O GENOCÍDIO NA ÓTICA DO JURISTA POLONÊS RAPHAEL LEMKIN: (RE)VISÃO HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA  

02/07/2020

“Ninguém nasce odiando o outro pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar”. (Da autobiografia “O longo caminho para a liberdade”, 1994).

Raphael Lemkin nasceu no dia 24 de junho de 1900 no povoado de Bezwodne na Polônia (a época era Rússia Imperial, atualmente Bielorrússia) — foi um advogado, jurista e defensor em plenitude dos direitos humanos essenciais de ascendência judaica, que em decorrência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e consequente perseguição aos judeus, precisou emigrar para os Estados Unidos em 1941. Ainda durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), manifestou interesse profundo pelo genocídio armênio (1915-1923) e participou ativamente das Ligas das Nações (1919-1946) — organização internacional que tinha como finalidade principal discutir e promover a paz mundial entre as nações. Portanto, Lemkin ansiava eliminar definitivamente o massacre contra determinada população (a “barbárie”) e a aniquilação de cultura (o “vandalismo”). [1].

Dado o exposto, não há muitas informações sobre a infância de Lemkim — sabe-se que seu pai era Joseph Lemkin (fazendeiro conhecida da região) e sua mãe Bella Lemkin (filósofa, pintora, linguista e colecionadora de arquivos históricos e literários). O jovem Raphael com apenas 14 anos, sobretudo, por incentivo de sua mãe já era fluente em nove línguas: inglês, francês, espanhol, hebraico, iídiche, russo, dentre outras. Posterior a conclusão do colegial em Białystok, ingressou na Uniwersytet Jana Kazimierza (atualmente Ucrânia) para estudar linguística — onde já no primeiro ano começou a interessar-se pela criminologia (punição), que a posteriori iria associar-se a categoria “genocídio”, em decorrência de evento trágico como — o Massacre de Simele de 1933, onde forças do Reino do Iraque massacraram os assírios no norte do país resultando em mais de 3.000 mortes. 

Em virtude dos fatos mencionados, mais tarde Raphael Lemkin dirigiu-se para a Universidade de Heidelberg na Alemanha para estudar Filosofia e retornou a Uniwersytet Jana Kazimierza para estudar Direito (1926), tornando-se posteriormente Promotor de Justiça em Varsóvia (atual capital da Polônia). Cabe enfatizar que o autor participou como membro voluntário do Exército Polonês durante a invasão (cerco à cidade) do Exército Nazista (Wehrmacht) de Aldof Hitler em 1939 — nesta guerra o intelectual se feriu, mas com ajuda com alguns colegas conseguiu fugir. No ano de 1940, Lemkin via Lituânia adentrou em território sueco, no qual passou lecionar na destacada Universidade de Estocolmo capital do país. [2].

Em vista dos argumentos apresentados, no ano de 1941 resolveu emigrar para os Estados Unidos da América, onde começou a ensinar na conceituada Universidade de Duke — mais tarde em 1942 transferiu-se para a capital do país Washington (DC), com objetivo de trabalhar como analista no Departamento da Guerra (que na atualidade é Departamento de Defesa dos Estados Unidos). Nesta época, o pesquisador estava atento aos horrores que estavam sendo desenvolvidos na Alemanha Nazista — como por exemplo a construção de campo de concentração ou campo de extermínio, principalmente de judeus, homossexuais, negros, ciganos, prisioneiros de guerras, religiosos e comunistas mediante política anti-semita.

Pela observação dos aspectos descritos, o intelectual ficou mundialmente conhecido por cunhar pela primeira vez a terminologia “genocídio” — através da sua obra Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation - Analysis of Government - Proposals for Redress de (1944), para tal levou em consideração o conceito grego γένος (que pode ser entendida como etnia, família ou ainda raça) e do latim cidĭum (processo/ação que mata ou extermina um grupo específico por pressuposto ideológico). Partindo desta lógica compreensiva, entende-se por “genocídio” os seguintes postulados:

“Por ‘genocídio ', entendemos a destruição de uma nação ou grupo étnico. Essa nova palavra, cunhada pelo autor, para denotar uma velha prática em seu desenvolvimento moderno, é composta pelo termo grego antigo 'genos' (raça, tribo) e pelo latim '-cídio' (assassinato)… Em termos gerais, genocídio não significa necessariamente a imediata destruição de uma nação, exceto quando realizada mediante o assassinato em massa de todos os membros de uma nação. Destina-se, em vez disso, a indicar um plano coordenado de diferentes ações, visando a destruição dos fundamentos essenciais da vida de grupos nacionais, com o objetivo de aniquilar esses mesmos grupos. O genocídio é dirigido contra o grupo nacional como entidade, e as ações envolvidas são dirigidas contra os indivíduos, não em sua capacidade individual, mas como membros do grupo nacional”. [3].

Levando-se em consideração esses aspectos, durante o julgamento do século (XX) que ficou conhecido os Julgamentos de Nuremberg (Tribunal Militar Internacional vs. Hermann Göring) de 1946, Raphael Lemkin participou na organização e estruturação, onde por sua vez conseguiu inserir o termo “genocídio” na jurisprudência contra os principais líderes do Regime Nazista que atacou severamente todos os aspectos da dignidade humana: social, cultural, política, econômica, ideológica, ontológica, biológico, físico, simbólico, dogmática, material etc. Mas, a punição ainda não se dirigia a quem cometia crime étnico durante o período de paz (como ocorria com as culturas indígenas em diferentes lugares do mundo), assim sendo, apenas em época de guerras, todavia, já era um avanço significativo.

