reflexão sobre o conto “O capote” frente ao Direito Contratual

03/07/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Curvava-se. Curvava-se cordialmente. Curvava-se vergonhosamente. Curvava-se sem saber o porquê. De tanto se curvar, sua postura já era reprimida. De tanto ser alvo de injustiças, vivia ignorando que essas ocorriam diariamente em sua vida.

Talvez fosse ironia do destino. Ou seria proposital? Fato é que nosso protagonista, Akaki Akakiévitch, era um funcionário público, conselheiro titular que exercia a profissão de copista. Sua tarefa era meramente copiar, trabalho esse que por si só é naturalmente desincumbido de prestígio e intelectualidade. E parece que da falta disso, ele se abastou. Criou sua própria realidade, sentia felicidade e prazer em transcrever. Em verdade, mais que isso: dentro de sua banal e pacata vida, cegamente, seu labor lhe atribuía sentido e proposito.

Nesse cenário, Akaki passa por cima de diversas oportunidades de crescimento. Ele se manteve inerte por não acreditar ser capaz de atribuições maiores. Se limita ao que sempre fez por acreditar que é tudo que sabe fazer. Infectado por sua hipossuficiência em praticamente todos os âmbitos de sua vida, financeira a pessoal, ele se sente incapaz de mais, inabilitado de ir além.

Ao se traçar uma analogia com o direito contratual, pode-se dizer que Akaki se via inteiramente colado em seu contexto de vida, de tal maneira que se vê meramente cumprindo com o que foi destinado desde que nasceu, como se sua vida estivesse regida pelo “pacta sunt servanda”, se sentindo desincumbido de escolha.

Digo isso pois o referido princípio contratual significa a força obrigatória dos contratos, sendo que essa “[...] tem força de lei o estipulado pelas partes na avença, constrangendo os contratantes ao cumprimento do conteúdo completo do negócio jurídico” (TARTUCE, p.95) [1]. Nesse sentido, o protagonista se sente incapacitado de relativizar essa força, pois acredita não ser dotado de autonomia de vontade perante sua própria vida, como se sua vivência fosse um mero conglomerado de atitudes repetitivas que ele se comprometeu em realizar.

Cabe ressaltar, contudo, que isso é novamente mero delírio de Akaki, uma vez que o pacto que ele se comprometeu é feito com ele mesmo. Essa crença formada pelo protagonista o fez crer, durante toda sua vida, que ele estava destinado àquelas condições. Assim, sendo ele unilateral, não há motivo para manter-se restrito a esse, uma vez que, na verdade, ele mesmo estipulou para si as condições que o limitam de ter crescimento.

De qualquer forma, tudo muda quando Akaki se vê obrigado a buscar um novo capote, visto que, mesmo com remendos, o seu não serviria mais para suportar o forte inverno de São Petesburgo. Sem condições de arcar com o preço cobrado pelo alfaiate, que, assim como em um contrato de adesão, apenas impôs suas “cláusulas” de modo geral e abstrato (GOMES, p. 3) [2] a fim de vender seus serviços, Akaki conseguiu a flexibilização do preço, que o permitiu fazer um novo capote.

No entanto, a fim de garantir o dinheiro para comprar o casaco, Akaki é compelido a passar por cima de direitos inerentes à pessoa humana  a fim de preservar sua vida e não morrer de frio. Fato é que a ordem econômica de um país, a autonomia privada e as regras de livre mercado devem sempre ser dinamizadas tendo em vista a promoção da existência digna, disponível a todos (PINTARELLI, p.41) [3].

Sendo assim, conclui-se, ao analisar a situação sob o prisma da transsubjetivação e da transobjetivação (FACHIN, p. 30)[4], que não se pode dizer que se trata de uma relação equilibrada, porquanto Akaki dispõe de direitos fundamentais a fim de cumprir um contrato, que tem por objetivo a compra de um adereço para a preservação do próprio direito à vida, de certa forma.

O desfecho é que Akaki consegue seu capote, mas isso não mais importava. O casaco não o aquecia mais, estava despido de direitos. Na sua única chance de suplicar por dignidade, foi espremido a sua condição hipossuficiente. Assim, sem voz, que levam seu capote. Mudo, corre atrás. Mudo, pede ajuda. Porém não se escutam mudos.

Além disso, por estar despido de direitos, era invisível.  Sendo invisível, não é pessoa. Não sendo pessoa, não há motivos para o General ajudá-lo, se não o usar, com a intenção de se mostrar forte. Nesse momento, reduzido a um mero objeto invisível e mudo, desapareceu.

Há boatos que ele assombra aqueles que vestem belos capotes. Não diria assombração, pois não se trata de ser sobrenatural. É real. É mudo. É invisível. Nas palavras de Chico Buarque, Milton Nascimento, digo: “Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me dano/ Quero lançar um grito desumano/ Que é uma maneira de ser escutado" [5]. E assim, gritam milhões de Akakis, na esperança de serem ouvidos.

 

Notas e Referências

[1] TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Vol. 3 - Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie, 14ª edição.; Grupo GEN, 12/2018. 9788530984014. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530984014/. Accesso em: 24 Jun 2020

[2] GOMES, Orlando. Contrato de adesão (condições gerais dos contratos), São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 3

[3] PINTARELLI, Camila. Os direitos humanos e a ordem econômica brasileira. Revista da faculdade de direito da UFMG, n. 64, p. 335-378, 2014.

[4] FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 30. “[...] de um lado, a transsubjetivação (quem contrata não mais contrata somente com quem contrata), e de outro a transobjetivação (quem contrata não mais contrata apenas o que contrata) ”.

[5] NASCIMENTO, Milton; BUARQUE, Chico, “Cálice (Cale-se)”.Youtube. Disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=RzlniinsBeY. Acesso em: 24/06/2020

 

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