Coluna Stasis / Coordenadores Luiz Eduardo Cani e Sandro Luiz Bazzanella
Milhares de pessoas vêm protestando Brasil a fora durante a pandemia do COVID-19. Além de não seguirem as recomendações das organizações de saúde, juntando-se em aglomerações, clamam por intervenção militar, defendem o fechamento de instituições democráticas (Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal) e o famigerado AI-5, entre outras pautas golpistas e autoritárias. Desejam, no fundo, retornar a um tempo que não existe mais e que jamais existiu tal qual imaginam. Muito pelo contrário, trata-se de um dos períodos mais horrendos da história de nosso país, marcado por um terrorismo estatal institucionalizado que torturava, matava, abusava, estuprava, perseguia, censurava, entre outros crimes contra a humanidade praticados por agentes estatais naquela época (amplamente documentados por fontes oficiais e historiográficas).
Apesar da retórica extremista negar a existência do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar é esse mesmo discurso que, de modo esquizofrênico, demanda a volta da ditadura. Nega a existência e, ao mesmo tempo, pede a retomada de algo que, antes, diz jamais ter existido. E o pior: não consegue sequer perceber a contradição discursiva. Esquecem-se que nunca tivemos tantos militares na cúpula do governo executivo no regime democrático (inclusive nunca tivemos tantos militares no poder legislativo em âmbito nacional), de forma que podemos dizer tranquilamente que se trata de um governo civil-militar, mas, ainda assim, os manifestantes desejam maior intervenção militar. Alguns almejaram tanto que o desejo foi atendido: a página do Quebrando o Tabu mostra um policial prendendo um protestante que pedia intervenção militar. E não é que o desejo dele foi atendido? Não entendi o porquê do desespero posterior à prisão... afinal, não era justamente isso que ele desejava? O fato dele gritar pela ajuda do pai nesse momento é simbólico. Não é a toa que ele também clamava pela ajuda de outra “autoridade paterna” momentos antes... como diria Zé Ramalho em “Chão de Giz”: Freud explica.
Ou seja, para tentarmos compreender tal fenômeno precisamos, antes de tudo, admitir que estamos observando um acontecimento social novo e inusitado (sequer antecipado pelas melhores ou piores distopias), com novas peculiaridades, características e nuances que precisam de maior estudo e atenção pelas ciências sociais, mas podemos perceber que possui algo em comum com outros movimentos de épocas aparentemente distintas e passadas: tal ala do movimento bolsonarista abdicou completamente da racionalidade crítica. Não estamos aqui tratando do plano da razão em que teses podem ser refutadas com argumentos lógicos e racionais, no qual existe um debate público de ideias contrapostas que podem resultar, ou não, em alguns consensos ou, pelo menos, na deliberação de projetos construídos coletivamente em prol do bem comum. Como disse o próprio Presidente da República na última manifestação: “Não estamos aqui para negociar”. Mas o que isso significa? Ora, que não há disposição para fazer parte da política, porque ela só é realizada dentro do âmbito do diálogo e do debate, da negociação e dos acordos, dos dissensos e dos consensos.
Bolsonaro parece inconformado com os limites inerentes às normas do regime democrático. Ele deseja, absolutamente, nenhum limite. Afinal, pode-se perceber nas suas próprias palavras – quando diz “A Constituição sou eu” – esse desejo absolutista (que remonta a famosa afirmação “L’État c’est moi” do Rei Luís XIV) por um poder ilimitado. Tirânico, portanto. Contudo, a capacidade política de articulação de Jair Bolsonaro é tão estreita e limitada que sequer possui capacidade suficiente para ser o líder fascista que almeja ser. A sua participação nas últimas manifestações golpistas foi condenada por todos os lados do espectro político democrático (parlamentares, ministros, veja-se a chuva de notas de repúdio das mais diversas associações e instituições, entre outros), inclusive por antigos aliados (MBL, os governadores João Dória e Wilson Wiltzel, etc.) e por atuais movimentos que fazem parte do governo bolsonarista (ressalte-se, aqui, os militares e os “partidários” da Operação Lava Jato).
Aos que temem um golpe militar nesse momento responderia com relativa tranquilidade que Bolsonaro não possui qualidades suficientes para ser um ditador, tamanha a sua pequenez e mediocridade. Precisamos admitir que líderes autoritários necessitam de algumas características para ascender e sustentar-se politicamente, como, por exemplo, a retórica, mas sabemos muito bem que a capacidade de articulação de ideias e frases não é o ponto forte do Presidente, que apenas sai para a rua quando não há previsão de debate. Quem sabe se debates fossem agendados (com os devidos cuidados sanitários, é claro!) em frente ao Palácio do Planalto talvez o capitão não passasse a seguir as medidas de isolamento (que ele mesmo sancionou por lei...). Afinal, quando debates políticos ocorrem ele costuma ficar isolado socialmente, não é mesmo?