Por todos esses aspectos, ao retornar da Europa para a América, Raphael Lemkin tinha um grande sonho — de incorporar o conceito “genocídio” no Direito Internacional, para isso o intelectual realizou diversas investidas durante as primeiras sessões da Nações Unidas e teve apoio de vários países e juristas conceituados. À vista disto, seu esforço não foi em vão — mais precisamente no dia 09 de dezembro de 1948 a entidade internacional aprovou a Convenção sobre a Prevenção e Punição dos Crimes de Genocídio — não é mera resolução da ONU como é o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos apesar de sua importância, portanto, trata-se de eficácia normativa e reguladora em âmbito interno, promulgado via Decreto o n.º 30.822, de 6 de maio de 1952. [4]. Desta feita, iremos apresentar seus principais artigos:

Artigo 1º As Partes Contratantes confirmam que o genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do direito dos povos, que desde já se comprometem a prevenir e a punir.

Artigo 2º Na presente Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como:

a) Assassinato de membros do grupo;

b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo;

c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial;

d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

Artigo 3ºSerão punidos os seguintes atos:

a) O genocídio;

b) O acordo com vista a cometer genocídio;

c) O incitamento, direto e público, ao genocídio;

d) A tentativa de genocídio;

e) A cumplicidade no genocídio.

Partindo do excerto acima, destacamos que Raphael Lemkin foi agraciado com vários prêmios e reconhecimentos no mundo inteiro: a Grã-Cruz Cubana da Ordem de Carlos Manuel de Cespedes (1950), o Prêmio Stephen Wise do Congresso Judaico Americano (1951) e o Cruz do mérito da República Federal da Alemanha (1955). No histórico 50º aniversário da Convenção, o pensador foi homenageado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas como “um exemplo inspirador de compromisso moral”. Ainda foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por 10 vezes. [5].  Em 1989, postumamente recebeu, o Prêmio das Quatro Liberdades pela Liberdade de Culto (reconhecimento ao indivíduo que prestou grande serviço em prol da democracia, liberdade e igualdade). [6]. Ainda neste sentido, contribuiu efetivamente para a concretização do Direito Internacional Humanitário ou Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) — instrumentos que defendem os indivíduos em tempos de guerras, constituída por normas das Convenções de Genebra e da Convenção de Haia, assim, ajudou na aprovação do Tribunal Internacional de Justiça ou Corte Internacional de Justiça. [7].

Portanto, Lemkin passou o resto de sua vida dedicando-se convencer nações a aderir a lei do “genocídio” em suas constituições, haja vista, que muitos países continuavam a praticar crimes horrendo contra populações tradicionais e demais culturas, sobretudo, aquelas consideradas inferiores pelos governantes. Faleceu de ataque cardíaco no Escritório de Relações Públicas Milton H. Blow na cidade de Nova York em 28 de agosto de 1959 (com 59 anos de idade). Está enterrado no Cemitério Mount Hebron em Flushing, Queens, Nova York. [8].  Desta forma, muitos países começaram a debater e incluir crime contra humanidade em suas diretrizes fundamentais — suas lutas encontram-se vivas e latentes em todos os sentidos, como podemos observar nas manifestações que se iniciou nos Estados Unidos e ganhou o mundo depois da morte covarde e genocida do negro George Floyd por policiais racistas.

E por limiar, cabe corroborar que Raphael Lemkin certamente foi uma das pessoas mais importante do século passado (XX), pois, suas atividades mudaram a história humana, trouxe à tona direitos extremamente primordiais, sobretudo, aos mais pobres, culturas tradicionais, populações marginalizadas em todo o planeta. Apesar de ainda haver muitas desigualdades, falta de políticas públicas adequadas, olhares transversais dos líderes globais, suas conquistas estão asseguradas. É claro, que há muitas coisas a serem solucionadas, como por exemplo a política genocida do Estado Brasileiro em relação aos Povos Indígenas, principalmente nos que concernem as terras — há um verdadeiro imbróglio, uma política via “Estado de Exceção” [9].  ou ainda uma “Necropolitica” [10] que busca legalizar a morte. É por fim, cabe destacar que diante da iminente ameaça a democracia na atual conjuntura, precisamos manter acesa a extraordinária vocação de Lemkin nas lutar por diferenças, igualdade e equiparação, sobretudo, buscar um mundo mais humanizado para as futuras gerações.

 

Notas e Referências

[1]. LEMKIN, Raphael. Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation - Analysis of Government-Proposals for Redress. Washington, (DC), Carnegie Endowment for International Peace, 1944, p. 79-95.

[2]. NAPF Programs: Youth Outreach: Peace Heroes: Raphael Lemkin, by Holly A. Lukasiewicz, 2005.

[3]. Enciclopédia do Holocausto, Israel Gutman, editor-chefe. Nova York: Macmillan, 1990. 4 volumes.

[3]. BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Disponível em:

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-30822-6-maio-1952-339476-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso: 07/05/2020.

[5]. “Nomination Database – Raphael Lemkin”. Nobelprize.org. Nobel Media AB 2014.

[6]. “Archived copy”. Archived from the original, 2015.

[7]. DEYRA, Michel. Direito Internacional Humanitário. Procuradoria Geral da República: Gabinete de Documentação e Direito Comparado, ed.1, 2009.

[8]. IRVIN-ERICKSON, D. “Raphael Lemkin and the Concept of Genocide”. University of Pennsylvania Press, 2017, p. 217.

[9]. AGAMBEN, G. Estado de exceção: [Homo Sacer II, I]. São Paulo: Boitempo, 2015.

[10]. MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p

 

 

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