Esta frase corre as redes sociais e se estabeleceu como referência sobre o gozo do presente: “Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver” (Dalai Lama).
As pessoas chamam o sujeito de “dalai lama”. Acho muito engraçado dizer-se efusivamente o que não se sabe. Duvido que a maioria dos que o citam saiba que significa “sacerdote supremo”, título de Jetsun Jamphel Ngawang Lobsang Yeshe Tenzin Gyatso, que é seu nome.
Não gosto de quem, de qualquer modo, sob qualquer pretexto, se tem por supremo. Dedico a tais tipos minha suprema indiferença. Mas a frase em si (apotegma, para quem tem o “supremo” por sábio; anexim para quem o sacerdote é mera figura popular) é o que quero discutir.
Considero que estas afirmações que “ensinam” que o hoje deve ser o momento de viver a vida – ocasião em que algo “pode ser feito” – são desconectadas da realidade. Ninguém pratica isso, mesmo que curta a frase, publique-a em suas redes sociais e se declare adepto da ideia.
O dalai é o chefe do lamaísmo, um budismo xamanístico (mágico-religioso). Como xamã, intermedeia as relações entre a vida profana (que eu vivo e gosto) e o que seria a dimensão sobrenatural que os comuns não percebemos (acho essas formulações explicativas do mundo bem delirantes).
Para essa crença, o hoje é o que importa. Isso cabe na tradição lamaísta porque sua concepção da realidade recomenda a existência contemplativa e veda a intervenção nas decorrências naturais: o mundo é como é, contempla-o, sente-o, deixa-te tomar por ele, mas não interfiras nele.
Edito publicação de Eliana dos Santos no Facebook de Larissa Campanille: “Isso que é ser mestre, faz você se interessar por caixa de papelão, logística de gado... Até onde vai com tanta inteligência? Ao final de uma palestra você agradece por fazer parte de todo esse ensinamento”.
E segue o comentário: “Ele faz com que você queira saber mais. Inteligência pura...” Então, refere Yukio Takada: “‘O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir’”. E arremata: “É isso o que ele faz com seus alunos: querer saber mais”.
Isso se coaduna bem melhor com a nossa realidade. Temos, no cotidiano, muito mais preocupação em obter as condições que são aludidas pelo professor Takada do que em nos entregar à mera curtição do dia, sem considerar que temos passado e que viveremos, de fato, no futuro, não é?
Bem sabemos que não há gesto nosso no presente que não seja informado pela nossa história pessoal e coletiva, e não há um único dia em que não pensamos sobre o futuro, em que não investimos nele, em que não o comprometemos. Muitas vezes até o gozamos antecipadamente.
A cultura contemplativa do mundo, fora do interior da Ásia (ou na tradição estoica dos antigos gregos e dos cristãos primitivos, que a repercutiram, ensinados por Paulo de Tarso), é muito legal para o fim de semana. Vou a um templo, dou-me por contemplante das coisas todas e me alivio.
Um alívio puramente catártico, para gozo passageiro. Na realidade da segunda-feira retorno ao batente, planejando meus sonhos, apostando sobre o devir, buscando condição para mim e para meus entes queridos. Ainda bem, aliás, que é assim, ou a História não se movimentaria.
Dificilmente nos declararemos em final de construção da existência. Não conheço quem, gozando de saúde, dê-se por obra acabada e se ponha num arquivo existencial. Viver é um estado constante de contabilidade do passado e desenho de panorama futuro. O presente é fugacidade, só.
Todos queremos um futuro melhor, portanto, ao contrário de Tenzin Gyatso, defendo que amanhã é, tanto quanto foi ontem e é hoje, o dia certo para amar, acreditar (ou manter uma dúvida metódica), fazer e, principalmente, viver, pois quem não vive o porvir já está falecido e não se apercebeu.
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