Os militares que sustentam seu governo sabem muito bem dessa incapacidade salvacionista do Messias, ao contrário de alguns cegos, fanáticos ou iludidos... aliás, já sabiam há muito tempo de seu temperamento incontrolável, uma vez que fora por isso, entre outros motivos, que o antigo tenente se tornou capitão na reserva do exército brasileiro. Na verdade, qualquer pessoa com o mínimo de bom senso e humanidade conseguiria visualizar sua pretensões fascistas e genocidas ao longo de sua vida pública (bastaria para isso ver as declarações apoiando a tortura, a morte de opositores políticos e pessoas com visões ideológicas distintas, as falas racistas e misóginas, entre tantos outros impropérios e absurdos éticos e jurídicos que ele costuma proferir impunemente).
Lembramos, no entanto, do oportunismo dos militares que aproveitaram o fenômeno do bolsonarismo para novamente voltar a governar (já que a intervenção militar na política é uma constante na história brasileira) e também que foram eles, no passado recente, a insuflar no meio social tais sentimentos antidemocráticos ao questionar publicamente decisões importantes do Supremo Tribunal Federal, sobretudo no que diz respeito ao debate jurídico da constitucionalidade da prisão em segunda instância que dizia respeito o caso do ex-presidente Lula. E, aqui, reside o maior perigo que precisamos nos preocupar: não em Jair Bolsonaro, mas sim nos militares. Vale lembrar, entretanto, que eles já estão governando e, além disso, precisamos nos dar conta que provavelmente continuarão presentes na vida política do país por um bom tempo.
De qualquer forma, aos que alegam que o Presidente possui um amplo apoio popular, o que é essencial para a implementação de um golpe e manutenção de um regime ditatorial, mostra-se importante observar que o grupo de manifestantes golpistas compõem a parcela minoritária dos movimentos que dão sustentação ao bolsonarismo, sendo apenas o grupo mais abjeto e barulhento. Isto é, eles são a minoria ruidosa, não mais silenciosa como outrora. Evidentemente perigosa e raivosa, porém, ainda assim, um grupo pequeno e minoritário dentro de todo espectro político e social brasileiro. Nesse sentido, o líder está isolado politicamente com esse grupo de seguidores. Podemos interpretar o crescimento das manifestações autoritárias presidenciais como uma reação desesperada pela perda de apoio em virtude da forma como está administrando a crise da pandemia.
O investimento governamental na política de morte (necropolítica, para utilizar a expressão de Mbembe) está atormentando a saúde mental do povo brasileiro com essa aposta no caos que gera apenas angústia, ansiedade e insegurança. A perda de apoio de pessoas que antes foram seus eleitores pode ser explicada pelo descaso com a vida humana de maneira mais direta, já que são pessoas muito próximas e amadas que fazem parte do grupo de risco. E poucos estão dispostos a abrir mão dessas vidas e simplesmente deixá-las morrer, para lembrar de uma das facetas do governo biopolítico da população. Quando toca a vida de pessoas que nutrimos afetos positivos (amor, amizade, carinho, companheirismo, etc.) o bom senso parece superar o fanatismo. Mesmo assim, deve-se sempre manter o olhar atento a esse grupo de indivíduos fanáticos, pois a ausência de pensamento crítico cede espaço aos mais diversos afetos humanos negativos (medo, ressentimento, ódio, etc.) que podem ser perigosamente alvos da governança.
Alguns avaliam Bolsonaro como psicopata, outros questionam sua capacidade de discernimento mental (como Miguel Reale Jr e Janaína Pascoal, os propositores do processo de impedimento da ex-presidente Dilma Roussef). Não nos julgamos com capacidade técnica de realizar tal diagnóstico, visto que não somos psicólogos ou psiquiatras. No entanto, creio que possamos afirmar, para dialogar com Eliane Brum, que vivemos um governo dos perversos. Fanáticos que desejam perverter a ordem democrática em prol da ditadura, perverter as normas constitucionais em prol dos atos institucionais, perverter a política em prol da antipolítica, perverter a política da vida em prol da política da morte, perverter a democracia em prol do fascismo. Por isso, a tarefa fundamental hoje é investigar a psicopolítica do governo dos perversos. Para que o autoritarismo nunca mais se repita, pois estamos juntos com Ulisses Guimarães: “temos ódio e nojo à ditadura”!
Imagem Ilustrativa do Post: Legal Gavel & Closed Law Book // Foto de: Blogtrepreneur // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143601516@N03/27571522123
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode